segunda-feira, 16 de abril de 2018

Marcus André Melo: Quem controla a toga?

- Folha de S. Paulo

Prerrogativas necessárias, privilégios descabidos

Em 1931, o governo revolucionário determinou a aposentadoria compulsória de seis juízes do STF e a redução de 30% nos vencimentos dos magistrados da corte. Era uma retaliação aos juízes que haviam negado habeas corpus aos tenentes revoltosos de 1922 e 1924, que agora estavam no poder.

“É a morte do Poder Judiciário no Brasil”, bradou Hermenegildo de Moraes, veterano da corte. E lamentou que seu tribunal fora “desprestigiado, vilipendiado, humilhado”. Não renunciava ao cargo depois de 43 anos na magistratura “para que não se diga que desertei do posto por terem sido diminuídos os vencimentos do STF”.

Não é à toa que as Constituições liberais estipulam prerrogativas para os magistrados: irredutibilidade de vencimentos, inamovibilidade, foro por prerrogativa de função, estabilidade no cargo. Ao mesmo tempo em que estabelecem que devem ser indicados por agente eleito —o presidente— para que a autonomia judicial não se converta em soberania.

As prerrogativas visam a proteção contra a interferência dos outros poderes, sobretudo do Executivo. E que assumem historicamente a forma de violação das regras da competição política e de direitos.

Quanto mais abusos, maiores os incentivos para a criação de garantias constitucionais. No entanto, elas próprias podem dar margem a desvios, como bem sabemos.

A história registra correções de rumo quando eles ocorrem. Após a criação do Imposto de Renda no Brasil, em 1922, o STF protestou que a Constituição vedava a redução no valor dos vencimentos e que o IR, na prática, teria esse efeito.

A resistência não surtiu efeito: a emenda constitucional de 1926 deixou claro que o imposto alcançava a todos —na Argentina, os juízes venceram a briga. A inflação e expedientes que permitem escapar ao imposto (ex. auxílio-moradia) alteraram o equilíbrio.

A Constituição proíbe reduzir, mas não aumentar vencimentos. Magistrados querem se arrogar o poder de se dar aumento, e os políticos almejam controlar e usar esse poder.

É preciso distinguir o ataque a privilégios no Judiciário de ataques à autonomia judicial. Retaliar juízes e atacar instituições é objetivo histórico de autocratas. Atacar privilégios é dever republicano.

A estratégia em 1931 era “deixar suspensa a espada sobre a cabeça dos que forem poupados”, como disse Hermenegildo, autor de “Memórias do Juiz Mais Antigo do Brasil” (1942). Hoje, a espada assume outras formas: interferência em privilégios mirando sub-repticiamente a autonomia.

O cenário desejável é aquele em que —por efeito não antecipado— as críticas levarem à redução de privilégios. O indesejável é se elas enfraquecerem o Judiciário quando ele finalmente passa a combater a impunidade.
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Marcus André Melo é professor de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco e doutor pela Sussex University.

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