O Estado de S. Paulo
Não há mais tempo a perder para frear as
investidas de um presidente que se tornou uma ameaça à democracia
Duas décadas de governos populistas de
esquerda e de direita transformaram o Estado brasileiro na cracolândia do
patrimonialismo.
Em vez de aprovar as reformas para melhorar
a qualidade e a eficiência do serviço público, aparelharam o Estado,
distribuíram empregos no governo a aliados políticos e concederam benefícios,
subsídios e protecionismo a grupos de interesse que arruinaram as finanças
públicas, a produtividade e a competitividade internacional do País. Em vez de
fortalecer a confiança nos pilares do Estado de Direito, criaram o maior
esquema da corrupção da História (revelado pela Lava Jato), insuflaram a
polarização política e instilaram conflitos entre os Poderes, debilitando o bom
funcionamento da democracia. Em vez de abrir a economia e remover o peso
sufocante do Estado das costas dos empreendedores, empregadores e trabalhadores
que geram investimento, emprego e renda no País, os liberais do “posto
Ipiranga” tornaram-se frentistas da agenda corporativista do presidente da
República.
Esse é o retrato de uma sociedade que desde 2002 só elegeu presidentes comprometidos em defender o PCC – o patrimonialismo, o corporativismo e o clientelismo. O resultado de duas décadas de políticas de governo subservientes aos interesses do PCC está estampado na mais longa recessão econômica do País, no desemprego recorde, no aumento gigantesco da miséria e da desigualdade, na maior inflação dos últimos 25 anos e no descaso com o meio ambiente. Nenhum presidente se reelegeu com esse trágico legado.
Ciente de que suas chances de se reeleger
estão minguando, Bolsonaro busca solapar a democracia. A lista extensa de
investigações que envolve o presidente da República incluiu vários crimes de
responsabilidade: prevaricação na compra de vacinas, difusão de mentiras e de
informações falsas, incitação às demonstrações antidemocráticas que fazem a
apologia do autoritarismo e criação de um orçamento secreto para dar prioridade
à distribuição de verbas públicas a seus aliados políticos. Além de fomentar o
patrimonialismo e coroar sua longa carreira política como defensor implacável
do corporativismo, Bolsonaro vem subindo o tom de suas bravatas autoritárias.
Esses sinais de ameaça à ordem democrática
levaram a sociedade civil e o Judiciário a reagirem de maneira contundente. A
publicação de um manifesto da sociedade civil em defesa da democracia, do
sistema eleitoral e da urna eletrônica; a atuação da imprensa séria e
independente, que vem denunciando com coragem os atentados às instituições
democráticas, não se curvando aos impropérios do presidente; e as pesquisas de
opinião pública retratam o descontentamento de um governo considerado ruim e
incompetente pela maioria dos eleitores. Já o Supremo Tribunal Federal (STF)
vem agindo de modo taxativo para conter os arroubos autoritários de Bolsonaro.
Há diversas investigações envolvendo o presidente no STF, na
Controladoria-geral da União, no Tribunal de Contas da União e na Tribunal
Superior Eleitoral.
A única instituição que continua omissa
ante o bombardeio antidemocrático de Bolsonaro é a Câmara dos Deputados. Como
dizia Ulysses Guimarães, “a estátua dos estadistas não é forjada pelo varejo da
rotina ou pela fisiologia do cotidiano”. O presidente da Câmara, Arthur Lira,
segue o caminho inverso recomendado por Ulysses. Demonstra grande afoiteza para
votar as matérias do fisiologismo do cotidiano (como o aumento imoral do fundo
eleitoral e a volta das coligações proporcionais) e revela passividade ímpar
para desengavetar a discussão sobre o impedimento do presidente da República.
Se os freios e contrapesos do Congresso não são capazes de frear as
intimidações do presidente, a ousadia de Bolsonaro em desafiar a democracia e
as instituições só vai aumentar.
O Parlamento não se pode furtar a discutir
os indícios de crime de responsabilidade do presidente da República. O Poder
Legislativo é a arena política onde se deve debater e deliberar sobre o
impedimento de Bolsonaro. As pedaladas fiscais que levaram o Congresso a
declarar o impedimento de Dilma Rousseff, em 2016, e o dinheiro de caixa 2 que
selou a interrupção do mandato do presidente Collor, em 1992, parecem desvios
singelos quando comparados com a ficha corrida de afrontas de Bolsonaro à ordem
democrática, à Constituição e às regras de conduta que se esperam de um
presidente.
É hora de o Congresso caminhar em consonância com a sociedade e desengavetar o debate sobre o impedimento do presidente da República. É o momento de o Parlamento mostrar que é a Casa das Leis e o fórum dos representantes do povo que honram a democracia, a política e as instituições. É neste instante que a união e a harmonia dos Poderes Legislativo e Judiciário na defesa da Constituição, do Estado de Direito e da democracia podem evitar a eclosão de uma crise institucional sem precedentes. Não há mais tempo a perder para frear as investidas populistas de um presidente da República que se tornou a maior ameaça à democracia desde o golpe militar de 1964.
*Cientista político, é autor do livro ‘10
mandamentos – do Brasil que somos para o país de queremos’
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