Mário Soares: "Tenho esperança de que os partidos populistas venham a sucumbir e que a Europa possa voltar a ser o que foi, socialista ou democrata-cristã e de esquerda"
Francisco Góes – Valor Econômico
Mário Soares, ex-presidente e ex-primeiro ministro de Portugal, já foi descrito, em seu país, como "pai da democracia". Em 1974, foi um dos líderes que surgiram com a Revolução dos Cravos, conduzida pelos militares. Em 2014, prestes a completar 90 anos - em 7 de dezembro -, Soares continua em atividade. Escreve todas as semanas no "Diário de Notícias", de Lisboa, e preside a Fundação que leva seu nome. "Apesar de não desempenhar nenhum cargo no PS [Partido Socialista], mantém enorme influência no partido e continua a ser escutado pela opinião pública", diz o historiador David Castaño, autor do livro "Mário Soares e a Revolução".
Nesta entrevista ao Valor, Soares mostra preocupação com os rumos da democracia e o regime de austeridade a que a economia do país foi submetida. "Como diz o papa Francisco, [a austeridade] mata."
Valor: Quais são as principais heranças deixadas pela Revolução dos Cravos quando se olham esses 40 anos em retrospectiva?
Mário Soares: As heranças deixadas pela Revolução dos Cravos foram imensas. Digo por ordem cronológica: a liberdade, a paz, a descolonização, o fim das guerras coloniais, o Estado social, a ciência ao nível de todos, como a cultura e as artes, a concertação coletiva entre empresários e sindicatos, o Serviço Nacional de Saúde, os direitos humanos, o auxílio importante dado aos retornados [portugueses que voltaram das colônias depois da revolução], a adesão à União Europeia e o intercâmbio com todos os Estados democráticos. Foram os militares - e só eles - que fizeram a Revolução dos Cravos, que entusiasmou a Europa e o mundo, e que abriram depois as portas aos partidos políticos. A consolidação democrática foi feita depois do 25 de novembro de 1975 [quando os militares puseram fim à influência da esquerda radical no país]. Portugal nunca poderia ser, como se disse, a "Cuba europeia". Nem os soviéticos nunca o quiseram. Estavam em plena détente [distensão] com os Estados Unidos e a Europa.
Valor: Sua vivência naqueles fatos que levaram Portugal à democracia comprova a ideia dos indivíduos como agentes da história? O senhor concorda com essa ideia?
Soares: É evidente. Não as pessoas em si, mas o povo no seu conjunto.
Valor: Sua história política se confunde com a luta pela democracia. Até que ponto essa luta determinou a instauração de um regime democrático em Portugal nos moldes que vemos hoje?
Soares: Eu fiz o que pude. Mas quem determinou uma verdadeira instauração de um regime democrático consolidado foi o Partido Socialista no seu conjunto, e de norte a sul, sem desfazer quanto aos outros partidos democráticos e aos independentes.
Valor: Como vê a democracia hoje em Portugal e também no mundo? Quais são as perspectivas para a democracia?
Soares: Muito mal. Na Europa e no resto do mundo, embora, felizmente, com a exceção dos Estados Unidos e da maioria dos Estados latino-americanos. Tenho esperança, no entanto, de que a Europa possa voltar a ser o que foi e que os partidos populistas, mesmo quando se intitulam falsamente social-democratas, venham a sucumbir e a Europa possa voltar ao que era, socialista ou democrata-cristã e de esquerda.
Valor: Como explicar a baixa satisfação de Portugal com a democracia?
Soares: Por que o atual governo procede de forma antidemocrática, destruindo o Estado social, o Serviço Nacional de Saúde, bem como a Justiça, dado que os corruptos estão todos impunes. As grandes desigualdades sociais são o produto do atual governo, para o qual só conta a Troika [Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional]. Também a União Europeia, que perdeu, com a chanceler [Angela] Merkel [da Alemanha], a solidariedade entre os Estados europeus.
Valor: O que mudou em Portugal em 40 anos?
Soares: Nos primeiros 37 anos, tudo mudou para incomparavelmente melhor. Nos últimos três anos, tudo mudou, do que se conseguiu e foi imenso, com o atual governo, mas para pior.
O ex-presidente reclama a demissão do atual governo, o "desaparecimento" da Troika e o fim da austeridade, que, diz o papa, "mata"
Valor: O que precisa ser feito para Portugal retomar uma trajetória de crescimento econômico, criação de empregos e melhoria das condições de vida dos portugueses?
Soares: A demissão do atual governo, o desaparecimento da Troika e o fim da austeridade, que, como diz o papa Francisco, mata.
Valor: Quais são as razões para a crise enfrentada pelo país?
Soares: A crise começou na América [EUA], que, felizmente, a superou. Mas não na Europa, onde tem ido de mal a pior.
Valor: Em 1970, em Nova York, o senhor afirmou que a democracia era incompatível com o prosseguimento da guerra colonial. Como avalia a situação atual das ex-colônias africanas?
Soares: É verdade. São todos [países] independentes, adotaram o português, têm progredido e pertencem à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, inclusive o Brasil, o nosso país irmão.
Valor: No governo de Marcello Caetano (1968-1974), ainda no Estado Novo, o senhor foi acusado de ter praticado "atos lesivos ao bom nome de Portugal". Enfrentou mais de dez prisões, deportação para São Tomé e o exílio. O que ficou de lembrança desse difícil período?
Soares: É exato. Falta dizer que só uma vez fui julgado. Mas a deportação para São Tomé e depois a expulsão de Portugal foi sempre sem julgamento prévio. Antes, de puro arbítrio.
Valor: Quais as marcas que perduram em Portugal, resultantes daqueles longos meses de transição política entre 1974 e 1975?
Soares: Naquele período, fui [como ministro dos Negócios Estrangeiros] convencer os dirigentes dos países que nos fizeram a guerra que, após o 25 de Abril, íamos, como membros da ONU [Organização das Nações Unidas], a reconhecer a autodeterminação das nossas colônias.
Valor: No livro "Mário Soares e a Revolução", o historiador David Castaño diz que o senhor continua a ser visto, na esquerda, como alguém que se aliou à direita e impediu que se tentasse aplicar em Portugal um projeto alternativo à democracia pluralista do tipo ocidental. A direita, apesar de reconhecer o seu papel em 1975, continua a argumentar que o senhor contemporizou bastante com os comunistas. Concorda com essa visão?
Soares: O livro de David Castaño é excelente, cuja leitura me sensibilizou muito. Agradeci-lhe em público. Quanto ao que disseram outras pessoas, nunca me interessou nada. E não vou gastar o meu tempo com isso.
Valor: O que o senhor espera para Portugal quando está chegando ao fim a ajuda dos programas financeiros da Troika?
Soares: Lá chegará a altura em que a Troika deixará de aproveitar o dinheiro [como o pagamento de juros sobre os empréstimos] que o atual governo, com total subserviência, lhe dá, muito dele tirado do empobrecimento dos portugueses.
Valor: Como os portugueses vão continuar a conviver com as políticas de austeridade impostas pela União Europeia? Quanto tempo mais de austeridade aguenta o povo português?
Soares: A austeridade mata, como disse o bom papa Francisco. Enquanto houver Troika e governo [a coligação PSD-CDS], a austeridade continua a desgraçar o povo português, que realmente não aguenta por muito mais tempo.
Valor: Em artigo recente, o senhor disse que não haverá uma saída limpa para Portugal. Como será a saída, então?
Soares: Não será limpa. Será para o atual governo muito suja.
Valor: No mês passado, o presidente Aníbal Cavaco Silva perguntou, em discurso, se os partidos portugueses só são capazes de se entender em situações de emergência. Ele citou conversações ocorridas em 2013 com vistas a um programa de salvação nacional que permitiria ao país voltar a acessar os mercados. Por que não foi possível chegar a um acordo político interpartidário?
Soares: É óbvio que não há acordo. Parece que quem faz tal pergunta [Cavaco Silva] quer um governo de salvação nacional. Eu também. Mas para isso era necessário que o atual governo se demitisse. Mas o presidente Cavaco Silva até agora nunca teve coragem de demitir o governo.
Valor: No Brasil, a Comissão da Verdade está investigando os abusos cometidos pela ditadura militar. Em Portugal, não houve necessidade de um "acerto de contas" com aqueles que conduziram o país por anos de ditadura? Como avalia a iniciativa brasileira?
Soares: É verdade. Os militares de Abril foram extremamente tolerantes e pacíficos. Sempre os admirei - e admiro - por isso. Quanto aos brasileiros, não posso pronunciar-me. Como grande amigo do Brasil, como sou, devo respeitá-los.
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