terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Uma loa do Natal - Ricardo José de Azevedo Marinho*

Uma loa do Réveillon

Embora seu título tenha sido traduzido como Um Conto de Natal e não como uma canção ou vilancico natalino, o livro de Charles Dickens (1812-1870) foi escrito em menos de um mês originalmente para pagar dívidas, mas tornou-se um dos maiores clássicos natalinos e é uma obra curta, uma “nouvelle”, como diriam os franceses, que aborda temas universais em torno de histórias que acontecem no Natal. Publicado em 1843 na Inglaterra vitoriana e no preludio da segunda revolução industrial, tem todas as características dos escritos de Dickens, humanidade, dor, pobreza, injustiça e redenção. Embora possa parecer, não é uma ficção apenas para crianças e/ou adolescentes, mas para o público em geral. Li-o quando menino e causou-me uma grande impressão e tornou-me um leitor de Dickens para sempre. Agora que sou mais velho, não desprezo reler suas obras.

Ebenezer Scrooge, seu protagonista, era um agiota rico, mesquinho, seco e indiferente ao sofrimento alheio. Um herdeiro do Shylock de O Mercador de Veneza, de William Shakespeare (1564-1616). Para ele, empatia, gentileza e compaixão são coisas absurdas e inúteis. Porém, na noite anterior ao Natal ele é visitado pelo fantasma de um antigo parceiro tão ganancioso quanto ele, que lhe mostra suas correntes de alma dolorosa e lhe mostra os espíritos do Natal passado, presente e futuro que mergulham nosso protagonista em sua nostalgia por juventude. Também lhe mostra o sofrimento daqueles que o rodeiam hoje e a visão sombria e dolorosa de um futuro solitário e amargo.

No dia seguinte, Scrooge muda e se redime, aproxima-se dos que o rodeiam e inicia uma nova vida serena, altruísta e afetuosa. Ensina-nos, consequentemente, que é possível mudar e para melhor, e que não estamos condenados a serem escravos dos nossos demônios.

É verdade que ainda faltam semanas para o Natal e o final deste ano de 2024, tão cheio de tragédias e dores, que na experiência do Grande Número tem sido gravíssima, mas as coisas também não têm sido fáceis para o nosso país e para a nossa região como se viu a pouco com o Acordo de Parceria Mercosul-União Europeia, já para não falar da situação planetária.

Voltamos a mencionar o primeiro Scrooge (Ainda estamos aqui - https://votopositivo-cg.blogspot.com/2024/09/boletim-brasilia-conection-bbc-059.html) e seu autor Charles Dickens porque sua caneta é muito expressiva ao apontar como a vida cotidiana está relacionada com as características gerais da vida em sociedade. É assim que os traços negativos, gananciosos e indiferentes do primeiro Scrooge não são estranhos, estão relacionados em seu espírito com regressões, violência e maus sentimentos nas sociedades. Pelo contrário, o altruísmo sereno do segundo Scrooge tem um ar familiar, assemelhando-se às virtudes da coexistência democrática e pacífica a nível social.

Porque essa questão mobiliza a seguinte indagação: qual é a natureza do governo em curso, nascido da Frente Democrática de 2022 reconhecida no discurso ao Congresso Nacional em primeiro de janeiro de 2023? Está claríssimo que ele busca a normalização nas relações entre democracia política e democratização social no Brasil. De como é que nós derrotamos o regime golpista pela via que todos conhecemos, não revolucionária, democraticamente construída.

É este quadro que nós temos que dominar. Antes mesmo da conquista da democracia política em 2022, o processo da democratização social avançava no País, por força mesmo da luta pela vida na pandemia. O fato é que, quando esses dois processos coincidem, o que temos assistido, tem sido um avanço da democratização social associada às conquistas que se vêm fazendo em termos de democracia política.

Assim, o governo concebeu, à ingleses no Brasil, um tipo de reincorporação dos de baixo, contando, primeiro com o plano de estabilização fiscal e os efeitos derivados, em termos distributivos de renda, provocados por isto. Os indicadores sociais são todos nesta direção. Claro está que essa incorporação passa pela revolução passiva do Grande Número.

Desta forma, nós temos que aprimorar a articulação dessas duas dimensões que recortam a sociedade brasileira de hoje: a da democracia política e a da democratização social. Sem isso, creio que vamos perder a oportunidade da passagem do primeiro Scrooge para o segundo Scrooge, como perdemos todas as oportunidades até aqui.

É isso o que há de esperançoso nesta história que ainda pulsa a despeito dos caminhos e descaminhos do que aí está. Uma loa ao Natal, uma loa ao Réveillon.

*Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.

 

Um comentário:

Anônimo disse...

O autor faz 2 referências ao "Grande Número", que sinceramente não entendi, fiquei boiando... Alguém poderia me ajudar a entender tais referências?