sábado, 27 de dezembro de 2008

A velha Câmara (1)

Coisas da Política
Villas-Bôas Corrêa
DEU NO JORNAL DO BRASIL


Como um presente de Natal aos meus possíveis leitores, decidi oferecer, neste e no próximo sábado, o regalo de um texto de Machado de Assis, colhido na mina da primorosa edição da Academia Brasileira de Letras do livro de robustas 327 páginas que resgata do esquecimento o "curso literário em sete conferências na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo", de 1915 a 1917, do escritor, acadêmico e um profundo conhecedor da vida e obra do solitário de Cosme Velho, Alfredo Pujol, falecido em 20 de maio de 1930.

Presente do meu amigo, jornalista e escritor Murilo Mello Filho. Com impecável página de apresentação do também escritor e acadêmico Alberto Venâncio Filho. Atirei-me à leitura com a ânsia de um leitor de mais de meio século, na terceira ou quarta releitura das suas Obras completas. E deparei-me, na página 257, da sexta conferência, com a crônica do jovem escritor sobre o seu hábito de freqüentar como ouvinte as sessões das câmaras. E que mais tarde, como jornalista político, cobriu durante anos o Senado, como registra na antológica crônica O velho Senado.

Mas não desperdicemos espaço. Vamos ao texto machadiano selecionado por Alfredo Pujol: "Um dos meus velhos hábitos é ir, no tempo das câmaras, passar as horas nas galerias. Quando não há câmaras, vou à municipal ou à intendência, ao júri, onde quer que possa fartar o meu amor dos negócios públicos, e mais particularmente da eloqüência humana. Nos intervalos, faço cobranças – ou qualquer serviço leve que possa ser interrompido sem dano, ou continuado por outro. Já se me têm oferecido bons empregos, largamente retribuídos, com a condição de não freqüentar as galerias das câmaras. Tenho-os recusado todos; nem por isso ando mais magro.

Nas galerias das câmaras ocupo sempre um lugar na primeira fila dos bancos; leva-se mais tempo a sair, mas como eu só saio no fim, e às vezes depois do fim, importa-me pouco essa dificuldade. A vantagem é enorme; tem-se um parapeito de pau, onde um homem pode encostar os braços e ficar a gosto. O chapéu atrapalhou-me muito no primeiro ano (1857), mas desde que me entendo furtaram um, meio novo, resolvi a questão definitivamente. Entro, ponho o chapéu no banco e sento-me em cima. Venham cá buscá-lo! Não me perguntem a que vem esta página dos meus hábitos. É ler, se queres. Talvez haja alguma conclusão. Tudo tem fim neste mundo. Eu vi concluir discursos que ainda me parece estar ouvindo.

Cada coisa tem uma hora própria, leitor feito às pressas. Na galeria, é meu costume dividir o tempo entre ouvir e dormir. Até certo ponto, velo sempre. Daí em diante, salvo rumor grande, apartes, tumulto, cerro os olhos e passo pelo sono. Há dias em que o guarda vem bater-me no ombro.

– Que é?

– Saia daí, já acabou.

Olho, não vejo ninguém, recomponho o chapéu e saio.

Na mesma crônica, Machado de Assis salta da Câmara para as suas reminiscências como cronista do Senado, como num ensaio para O velho Senado, que tem espaço cativo em todas as antologias. Voltemos ao texto machadiano:

"No Senado, nunca puder fazer a divisão exata, não porque lá falassem mal; ao contrário, falavam geralmente melhor que na outra Câmara. Mas não havia barulho. Tudo macio. O estilo era tão apurado que ainda me lembro de certo incidente que ali se deu, orando o finado Ferraz, um que fez a lei bancária de 1860. Creio que era então ministro da Guerra. E dizia, referindo-se a um senador: "Eu entendo, senhor presidente, que o nobre senador não entendeu o que disse o nobre ministro da Marinha, ou fingiu que não entendeu". O visconde de Abaeté, que era o presidente, acudiu logo: "A palavra fingiu acho que não é própria". E o Ferraz replicou: "Peço perdão a Vossa Excelência, retiro a palavra".

Ora, dêem lá interesse às discussões com estes passos de minuete! Eu, mal chegava ao Senado, estava com os anjos. Tumulto, saraivada grossa, caluniador para cá, caluniador para lá, eis o que pode manter o interesse de um debate. E que é a vida, senão uma troca de cachações?

"A República trouxe-me quatro desgostos extraordinários, um logo remediado, os outros três, não. O que ela mesma remediou foi a transferência das câmaras para o Palácio da Boa Vista. Muito político e muito bonito para quem anda com dinheiro no bolso; mas obrigar-me a pagar dois níqueis de passagem por dia, ou ir a pé, era um despropósito".

Acabou meu espaço. Sábado que vem, a segunda parte.

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