terça-feira, 13 de junho de 2023

Carlos Andreazza – Desdenunciando

O Globo

Assessor de Arthur Lira — então em primeiro mandato — foi interceptado com R$ 106 mil no aeroporto de Congonhas

Há uma hipótese para explicação do Brasil na história de Arthur Lira afinal desdenunciado — expressão que tomo de Marcelo Godoy, no Estadão. Trama de 2012, contemporânea do mensalão televisionado, quase década anterior à era do orçamento secreto e seus kits de robótica, concluída somente neste 2023. Mais uma década perdida. Também a de ascensão de Lira.

É o caso em que assessor do deputado federal alagoano — então em primeiro mandato — foi interceptado com R$ 106 mil no aeroporto de Congonhas; a caminho de Brasília. Grana que o delator profissional Alberto Youssef afirmaria ser para Lira, propina — a acusação — paga por dirigente da CBTU em troca de se manter no cargo. (O atual presidente da estatal, órgão federal que administra trens urbanos, é apadrinhado por Lira e está ali desde 2016).

A Procuradoria-Geral da República denunciou Lira em 2018. Por corrupção passiva. Denúncia aceita pelo Supremo — por sua Primeira Turma — em 2019. Lira, então, tornado réu. A defesa recorreu.

Em 2020, o colegiado formou maioria contra a apelação — com votos de Marco Aurélio Mello, o relator, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Dias Toffoli pediu vista. Julgamento interrompido. Por três anos. Retomado — e finalizado — na semana passada. O deputado alagoano ora presidente da Câmara.

Que mais terá mudado desde a acusação?

Em 2019, o Congresso proibiu — decisão correta — que denúncias fossem baseadas exclusivamente em colaborações premiadas. (Exclusivamente.) Isso — diga-se — não sendo suficiente, não em 2020, para que os ministros acatassem o recurso do deputado e liquidassem a denúncia. E, em 2021, o STF arquivou — por falta de provas — a investigação sobre o que se nomeara “Quadrilhão do PP” na Petrobras, da qual seria conexo o inquérito em que Lira era réu.

O arquivamento do “Quadrilhão do PP” — que teria como sistema o esquentamento de propina, em troca de obras da petroleira, no corpo de doações eleitorais oficiais — ocorreu na Segunda Turma do Supremo, a partir da chegada de Nunes Marques ao tribunal, em 2020. Aposentado Celso de Mello, a virada. Julgamento (3x2) que beneficiou o senador Ciro Nogueira, dos mais influentes padrinhos para postulantes a cadeira na Corte.

Novato no STF também sendo André Mendonça, no tribunal desde 2021, sucessor de Marco Aurélio. Troca que ensejou excentricidade: aposentado não apenas o ministro, mas também seu voto, contra o recurso de Lira. Haveria fatos novos, circunstância em que a Mendonça foi excepcionalmente dada autorização para votar — muitas as licenças excepcionais que o tribunal constitucional tem permitido aos seus ultimamente.

Mendonça, herdando a relatoria, pediu novo parecer à PGR sobre a matéria; e o Ministério Público Federal, que denunciara Lira em 2018, mudou de posição em 2023. Haveria fatos supervenientes. Fato: a Procuradoria comunicava à sociedade ser precária — irresponsável — a maneira como denunciara cinco anos atrás.

Fato também sendo que assessor de deputado, a caminho de Brasília, foi pego com R$ 106 mil — e sem meios de explicar de onde viera o volume. Grana na mão, desprovida de destino e origem. O sujeito, auxiliar de parlamentar federal, pego com dinheiro vivo no aeroporto, indo para a capital federal — essa materialidade afinal vertida em fofoca como decorrência da delação de um veterano da colaboração premiada: Youssef.

Não havia provas de que o dinheiro fosse para Lira. Havia somente o assessor viajando com o dinheiro — num limbo. Proibidas, desde 2019, denúncias baseadas exclusivamente em delações. (Exclusivamente.) É a lei. (Ignorada pelos ministros em 2020.) E de repente era só a palavra do delator, exclusivamente; desmaterializado o assessor viajante com dinheiros. Ele desafiava a exclusividade.

Desmaterializadas — desafiadoras do exclusivamente — também as ligações entre assessor e Lira, e a mensagem em que o auxiliar informa ao chefe que o voo estava atrasado. Tudo no dia em que o rapaz seria flagrado. Desmaterializado igualmente o fato de as passagens terem sido compradas com o cartão do deputado.

Nada obrigaria o Supremo a desdenunciar Lira; a mudança de entendimento da PGR não vinculando o tribunal. Que, no entanto, preferiu não constranger o MPF. O ministro Moraes explicou — assim entendi — que o recuo da PGR só atrasaria o desfecho de um processo para cujas eventuais novas provas o órgão titular da ação penal já trancara as portas, independentemente do STF:

— A própria Procuradoria, com sua manifestação, já afirmou que permanecerá inerte em uma eventual produção probatória.

Moraes, mesmo fechando com a maioria pelo desrecebimento de denúncia, não perdeu a chance de provocar a PGR de Augusto Aras, à revelia da qual toca soberanamente os inquéritos pela democracia:

— De uns tempos para cá, nós estamos vendo vários arrependimentos de denúncias ofertadas anteriormente.

Com Mendonça, contra a denúncia outrora recebida, ficaram Toffoli, Luiz Fux e os que alteraram votos: Barroso e Moraes. Unanimidade, por fim.

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