Reajuste obrigatório em despesas de Previdência, saúde e educação impõe contenção noutras áreas
Para cumprir a promessa de equilibrar as contas do governo em 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não terá como escapar do corte de gastos. A previsão de aumento na receita propalada pelo governo não é apenas incerta. Mesmo que se realize, será insuficiente. Não é difícil entender o motivo: algo como 60% das despesas do governo em 2024 certamente subirão acima do limite de 2,5% além da inflação, o máximo permitido pelo arcabouço fiscal recém-aprovado.
A alta será resultado de duas medidas do próprio governo. Primeira: o aumento real do salário mínimo. Com as regras recém-aprovadas no Congresso, o novo mínimo inflará os gastos da Previdência e o reajuste dos servidores públicos. Segunda: o governo acabou com o antigo teto de gastos sem tomar cuidado com despesas constitucionalmente vinculadas à arrecadação. Em consequência, a correção do gasto obrigatório em saúde e educação deixa de ser feita pela inflação e volta a ser indexada pela receita do ano corrente.
Cálculos de economistas da UFRJ publicados pelo GLOBO estimam que, em 2024, a despesa com saúde subirá 25,8% além da inflação, e a com educação 5%. Ao todo, a parcela engessada do Orçamento crescerá 7,2% em termos reais. Com base nessa projeção, o desafio diante do presidente é cortar despesas da fatia do Orçamento em que há margem para manobra, como custeio da máquina pública, gasto com pessoal ou investimento. O corte necessário é da ordem de 5,5% do Orçamento, segundo os economistas.
Por isso causa estranheza a realização de novos concursos públicos. Por mais que haja necessidade de recompor quadros em setores da burocracia, a decisão vai na contramão do que o governo deveria fazer. A falta de controle sobre a pauta do Congresso é outra fonte de preocupação. Em condições assim, oportunistas dentro e fora da base de apoio aproveitam para aumentar a conta do governo federal. Parlamentares continuam a criar novas despesas como se não houvesse amanhã.
O exemplo mais recente foi a aprovação no Senado da Proposta de Emenda Constitucional que transfere à União os servidores públicos de Amapá, Roraima e Rondônia remanescentes da época em eram territórios ou nos dez primeiros anos como estados autônomos. Se a Câmara não barrar esse “trem da alegria”, a conta ficará entre R$ 5 bilhões e R$ 10 bilhões, pela estimativa dos economistas Marcos Lisboa e Marcos Mendes. Está no Senado também o Projeto de Lei que reduz a contribuição previdenciária dos municípios, ao custo estimado de R$ 18 bilhões anuais. Pode ainda haver perdas com o reajuste no faturamento máximo de Microempreendedores Individuais (MEIs), com o projeto para a Lei Orgânica da Polícia Militar e outras propostas. É de bilhão em bilhão que se cava o buraco nas contas públicas.
O governo promete enfrentar o desafio fiscal com medidas para elevar a arrecadação que dependem do Congresso. Exagerando nas expectativas, espera chegar a R$ 168,5 bilhões. A cifra não leva em conta a possibilidade de o Parlamento frustrá-las. Não seria a primeira vez.
O governo Lula incorre em dois erros orçamentários elementares: superestima a receita e subestima a despesa. Se não promover cortes e, a exemplo do que fizeram gestões petistas anteriores, tentar mascarar o desequilíbrio, Lula terá decretado a morte prematura do arcabouço fiscal.
Veto de Tarcísio a vacinação nas escolas prejudica combate ao câncer
O Globo
Estabelecimentos de ensino são fundamentais para o país atingir metas de imunização contra o HPV
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Não tem cabimento o veto do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, ao Projeto de Lei que prevê levar às escolas a vacinação de crianças e adolescentes contra o papilomavírus humano (HPV), causa de diversos tipos de câncer, em especial no colo do útero. Aprovada pela Assembleia Legislativa em agosto, a proposta estabelece um calendário estadual de imunização, com participação das escolas, além de políticas públicas de conscientização, diagnóstico e tratamento.
Em sua justificativa, o governador alegou que já existem iniciativas do tipo. Ainda assim, o veto é condenável, pois as taxas de vacinação contra o HPV em São Paulo estão abaixo da meta recomendada pelo Ministério da Saúde, de 95%. Segundo estudo da Fundação do Câncer divulgado em março, o índice estava em 77% para a primeira dose e apenas 60% para a segunda. Certamente a oferta nas escolas contribuiria para elevar esses números.
As baixas taxas de vacinação contra o HPV são um problema não apenas em São Paulo. De acordo com o estudo, todas as regiões do país estão abaixo da meta. Na média nacional, a cobertura entre meninas de 9 a 14 anos era de 76% para a primeira dose e 57% para a segunda. Entre os meninos, os números são ainda piores: 52% na primeira e 36% na segunda. O projeto em São Paulo é uma iniciativa inspiradora que depois poderia ser repetida noutros estados.
Baixos índices de vacinação infelizmente têm sido uma constante no Brasil nos últimos anos, rompendo uma das mais celebradas conquistas do Programa Nacional de Imunizações (PNI). Os motivos são muitos: desinformação disseminada por movimentos antivacina, dificuldade de acesso aos postos, falta de campanhas do Ministério da Saúde, falta de doses e acomodação da população num cenário de controle das doenças. Levar vacinas às escolas tem se mostrado uma experiência bem-sucedida para ampliar as coberturas.
Espera-se que o debate sobre o projeto não esteja contaminado pela ideologia. Trata-se tão somente de uma questão de saúde pública. A cada ano, o Brasil registra 700 mil novas infecções pelo HPV, e 95% dos casos de câncer de colo do útero estão relacionados ao vírus. Vacinar-se é a melhor forma de se proteger, mas não dá para imaginar que adolescentes e jovens comparecerão espontaneamente aos postos de saúde.
Uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) de 2019 revelou que o principal motivo para a recusa às vacinas contra o HPV é a desinformação. Daí a importância da escola. Não só do ponto de vista logístico, pela facilidade que oferece, mas por ser o lugar adequado para informar os jovens sobre problemas que lhes dizem respeito. Tarcísio deveria rever sua decisão, ou a própria Assembleia deveria derrubar o veto.
A Argentina derrete
Folha de S. Paulo
PIB desaba, inflação dispara e populismo avança à direita e à esquerda
Nenhum fenômeno econômico é mais devastador para o bem-estar de uma sociedade do que a combinação de recessão e inflação elevada. A vizinha Argentina corre o risco de experimentar doses cavalares das duas mazelas.
O descontrole inflacionário já está instalado —e não se vê solução para ele tão cedo. Os preços ao consumidor acumularam alta de 124% nos últimos 12 meses. Somente em agosto, foram assustadores 12,4%, o que corresponde a um índice anualizado de mais de 300%.
Na terça-feira (19), divulgou-se que o Produto Interno Bruto argentino teve queda aguda no segundo trimestre deste ano, de 4,9% ante o período correspondente do ano passado e de 2,8% na comparação com o trimestre anterior.
Um único registro de encolhimento da produção e da renda pode não ser o suficiente para caracterizar o início de um ciclo recessivo, mas o caos vivido pelo país sul-americano não encoraja previsões de recuperação.
Na mesma terça, relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) projetou recuo de 2% do Produto Interno Bruto neste ano e de 1,2% no próximo. Não parece haver pessimismo exagerado aí.
Na derrocada argentina, incertezas econômicas e políticas se alimentam umas às outras, enquanto o país se aproxima do primeiro turno das eleições gerais, marcado para 22 de outubro.
O cenário, já calamitoso, piorou a partir de agosto, quando as primárias para a Casa Rosada mostraram a ascensão de um candidato exótico e histriônico, Javier Milei, que une um discurso populista contra o establisment a uma pregação ultraliberal sem conexão com a realidade política do país.
Consta que Milei, hoje líder das pesquisas, busca suavizar sua plataforma de governo, mas a disputa presidencial toma rumos insanos.
O candidato do peronismo governista —ninguém menos que o ministro da Economia, Sergio Massa— decidiu recorrer a mais irresponsabilidade orçamentária na reta final da campanha, propondo uma radical isenção de Imposto de Renda sobre salários.
Segundo estimativa de precisão duvidosa, apenas 1% dos trabalhadores continuarão pagando o tributo com a aprovação do projeto —que teve o apoio de Milei.
Em um país que adia há anos reformas imprescindíveis, os principais postulantes à Presidência trabalham para tornar ainda mais difícil, econômica e politicamente, a tarefa de recuperar as finanças públicas e a confiança na moeda nacional ao longo dos próximos anos.
Recuperar a PRF
Folha de S. Paulo
Órgão coleciona escândalos após se voltar a operações ostensivas e repressivas
A polícia rodoviária já gozou de ótima reputação no passado, a ponto de inspirar até a criação de um herói genuinamente brasileiro —que deu origem à série de TV "O Vigilante Rodoviário", sucesso de audiência nas décadas de 1960 e 1970.
O quadro hoje é outro. Foram tão graves os escândalos em que a Polícia Rodoviária Federal esteve envolvida nos últimos anos que um ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, sugeriu recentemente que sua existência deveria ser repensada.
Já o atual diretor-geral da PRF, Antônio Fernando Oliveira, disse compreender a indignação do magistrado e defendeu que, em vez da extinção, deveria haver uma revisão da política interna e da própria doutrina da instituição.
O episódio que deflagrou a mais recente onda de contestação ao órgão foi a morte de Heloisa dos Santos Silva, de apenas 3 anos.
A menina, que estava num automóvel com a família, foi atingida por disparos de policiais rodoviários federais durante operação na Baixada Fluminense. Não há, no entanto, nenhum protocolo conhecido que autorize atirar contra um veículo que não ameace a vida de agentes ou de terceiros.
Ademais, Heloisa passou nove dias internada até morrer e, nesse período, testemunhas apontam que 28 policiais estiveram no hospital. Ainda que alguns pudessem ter razões legítimas para a visita, é plausível suspeitar de uma possível tentativa de intimidar a família ou mesmo alterar provas (o carro estava estacionado ali).
O caso trágico de Heloisa não é o único a macular a imagem da PRF. Em 2022, agentes da instituição se envolveram no assassinato de Genivaldo de Jesus, morto brutalmente ao ser trancado com gás no porta-malas de uma viatura.
O órgão também se tornou suspeito de executar operação para afastar potenciais eleitores das urnas no segundo turno do último pleito presidencial —o diretor da época se encontra preso.
Jair Bolsonaro (PL) se empenhou para que a PRF deixasse de ser voltada principalmente para a fiscalização de estradas federais, sua vocação original, e passasse a realizar operações ostensivas e repressivas, não só em rodovias mas também em favelas e periferias.
O resultado pode ser medido em números. De 2018 para o ano passado, as mortes provocadas pela Polícia Rodoviária Federal dobraram, saltando de 22 para 44.
O debate sobre uma eventual extinção do órgão nem mesmo parece realista, entretanto não há dúvida de que ele precisa ser devolvido à função de salvar vidas.
O Brasil voltou. Lula também
O Estado de S. Paulo
Primeiro discurso do presidente na ONU sinaliza a retomada da tradição diplomática brasileira, mas é claro que o petista não perderia a chance de deixar sua marca retrógrada
O discurso do presidente Lula da Silva na Assembleia-Geral das Nações Unidas, anteontem, evidenciou a volta da política externa brasileira à irretocável tradição do Itamaraty. Ao defender o esforço mundial no combate às desigualdades, a agenda climática e a reforma das instituições internacionais do pós-guerra, recuperou os eixos de uma diplomacia ancorada há mais de um século no respeito ao Direito Internacional e no interesse dos brasileiros. O País retomou seu trilho natural diante do mundo – um alento depois de quatro anos de corrosão e de bestialização da sua política externa sob Jair Bolsonaro. É certo, porém, que o Lula de sempre, impregnado pelo dogmatismo retrógrado do PT, também voltou a dar o ar da graça.
O texto lido pelo presidente na tribuna da ONU traz a digital de diplomatas comprometidos com os valores da Casa de Rio Branco. Ausente nos últimos quatro anos, quando a Assembleia das Nações Unidas serviu como palanque para comícios destinados aos fanáticos bolsonaristas, a racionalidade preponderou ao serem retomadas bandeiras muito caras ao Brasil.
A escrita demarcou o empenho do governo Lula em apresentar o Brasil – e a si próprio, inevitavelmente – como uma liderança diferenciada do chamado “Sul Global” por sua virtuosa opção democrática e de respeito aos direitos humanos. Nesse sentido, distanciou-se sutilmente de aliados emergentes para credenciar o Brasil ao diálogo com as potências ocidentais. Ao cobrar a redução da desigualdade no convívio entre as Nações, e dentro de suas fronteiras, Lula apresentou argumento irrefutável para as reformas no Conselho de Segurança da ONU e das instituições de Bretton Woods – útil também para sua pressão por maior compromisso do mundo desenvolvido no combate à pobreza e nas metas climáticas.
Como nada é perfeito, o Lula atracado no arcaísmo ideológico da esquerda fez-se também presente nas Nações Unidas – seja para agradar à militância petista, seja para refletir convicções de quem ainda vê o mundo sob a ótica sindical.
Terá sido anotada pelas chancelarias como incongruente a sua defesa do multilateralismo quando, há apenas uma semana, cogitava a retirada do Brasil do Tribunal Penal Internacional (TPI) como meio de oferecer salvo-conduto ao tirano russo Vladimir Putin em eventual visita ao País.
Sua brevíssima menção à guerra deflagrada pela Rússia na Ucrânia, como exemplo da “incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU”, poderia ter se perdido no longo texto. Destoou, porém, diante da ausência de condenação mais veemente, por parte do Brasil, à carnificina promovida por Moscou – à revelia do mesmo direito internacional que Lula sugere defender. A coisa ficou pior quando Lula diluiu a mais grave crise na Europa desde a 2.ª Guerra no meio de uma lista de conflitos de menor gravidade, como se fossem equivalentes.
Não poderia faltar também, é claro, uma crítica ao “neoliberalismo”, apontado por Lula como causa do “agravamento das desigualdades” e nascedouro do autoritarismo de extrema direita. Confirmou ao mundo sua visão distorcida e desatualizada sobre o papel do Estado, sobretudo neste momento em que prepara uma agenda verde de desenvolvimento dependente de investimentos externos. Como não bastasse, a menção deixou implícita sua absolvição à tirania de esquerda consolidada com sua bênção na América Latina.
Felizmente, as patacoadas de Lula da Silva foram irrelevantes num discurso marcado pelo trabalho da diplomacia responsável do Itamaraty. Ao fazer valer seus conceitos e sua linguagem, o Ministério das Relações Exteriores fincou pé na sua tradição. Pode-se, obviamente, contestar premissas da política externa sob a atual gestão petista, sobretudo os arroubos em defesa de ditadores companheiros e os delírios a respeito do tal “Sul Global”. Mas seu eixo racional e profissional parece que felizmente está resguardado.
Avança a PEC da exploração da fé
O Estado de S. Paulo
A imunidade tributária concedida às igrejas presta-se a resguardar a liberdade religiosa, não a enriquecer vendilhões que vivem de monetizar a religiosidade do povo brasileiro
Com os votos de deputados da base do governo e da oposição, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 5/2023, que amplia a imunidade tributária concedida a igrejas, partidos políticos, sindicatos e instituições de educação e assistência social sem fins lucrativos. Só a mixórdia de entidades agraciadas pela proposta do deputado Marcelo Crivella (Republicanos-RJ) já demonstra quão desvirtuada é essa PEC.
Quando o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), encaminhou a PEC 5/2023 para deliberação da CCJ, em março passado, este jornal advertiu que a proposta é uma “subversão do princípio fundante desta República, a igualdade de todos perante a lei”, razão pela qual deveria ser rejeitada pelo colegiado (ver o editorial A PEC da exploração da fé, 22/3/2023). Agora, o texto avançou para análise de uma comissão especial antes de ser submetido ao plenário da Casa. O Estadão reitera: a PEC 5/2023 não deve prosperar.
A Constituição impede a cobrança de impostos sobre a renda, o patrimônio e os serviços essenciais prestados por aquelas entidades. A imunidade tributária, particularmente no caso das igrejas, é fundamental para que uma determinada denominação religiosa não seja impedida de professar sua fé simplesmente por falta de dinheiro para arcar com os custos de manutenção de seus locais de culto. Não fosse assim, tratar-se-ia de uma flagrante violação do próprio texto constitucional, que garante a liberdade religiosa no País. Porém, a “PEC da exploração da fé”, como este jornal a designou, vai além do mínimo necessário para a salvaguarda desse direito.
A PEC 5/2023 nada tem a ver com liberdade religiosa nem com pluralismo político, como apregoam seus arautos. O texto deve ser rejeitado pela comissão especial e, caso seja aprovado no colegiado, não deve prosperar no plenário da Câmara porque não passa de uma dissimulação para enriquecer ainda mais algumas dessas denominações ditas religiosas – além de partidos políticos, sindicatos e organizações assistenciais de fachada –, que brotam todos os dias nas esquinas Brasil afora e parecem muito mais interessadas em explorar as finanças de seus fiéis e dos contribuintes do que em oferecer conforto espiritual a todos os que batem às suas portas.
Caso seja promulgada, a PEC 5/2023 estenderá a imunidade tributária das igrejas, partidos políticos e outras entidades para a aquisição de bens e serviços que sejam tidos como “necessários à formação de patrimônio, à geração de renda e à prestação de serviços” – algo que, convenhamos, é muito difícil de aferir. A compra de um carro de luxo ou de um jatinho em nome de uma igreja, por exemplo, pode ser considerada “essencial” para que um líder religioso exerça seu ministério. Se o indivíduo, de fato, estará a caminho de compromissos espirituais ou mundanos a bordo do veículo, só sua consciência vai dizer. O mesmo ocorrerá com dirigentes partidários ou sindicais, que poderão até mesmo pagar contas de serviço mais baratas desde que as vinculem às entidades das quais fazem parte. É um acinte.
A proposta do deputado Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, é inconstitucional. Todos são iguais perante a lei. Eis o princípio republicano fundamental consagrado no caput do art. 5.º da Lei Maior. Por que um líder religioso poderia adquirir um bem pagando menos imposto do que pagaria qualquer outro cidadão que não esteja à frente de uma igreja? Por que um líder partidário ou sindical pode recolher menos impostos na aquisição de bens e serviços apenas porque ocupa cargo de liderança num partido ou sindicato?
A PEC 5/2023 não deve ir adiante porque estabelece “categorias” distintas de cidadãos no que concerne às suas obrigações tributárias – como, por exemplo, a divisão entre leigos e religiosos. Ademais, a proposta é moralmente inaceitável, pois não se trata de outra coisa senão de uma tentativa canhestra de monetizar a religiosidade do povo brasileiro, que deve ser respeitada e protegida, não explorada.
Sem atenuante para o racismo
O Estado de S. Paulo
Cassação de vereador em São Paulo por ter desrespeitado os negros é um avanço civilizatório
Numa sessão remota da Câmara Municipal de São Paulo, em maio do ano passado, o vereador Camilo Cristófaro (então do PSB, hoje no Avante) foi flagrado dizendo “é coisa de preto, né?”, ao se referir a um serviço mal feito. Anteontem, em razão dessa evidente quebra de decoro, o vereador foi cassado, tornando-se o primeiro parlamentar paulistano a perder o mandato por racismo, o que é evidentemente um avanço civilizatório. O placar de 47 votos a zero mostra que ninguém na Câmara teve coragem de defender o indigitado, prova inconteste de que o racismo se tornou intolerável para os eleitores.
Nada disso significa, é claro, que os vereadores paulistanos tenham se tornado subitamente cidadãos conscientes dos limites morais e éticos a que todos devemos nos submeter para suportar a vida em sociedade. O mais comum, infelizmente, é que o espírito de corpo prevaleça entre os parlamentares, que se defendem uns aos outros movidos por interesses paroquiais, frequentemente em detrimento do decoro e da decência. Diante do histórico de impunidade na Câmara, é lícito supor que, de alguma forma, o vereador ora cassado tenha em algum momento perdido apoio dos colegas, não exatamente por ter se comportado de maneira vil, mas apenas porque deixou de ter amigos na Casa. Talvez por essa razão seu caso tenha afinal ultrapassado todas as barreiras que usualmente servem para retardar ou inviabilizar processos de cassação e, assim, alcançado o plenário. Uma vez lá, a cassação era tida como líquida e certa, porque obviamente ninguém teria coragem de votar a favor de um político acusado de racismo.
E esse é o ponto a celebrar nesse caso. A sociedade brasileira deixa cada vez mais claro que atitudes como a desse vereador cassado não são aceitáveis nem como brincadeira ou ato falho. Ainda estamos longe do ideal, é claro. Recorde-se que o caso do sr. Cristófaro foi arquivado no Tribunal de Justiça de São Paulo porque o juiz Fábio Aguiar Munhoz Soares, malgrado tenha reconhecido o caráter discriminatório da declaração do político, considerou que ele não teve “a vontade de discriminar”. Uma decisão, sem dúvida, subjetiva.
Ainda assim, o desfecho do caso em seu aspecto político foi extremamente didático. Se todos os cidadãos têm a obrigação de evitar situações que possam configurar racismo, mais ainda a têm aqueles que ocupam funções públicas de grande visibilidade e que detêm mandato eletivo. Isso ganha especial importância no momento em que muitos políticos, pretendendo escorar-se na imunidade parlamentar, parecem entender que ser infame e atacar minorias de maneira desavergonhada dá votos.
Como já dissemos neste espaço, a medida extrema de cassação de mandato parlamentar serve em primeiro lugar para resguardar a integridade institucional do Legislativo. Punir a perniciosidade não significa apenas respeitar o eleitorado, mas também estimular o esforço coletivo para a construção de uma sociedade mais justa, empreendimento que só é possível quando fundado firmemente na dignidade humana.
Escalada do petróleo complica política de combate à inflação
Valor Econômico
A convergência da inflação para as metas tende a demorar mais do que já estava demorando
As cotações do petróleo voltaram a disparar, acumulando altas de 30% em pouco mais de dois meses. Pelo seus efeitos amplos sobre os preços, a majoração interrompe a trajetória de queda de índices de inflação global e, em alguns casos, como nos Estados Unidos, provocou aumento do índice de preços ao consumidor após meses consecutivos de baixa. A convergência da inflação para as metas, com isso, tende a demorar mais do que já estava demorando, esticando o calendário para que isso ocorra para 2025, segundo projeções dos BCs dos EUA e da zona do euro.
Boa parte dos especialistas acredita que a atual corrida das cotações poderá ultrapassar US$ 100 o barril, um acréscimo de US$ 5 por barril além dos preços atuais. É impossível prever o futuro em um mercado determinado em grande parte por interesses geopolíticos como o do petróleo. A decisão de Arábia Saudita e da Rússia, agora unidas sob o guarda-chuva do Brics, de reduzir a produção em 1,2 milhão de barris por dia foi tomada com a demanda em seu pico histórico, de 102,2 milhões de barris por dia, e, pior, com os estoques em baixa.
Há paradoxos e reversão de expectativas por trás do salto das cotações. A economia global deveria estar se retraindo, segundo previsões reiteradas por meses a fio, mas isso não está ocorrendo. Os EUA crescerão mais de 2% no ano, enquanto a estimativa do Federal Reserve, revisada ontem, apontava há apenas dois meses uma expansão de mero 1%. Algo parecido ocorre em vários países emergentes, como o Brasil, onde as atividades econômicas estão em um passo mais acelerado do que faziam prever a elevação significativa dos juros para domar a inflação.
O freio na produção da Rússia, que depende basicamente da receita do petróleo para financiar sua guerra de rapina em solo ucraniano, parece um contrassenso. No entanto, mesmo com os descontos substanciais que o óleo dos Urais tem em relação ao Brent e ao WTI nos mercados globais (cerca de 20%), o país tem escoado 80% de sua produção para mercados politicamente cativos, como China e Índia. A China trava uma guerra comercial com os EUA e abriu caminho para o óleo russo em meio às sanções americana e europeia contra Putin. A Índia é velha aliada do país, desde o tempo da União Soviética, e os russos continuam sendo seu maior fornecedor de armas.
A Índia deve crescer mais de 7% no ano e tem na Rússia uma fonte de suprimento segura. A China, que deve crescer menos que os 5,5% estimados pelo governo e está às voltas com o estouro de uma bolha imobiliária, tem ampliado suas compras para atender a demanda de sua indústria petroquímica - foram dois milhões de barris por dia a mais, elevando as aquisições totais em 11,5 milhões de barris por dia, ou 11% do consumo mundial. Não é desprezível na motivação dessas compras a preocupação política com a disputa com os Estados Unidos, cujos contornos futuros não podem ser delimitados. As sanções financeiras contra Putin, com o corte do país dos sistemas de pagamento globais, podem, em tese, ocorrer com qualquer outro rival de Washington, e não há um mais em evidência hoje do que a China.
Enquanto o petróleo russo e árabe flui em menor quantidade, os países que não fazem parte do cartel de produtores (Opep) aumentaram um pouco a produção. Ainda assim, a balança de oferta e demanda continua desequilibrada em 900 mil barris por dia. A oferta caiu 1,2 milhão de barris diários, mas foi acrescida de 310 mil barris/dia de petróleo provenientes principalmente de Estados Unidos (responsáveis por aumento de 80% da oferta), Brasil e Guiana, cujas exportações avançaram 15% nos últimos 12 meses.
Há poucos fatores que de imediato podem contribuir para esfriar as cotações. Estima-se que o avanço na produção de carros elétricos elimine a necessidade de algo como 500 mil barris por dia no ano. Por outro lado, os campos maduros de petróleo ao redor do globo perdem 3% a 5% de sua capacidade de extração anualmente, o que mais do que anula a economia com a eletrificação da mobilidade. Além disso, os EUA têm menos armas para intervir para baixar os preços. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, o presidente Joe Biden determinou a liberação de estoques estratégicos de petróleo, e 300 milhões de barris foram usados com esse fim. A medida foi importante, apesar de seu limite evidente - o equivalente a um consumo de três dias -, mas não pode ser replicada com frequência.
A demanda de combustível deve subir até o fim do ano, com a chegada do inverno no Hemisfério Norte, e Rússia e Arábia Saudita já adiantaram que pretendem manter os cortes de produção nesse período. Os preços da energia estão acompanhando a diminuição da oferta e puxando a inflação de volta para cima. Os bancos centrais poderão ter de agir novamente - eventualmente com ajuste nos juros - para impedir os efeitos secundários de propagação da alta de preços de insumos vitais - os da gasolina e diesel são os mais elevados em seis meses -, se as cotações continuarem subindo ou estacionarem nos atuais níveis altos. Uma desaceleração global poderia fazer a mesma coisa, mas não há certeza de que isso ocorra a curto prazo.
Retrocesso para os homoafetivos
Correio Braziliense
Projeto pretende proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, contrariando uma decisão do STF que considerou constituicional a união dos gays
Em 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu como legítimo o casamento homoafetivo, equiparado à união estável entre homens e mulheres. A decisão do STF foi por unanimidade. Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Resolução nº 175, determinou aos cartórios que convertessem a união estável entre pessoas do mesmo sexo em casamento e celebrassem-no. A decisão da Justiça foi um grande passo para acabar com os conflitos sobre heranças e benefícios decorrentes da morte de um dos cônjuges do mesmo sexo. Representou também um avanço contra a homofobia. Em síntese, deu proteção legal à relação entre pessoas do mesmo sexo.
Em um país com vasto portfólio de preconceitos e intolerância — racismo, misoginia, machismo, homofobia, etarismo, patriarcalismo, capacitismo e outros —, não surpreende que, em meio a tantas necessidades sociais e econômicas, deputados construam um projeto de lei para proibir o casamento homoafetivo. O Brasil sofre com enormes mazelas em diferentes setores, como falta de saneamento básico, acesso à água, moradia, segurança, hospitais, escolas, creches e tantos outros equipamentos públicos que fariam profunda diferença na qualidade de vida dos brasileiros.
Em meio a tantas carências, eis que emerge, na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados, o debate em torno do relatório sobre Projeto de Lei (PL) 5.167/2009, de autoria do estilista Clodovil (morto em 2009), que estava parado na Câmara. O relator da proposição, deputado Pastor Eurico (PL-PE), defende a inserção do casamento homoafetivo no artigo 1.521 do Código Civil, que proíbe a união entre pais e filhos ou entre pessoas casadas.
Como justificativa, o parlamentar argumenta que o casamento “representa uma realidade objetiva e atemporal, que tem como ponto de partida e finalidade a procriação, o que exclui a união entre pessoas do mesmo sexo”. A prevalecer a lógica do pastor Eurico, homens ou mulheres estéreis também não poderão casar, pois não haveria como contribuir para a preservação da espécie humana. Registre-se ainda, como lamentável, o baixíssimo nível do debate promovido pelos deputados – cena, por sinal, que tem se tornado recorrente – com trocas de ofensas e ironias descabidas.
À luz dos avanços obtidos nos últimos anos, a iniciativa de parlamentares negacionistas da diversidade constitui claro retrocesso, que não pode prosperar.
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