segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Bruno Carazza - A guerra das emendas e a metástase política

Valor Econômico

Com emendas e fundão, políticos não respondem mais a demandas da sociedade

Em 1986, o ministro da Fazenda, Dilson Funaro, rodava o país reunindo-se com empresários, jornalistas e até mesmo donas de casa defendendo o congelamento de preços e outras medidas do Plano Cruzado, a estratégia do governo Sarney para debelar a hiperinflação.

Industrial de sucesso - era proprietário da fábrica de brinquedos Trol -, Funaro empregava no combate aos reajustes de preços a mesma energia com que lutava contra um câncer linfático.

Alguns anos depois, já na primeira passagem de Lula pelo Palácio do Planalto, outro empresário bem-sucedido, José Alencar Gomes da Silva, dono do grupo têxtil Coteminas e vice-presidente da República, também não se deixou abater pelas seguidas cirurgias e sessões de quimioterapia. No campo político, sua batalha era outra, à qual dedicou a mesma perseverança com que enfrentava o câncer: as altas taxas de juros praticadas no país.

Na sexta-feira tive o prazer de conhecer João Carlos Firpe Penna, repórter das antigas, um dos grandes na cobertura da política e economia em Minas Gerais, com larga experiência como editor, colunista e assessor de comunicação de empresas e órgãos públicos, além de ter atuado por 30 anos como professor de jornalismo econômico na PUC Minas.

Ao final da conversa, João Carlos me presenteou com um exemplar do seu livro “Como é ser Jornalista (e ser feliz na profissão)”, pequena e deliciosa coletânea de relatos e pensamentos sobre o exercício do seu ofício, que devorei no voo de São Paulo a Belo Horizonte.

A lembrança de Funaro e José Alencar veio de causos contados por João Carlos Penna. Dois empresários que se engajaram na política para defenderem não apenas o interesse de suas empresas, mas também para atacar problemas que, cada um a seu tempo, afligiam toda a sociedade - e por fazê-lo em circunstâncias tão adversas de saúde, angariaram admiração da população.

No mesmo dia em que conheci o jornalista mineiro, eu havia tido a oportunidade de conversar com diversos CEOs de grupos brasileiros e multinacionais sobre as incertezas do cenário político e econômico atual, bem como sobre os desafios para um crescimento sustentável e inclusivo.

O diálogo com as executivas e executivos dessas grandes empresas deixou um sentimento dúbio em mim. De um lado, chamou a atenção o fato de que, pelo menos naquele seleto grupo de pouco mais de duas dezenas de CEOs, havia consciência e comprometimento contra a desigualdade social, por uma transição mais rápida para a economia verde e a favor de reformas horizontais para impulsionar a produtividade. Por outro, senti um desânimo generalizado dos executivos em relação à qualidade dos políticos atuais e à sua disposição de tratar, com lideranças da sociedade civil, de propostas para os graves problemas atuais.

Neste ponto, é importante destacar, as queixas não se dirigiam exclusivamente à gestão de Lula, como costuma acontecer em ambientes empresariais. A reclamação era direcionada também a deputados e senadores. Na visão deles, com o passar dos anos tem ficado mais complicado debater com políticos do Executivo e do Legislativo, pelo nível cada vez mais baixo dos interlocutores e sua falta de disposição em encarar os problemas brasileiros. E a política tem repelido a participação política de lideranças sociais, como empresários.

Matutando sobre essa percepção de expoentes do empresariado quanto à baixa qualidade dos quadros na Esplanada dos Ministérios e no Congresso Nacional, bem como à baixa responsividade da classe política às demandas provenientes da sociedade civil, cogito que suas causas têm a mesma origem da atual crise entre governo e Parlamento.

Nos últimos anos, com os fundos eleitoral e partidário atingindo patamares bilionários, turbinados pelas muitas dezenas de bilhões das emendas impositivas (individuais, pix, de relator, de comissão e de bancada), o sistema político brasileiro fechou-se em si mesmo.

Da mesma forma que os parlamentares não dependem mais do governo para aumentarem suas chances de reeleição, dirigentes de partidos, deputados e senadores em geral não precisam mais se sentar com representantes da sociedade em busca de apoio eleitoral - a menos que estejam em jogo pleitos e recompensas nada republicanas.

A atual crise das emendas vem sendo retratada na imprensa como apenas uma disputa de poder entre o governo Lula e o Congresso de Lira e Pacheco. Mas essa é apenas a ponta do iceberg.

Com acesso garantido a milhões de reais advindos do financiamento público de campanha e das emendas impositivas, a competitividade política é comprometida em favor dos atuais ocupantes de cargo. Com isso, as chances de a política se oxigenar diminuem - seja no distanciamento dos políticos em relação aos eleitores, seja na renovação dos quadros. E assim pessoas vocacionadas para a vida pública acabam se voltando para projetos privados.

Funaro e José Alencar perderam não apenas suas lutas particulares contra o câncer, mas também suas batalhas públicas contra a inflação e os juros altos. O afastamento de lideranças da sociedade civil da política é, em si, sintoma de uma metástase em nosso sistema político.


2 comentários:

Daniel disse...

Excelente! O colunista tem total razão sobre o cada vez mais baixo nível dos políticos, principalmente dos deputados federais capitaneados pelo Anão Lira. Mas também tem uma cambada de jornalistas econômicos e colunistas satisfeitos com o ALTÍSSIMO NIVEL DA TAXA DE JUROS mantida pelo Banco Central, deixando nosso país entre os 3 de maior taxa de juros DO MUNDO, mesmo com uma inflação muito comportada!

ADEMAR AMANCIO disse...

É isso aí!