- O Estado de S. Paulo
Chico Heráclio (1885-1974), o poderoso dono do poder nas plagas de Limoeiro (PE), sabia como ninguém interpretar o ânimo dos eleitores. Dominava o voto de cabresto no Agreste Pernambucano e vizinhanças. Mas não conseguia encher as urnas na capital. Indagado sobre o motivo, a raposa política saiu-se com esta: “O eleitor do Recife é muito a favor do contra”. Pois bem, a máxima do último dos coronéis, como era designado, serve para explicar a disposição do eleitorado brasileiro das grandes cidades, no ciclo eleitoral em curso, que deixa antever um cidadão “muito a favor do voto contrário”.
O rol de qualificações desse eleitor é extenso: indignado, revoltado, saturado, descrente, desesperançoso, cansado. O último adjetivo traduz bem a motivação das ruas: o voto do cansaço, que atinge o clímax no processo eleitoral contemporâneo, desenvolvido sob a paisagem devastada da política e da gestão pública (escândalos, corrupção, desvios). Essa é a modalidade que explica o avanço da ex-senadora Marina Silva no ranking eleitoral e sugere um redesenho completo no tabuleiro do jogo político, eis que começa a ser considerada um quadro competitivo na esfera de um eventual - e provável - segundo turno em 26 de outubro.
O sentimento de mesmice na vida institucional empurra imensa parcela do eleitorado a correr em direção ao perfil que mais se identifica com inovação, ética, seriedade, sendo a ex-seringueira do Acre a beneficiária principal da corrente mudancista, ainda mais quando a onda emotiva criada com a morte trágica de Eduardo Campos a eleva aos píncaros da fama e da visibilidade. Mas a hipótese de que possa vir a ser vitoriosa há de ser conferida, se não contrabalançada, por um conjunto de fatores que servem de argamassa para a construção do edifício político, como bases partidárias, máquina pública, cabos eleitorais, recursos financeiros e, sobretudo, a multifacetada tipologia eleitoral. Daí a propriedade da pergunta: os votos rebeldes (“a favor do contra”) suplantarão os sufrágios que costumam entrar no panelão tradicional, onde se misturam grupos que ainda primam por cultivar velhos costumes e práticas?
Um ligeiro exercício para identificar núcleos, setores e áreas serve de biruta para indicar a direção do vento na hora da escolha. Vejamos.
O voto do cansaço, claro, abre a planilha e dá as caras nos mais diferentes conglomerados, desde as galeras jovens, desencantadas com a política, até os emergentes da classe C, que descobriram o caminho das ruas, desde o ano passado, para fazer ecoar suas demandas. Trata-se de poderosa tuba de ressonância, com particular desempenho nas redes sociais.
Deixando esse exército de vanguarda, sigamos os batalhões de retaguarda, começando com os bolsões tradicionais das margens, propensos a dar um “voto de coração”, em agradecimento e reconhecimento a quem lhes proporcionou “um rico (?) dinheirinho”. A massa fisiológica dos fundões e até de alguns espaços centrais tenderá a recompensar candidatos que se identificam, por exemplo, com o Bolsa Família (cerca de 50 milhões de beneficiados) e o Mais Médicos (cerca de 30 milhões de assistidos), a par de outros pacotes de benefícios.
Olhemos também para os votos agarrados aos partidos, não em função de sua índole ideológica (que só tem peso no bojo de duas ou três pequenas siglas radicais), mas pela malha gigantesca de empregos na máquina pública das três instâncias federativas. As massas funcionais votam pensando em garantir o emprego. Não são poucos os milhões de eleitores deste bloco, sem esquecer os conglomerados sob a égide do sindicalismo atrelado ao Estado.
O convite, agora, é para entrar no barulhento andar da classe média B, essa com poder de gerar influência, criando marolas ao jogar pedrinhas no meio do lago e fazendo com que as ondas corram até as margens. Essa divisão tende a votar de maneira consciente, racional, compulsando atores, analisando propostas e se identificando com perfis mais próximos ao seu dia a dia. Gira no entorno do centro para a esquerda, identificando-se com a modernidade, porém evitando qualquer pista que leve ao fundamentalismo messiânico.
Apesar de menor, a cada pleito o voto conservador, outro bloco, não segue a onda emotiva que se espraia no território. Rejeita quadros localizados na esquerda do arco partidário.
No outro lado do espectro político, distingue-se o contraponto, um posicionamento duro que transita pelas siglas nanicas de corte ideológico. Ao longo dos anos, esse eleitorado tem diminuído.
São esses alguns tipos de votos de nosso painel eleitoral. Será possível que um tsunami emotivo embaralhe as regras do jogo, liquidifique todas as tendências e faça o “voto da indignação” assumir o pódio, elegendo uma pessoa que garante, caso seja vitoriosa, dar adeus à velha ordem política? Sim, isso é até possível. Significaria a vitória de um ícone identificado com as forças sociais em curso. A carga de mudanças que tal situação deflagraria seria inimaginável, a partir de um arrastão que levaria de roldão os carros das reformas fundamentais, a começar da reforma política.
No curto prazo, uma “revolução” nesses moldes parece pouco provável, mas na política o imponderável - como bem sabemos - teima em deixar marcas. Há, em todo esse rearranjo, algo positivo. Trata-se da taxa de conscientização política, que se expande sob o empuxo de uma sociedade que se mostra desejosa de participar do processo de mudanças.
À guisa de conclusão, uma historinha com Getúlio Vargas. Um repórter, na saída do Catete, indagou: “Presidente, o que é preciso para vencer uma eleição?”. Respondeu: “Muita coisa. Boa memória, por exemplo. Ou usar a política como água no feijão. Basta ver, o que não presta flutua, o que é bom repousa no fundo”.
O eleitor começa a ver o que é bom e o que é ruim no feijão do nosso cotidiano.
Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP,
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