O Estado de S. Paulo
Com desidratação persistente na opinião
pública, Bolsonaro tem grande capacidade de cavar o próprio abismo
Como tantos outros no passado, este agosto
tem sido pesado na política. Fala-se muito em golpe, tornou-se um tema tão
banal que às vezes é invocado até por cantores sertanejos.
De tanto ouvir denúncias sobre suas
intenções de dar um golpe, Bolsonaro mudou o discurso. Aceita que está
preparando o que chama de um contragolpe. Onde foi buscar esse argumento?
Tudo indica que a transmutação do golpe em
contragolpe surgiu após o encontro do vice-presidente Hamilton Mourão com o
presidente do TSE, Luís Roberto Barroso. Bolsonaro teria interpretado o
encontro como um golpe em marcha, no qual seu mandato seria cassado e o do seu
vice, preservado. Como se diz na gíria, noia pura. O TSE jamais cassou mandatos
de presidente. A chapa Dilma-Temer foi julgada e absolvida por excesso de
provas.
De qualquer forma, Bolsonaro acredita que o
termo contragolpe pode absolvê-lo numa tentativa que o mundo inteiro vai
considerar como ela é: um golpe.
Nos últimos tempos, os bolsonaristas buscam
uma justificativa legal para o golpe. Segundo o jurista Ives Gandra, o artigo
142 da Constituição indica que as Forças Armadas são um poder moderador quando
há conflito entre os outros Poderes. Rigorosamente, em termos constitucionais
as Forças Armadas não são um Poder entre os três claramente mencionados. O
general Heleno, que andava meio calado, reapareceu com essa interpretação no
bolso do colete, cavando uma leitura constitucional para edulcorar o golpe.
O cientista político Sérgio Abranches acha que o golpe de Bolsonaro tem uma característica híbrida. Ele subjuga progressivamente as instituições, segundo o padrão autoritário moderno, mas pode combinar essa tática com o movimento dos tanques nas ruas, a forma tradicional.
Na verdade, Bolsonaro dedica grande parte
de sua agenda a solenidades militares. Ele não sai dos quartéis: nos últimos
dias foi à formatura de cadetes, discursou em promoção de generais, recebeu
convite de um grupo de tanques enfumaçados e foi pessoalmente assistir aos
ensaios de guerra em Formosa (GO). No passado, os políticos que frequentavam
quartéis para pregar o golpe eram chamados de vivandeiras. Bolsonaro não chega
a pregar um golpe nos quartéis, mas quer que as Forças Armadas ao menos deem a
impressão de que o apoiam.
Algumas instituições democráticas já
tombaram, como é o caso da Procuradoria-Geral da República (PGR). Augusto Aras,
como se diz de carros velhos, só pega no tranco. Só investiga o presidente
pressionado pelo STF e, assim mesmo, sempre justifica o comportamento de
Bolsonaro. A PGR é tão pateticamente governista que chega a se contradizer na
defesa do bolsonarismo. Quando Roberto Jefferson era acossado pela Justiça do
Rio, o parecer do procurador era de que o caso deveria ser avaliado pelo
Supremo. Quando o STF prendeu Jefferson, a posição mudou: o caso deveria ser
enviado à primeira instância.
Aos poucos, torna-se bastante nítido o
quadro de tentativa de golpe e resistência a ele. Treze governadores lançaram
uma carta de apoio ao STF, o próprio presidente do Senado indicou que não moverá
processos de impeachment contra ministros que Bolsonaro quer derrubar no
momento.
No entanto, a leitura mais importante da
resistência ao golpe deveria ser feita nas pesquisas que indicam claramente a
desidratação de Bolsonaro na opinião pública. Não é um fato novo, mas persiste
e avança.
Bolsonaro pode ser derrotado no segundo
turno até por um candidato da terceira via. A desidratação pode jogar por terra
um dos argumentos pelos quais cantores sertanejos nos ameaçam com a fome e o
caos: a adoção do voto impresso.
A tentativa de tumultuar o processo
eleitoral com suspeitas de fraude só tem sentido com resultados mais ou menos
apertados. Se Bolsonaro for reduzido, ao longo do tempo, ao apoio da extrema
direita, algo que parece provável, ficará muito longe da votação que obteve em
2018.
O horizonte das eleições de 2022 não o
demoverá de suas intenções autoritárias. Ao contrário, quanto mais clara ficar
a derrota, maior a necessidade de apressar o passo e resolver o problema ainda
este ano.
O quadro mais amplo não é favorável: a
retomada econômica não tem a força esperada, os biomas brasileiros ardem e uma
crise hídrica já presente deve se agravar em novembro.
Bolsonaro tem uma grande capacidade de
cavar o próprio abismo. Jamais se importou em manter os 57 milhões de votos que
recebeu, e não só porque é movido por um ódio radical às pessoas e à natureza.
De certa forma, sua ascensão eleitoral foi um acidente, que só pode ter
acontecido pela conjugação de falhas, exatamente como um grande desastre aéreo.
Muito em breve vai se encontrar com sua própria dimensão histórica e talvez até
ele se espante com o fato de ter ido tão longe.
Esses são problemas um pouco teóricos para
quem vier adiante e tiver de compensar os prejuízos do imenso retrocesso que a
passagem de Bolsonaro pelo governo representou para o Brasil. Será um encontro
com um país diferente, com novos problemas, pedindo novas soluções.
Mas essa reflexão pode esperar um pouco,
porque o elefante ainda está na sala.
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