- O Globo
A decisão dos tribunais superiores sobre a utilização da Justiça Eleitoral para legalizar o dinheiro proveniente de propinas é o ponto fundamental da discussão que está instalada sobre a corrupção na política brasileira. Sem que se chegasse a uma conclusão definitiva, já se foi o tempo em que se discutia se o dinheiro de caixa 2 era corrupção.
Esse assunto vai voltar à tona, mas o impacto da constatação de que o caixa 1 foi usado para lavar o dinheiro da propina, como decidiu por maioria a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), leva o debate para outro nível, dando a dimensão da crise que abala a política nacional.
Com relação ao caixa 2, já há posições definidas desde o julgamento do mensalão. A presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, registrou sua indignação com a tentativa de banalizar a prática, a começar do ex-presidente Lula, que disse na ocasião que o que o PT havia feito era o que todos os partidos brasileiros faziam.
O petrolão veio a provar que o PT foi muito mais longe, mas Cármen Lúcia não tergiversou quando falou do caixa 2: “É crime”. Os ministros do Supremo Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, cada qual a seu modo, também trataram do assunto.
Gilmar disse, com razão, que nem sempre a doação através de caixa 2 deve-se à corrupção, ela pode ter razões políticas, como o empresário não querer que o governante da vez saiba que também está doando para seu adversário, e quanto. Mas Barroso advertiu: “As razões podem ser diferentes, mas são crimes da mesma forma”.
Também no mensalão, o então presidente do STF, ministro Ayres Britto, colocou o sarrafo bem alto quando tratou do assunto: “Não existe caixa 2 com dinheiro público. Nesse caso, é peculato”. Com a descoberta que também o caixa 1 foi contaminado pela corrupção, aumentou a responsabilidade dos tribunais superiores.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) vai ter que avaliar o caso à luz da campanha presidencial de 2014 e decidir se cassa a chapa original vencedora, levando de roldão o presidente Michel Temer. Já o Supremo terá que ratificar ou não a maioria da 2ª Turma, que, no caso do senador Valdir Raupp, decidiu que ele praticou corrupção passiva e lavagem de dinheiro ao aceitar que a propina de obras públicas fosse doada através do caixa 1 e legalizada na Justiça Eleitoral.
Os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli foram minoritários no entendimento de que houve corrupção, mas não lavagem de dinheiro, uma decisão tecnicamente justificada por jogos de palavras, adjetivos e tempos verbais, mas dificilmente crível. A tecnicalidade usada por Luís Roberto Barroso para negar a lavagem de dinheiro no processo de recursos do mensalão, citada no voto de Toffoli, foi que não se pode condenar pelo mesmo crime duas vezes a mesma pessoa.
O ex-ministro da Justiça do governo Dilma, José Eduardo Cardozo, em depoimento ontem ao juiz Sérgio Moro, disse que o caixa 2 é uma tradição da política brasileira, e tem razão. Basta ver que até o escândalo do governo Collor, que levou ao primeiro impeachment de um presidente da República, não havia legislação regulamentando as chamadas “sobras de campanha”, que eram tratadas como propriedade do candidato.
Um dos mistérios daquele tempo, depois do assassinato do tesoureiro PC Farias, é o destino da “sobra de campanha” presidencial, que somava milhões e milhões de dólares segundo os boatos da época, nunca confirmados. Antes, houve cena exótica que foi tomada na época como prova de honestidade da campanha indireta de Tancredo Neves à Presidência. Ministros de Tancredo fizeram a entrega pública à viúva Risoleta Neves das “sobras de campanha”.
A tentativa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de defender a necessidade de separar o joio do trigo, isto é, a diferenciação entre o uso de caixa 2 para fins puramente eleitorais e o beneficiamento pessoal do dinheiro ilegal, é de difícil execução, pois o fato de um candidato ter usado preferencialmente o dinheiro na sua campanha não significa que uma “sobra de campanha” não tenha ficado em sua conta pessoal, mesmo que o uso desse dinheiro seja regulado por legislação específica desde 1997.
Caberá, no final das contas, ao STF definir legalmente o divisor de águas entre todos os crimes cometidos por nossos políticos. Assim como não pode haver crime sem que esteja previamente previsto na legislação, todo crime deve ser punido de acordo com a sua gravidade. É dentro dessa estreita faixa constitucional que as novas normas serão definidas, e os crimes necessariamente punidos, sem que o país não escape desse inferno astral em que se encontra.
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