Correio Braziliense
Mesmo a análise divergente do ministro Luiz Fux — tão festejada pelo bolsonarismo — reconhece que a prova dos autos mostra a existência do atentado contra a democracia
Nas últimas semanas, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi palco de dias históricos para o país. Pela primeira vez por aqui, um ex-presidente da República foi julgado por tentar golpear a democracia e subverter o Estado Democrático de Direito. Ao lado de Jair Bolsonaro, ocuparam o banco dos réus, na condição de próceres da aventura golpista, militares das Forças Armadas e influentes integrantes de seu governo. Com a sonora condenação proclamada na última quinta-feira, a Corte anuncia que golpes e quarteladas — práticas, infelizmente, frequentes na história brasileira — não encontram mais lugar em nossa experiência democrática pavimentada pela Constituição Cidadã.
A acusação da Procuradoria-Geral da República
demonstrou o funcionamento do grupo que se organizou para dar cabo a
perniciosos planos para apunhalar a democracia brasileira. Planos que
resultaram em uma bomba no aeroporto de Brasília, em bloqueios de estradas e
nos ataques de 8 de Janeiro. Conspirações que visaram o assassinato do
presidente e do vice eleitos pelos brasileiros, além de ministros do STF.
Tramas que, felizmente, foram descortinadas e impedidas, inclusive por
militares que não aceitaram a aventura golpista e que depuseram sobre os fatos.
As defesas também desempenharam função
central no julgamento. Aliás, que bom haver defesa! Justamente por estarmos em
uma democracia, devemos prezar, sempre, pelas garantias da ampla defesa e do
devido processo legal. Foi o que vimos nesses dias de julgamento: advogados
combativos e qualificados que, com argumentos técnicos, engrandecem a tradição
jurídica brasileira. É o que dá segurança e legitimidade ao julgamento do STF,
que sentenciou acusados amplamente defendidos.
Mas há um aspecto desse julgamento ainda
pouco analisado: o significado da divergência. Pois, se de um lado prevaleceu o
entendimento da maioria composta pelos ministros Alexandre de Moraes, Flávio
Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin; houve, de outro, o voto parcialmente
divergente do ministro Luiz Fux. O dissenso ensejou reações desproporcionais,
da repulsa ao êxtase, como se inquinasse ou deslegitimasse o julgamento. Não
deveria, pois não faz uma coisa nem outra.
Em seu voto, Luiz Fux reconhece: houve uma
tentativa de golpe no Brasil. Ele acolhe, é verdade, preliminares sobre
questões formais, como a da competência para o processo. Mas também ultrapassa
esse ponto e adentra ao mérito. Ao fazê-lo, Fux condena Mauro Cid e Braga Netto
— candidato a vice de Bolsonaro — por crimes contra o Estado Democrático de
Direito. Não trataremos da possível contradição em se condenar o ajudante de
ordens que delata, mas absolver o ordenador que é delatado. A questão é outra:
mesmo a análise do ministro divergente — tão festejada pelo bolsonarismo —
reconhece que a prova dos autos mostra a existência do atentado contra a
democracia.
A democracia pressupõe a possibilidade de
divergência. Pode-se criticar — é fato que o ministro surpreendeu ao adotar
premissas garantistas que se acostumou a rechaçar em inúmeros processos —, mas
deve-se respeitar o dissenso. O voto de Luiz Fux, longe de deslegitimar o STF,
faz o contrário: reforça sua independência e faz cair por terra a narrativa de
que a ação penal da trama golpista seria um jogo de cartas marcadas, como se
diz para atacar as instituições e até pleitear sanções econômicas contra o
país. É preciso voltar a divergir sem odiar.
Reconhecidas as provas cabais de uma
tentativa de golpe de Estado (e quanto a isso, não há dissenso), não sobra
espaço para narrativas negacionistas, nem para ignorar a gravidade dos fatos ou
eximir de responsabilidade aqueles que incorreram nas piores ações possíveis. A
Constituição Federal e o direito internacional proíbem a concessão de anistia
por crimes contra a democracia, justamente para que ninguém se sinta autorizado
a atentar contra as instituições impunemente, confiando na própria influência
para livrar-se solto se o golpe fracassar.
Ao sentenciar a trama golpista, a jovem democracia brasileira mostra a sua maturidade e nos possibilita virar a página do atraso. Virar a página para que fique no passado qualquer resquício aventureiro inspirado por autoritarismos que não devem ter lugar. Para que tornemos a discordar, sem odiar; a trilhar, com segurança, o caminho do pluralismo, da democracia e da cidadania — o caminho da Constituição.
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