sábado, 16 de fevereiro de 2019

EUA vivem um inesperado alvorecer do socialismo

Por Edward Luce | Financial Times / Valor Econômico, 15/2/2019.

Quem acredita que o momento populista dos EUA já passou, deveria pensar duas vezes. Donald Trump prometeu tornar os EUA grandes novamente. Metade do Partido Democrata agora promete tornar o país socialista pela primeira vez na história. Boa parte do que se acreditava sólido agora evapora no ar. Há poucos anos, a maioria dos democratas tinha medo de se dizer liberal, o termo para esquerdista no vocabulário político americano. Agora, abraça o socialismo com naturalidade.

Eles podem acabar às lágrimas. Uma derrota para Trump em 2020 seria um túmulo precoce para o amanhecer socialista dos EUA. Até lá, contudo, os eleitores americanos deverão continuar tendo vislumbres de algo raro - um debate ideológico genuíno. Seria precipitado prever qualquer desfecho.

A principal prova disso tudo é o "New Deal Verde", de Alexandria Ocasio-Cortez. Sob qualquer ângulo, seu projeto é absurdamente extravagante. Segundo uma estimativa, as obras públicas e novos benefícios do governo previstos no plano custariam US$ 6,6 trilhões por ano, quase 70% a mais do que o orçamento federal dos EUA, que é de US$ 4 trilhões.

Nunca se viu nada parecido no país. Ocasio-Cortez parece ter pouca ideia de como fazer para pagar os custos da proposta. Alguns dizem que o projeto é autofinanciável, porque iria estimular a economia. Outros apostam no lançamento de títulos de dívida, livre de custos. De acordo com uma teoria monetária moderna, os governos podem simplesmente emitir dinheiro novo sem causar inflação.



Poucos democratas mostram preocupação com esses detalhes, por enquanto. Depois de terem visto Trump ganhar a Presidência com sua marca característica de pensamentos mágicos, eles agora seguem os mesmos passos. É tentador depreciar isso como sendo uma longa carta de suicídio do partido. Mas isso seria subestimar o grau de inquietação nos EUA.

Quase todos os nomes democratas com ambições presidenciais no Senado - incluindo Kamala Harris, Cory Booker, Elizabeth Warren e Kirsten Gillibrand - apoiam a proposta de Ocasio-Cortez. Ela se tornou uma espécie de teste definitivo das credenciais de um candidato. Há três motivos para levar tudo isso muito a sério.

O primeiro é que o New Deal Verde já entrou no imaginário popular. Da mesma forma que Ocasio-Cortez é chamada pelas iniciais AOC, seu projeto de lei também é conhecido pela sigla em inglês, GND. Poucos políticos ou projetos ganham essa distinção. Basta pensar em John F. Kennedy (JFK) ou Franklin Delano Roosevelt (FDR).

O fato de que em poucos meses essa ex-garçonete de bar do Bronx, de 29 anos, tenha saído do zero para ser identificada pela onipresente sigla AOC diz muito sobre o apetite por mudanças nos EUA. Ela é hoje a figura mais influente na política dos EUA, depois de Trump.

O segundo motivo é que a proposta de Ocasio-Cortez é mais de uma declaração arrojada de intenções do que de uma proposta legislativa séria. Assim como se dizia que os eleitores de Trump o viam seriamente, mas não o interpretavam literalmente, o mesmo pode ser aplicado ao New Deal Verde.

Os que ficam fazendo contas podem estar deixando de perceber o principal. O objetivo do projeto é sacudir o debate nos EUA. Nesse sentido, já foi bem-sucedido. O termo "verde" não é mais uma preferência de estilo de vida. É uma parte do cálculo econômico. Na mente popular, agora há um elo entre aquecimento global e investimento público.

Terceiro, os americanos parecem ansiar por opções de escolha. Houve tempos em que as eleições americanas podiam ser caricaturizadas como Coca-Cola contra Pepsi - o gradualismo político e social dos democratas contra o livre mercado dos republicanos. Por ora, essa timidez acabou. O exemplo de Trump rendeu imitações. A escolha agora parecer ser mais entre uma dose de vodca e um suco superverde. Quando a política é moldada de forma tão incisiva, há poucos lugares nos quais se esconder.

Trump vê esse socialismo verde como a sua chance de salvação eleitoral. Os democratas querem tirar de você seus carros, suas vacas, diz ele. Além disso, vão te obrigar a viajar de trem, o que nos EUA é o equivalente a ser enviado para um gulag - os antigos campos soviéticos de trabalhos forçados.

Se o instinto dele estiver certo, Ocasio-Cortez poderia se tornar a arma secreta de Trump. Obrigar os democratas a votar no projeto de lei dela é uma oportunidade que os republicanos não vão deixar passar. Votar contra o projeto poderia afetar as perspectivas de um senador democrata na base eleitoral do partido. Votar a favor poderia torná-los intragáveis para o eleitorado americano em geral.
A história indica que os republicanos têm a vantagem tática. Mas o passado não é necessariamente um guia válido. O passado nos dizia que Trump teria poucas chances de ganhar a indicação de seu partido. Especialistas cometeram o erro de interpretá-lo literalmente, mas não vê-lo seriamente.

Hoje, a maioria da geração Y nos EUA se descreve como socialista. Na prática, estão pensando na Escandinávia e não na Venezuela. Persuadi-los a participar das eleições em números maiores é o Santo Graal da política democrata. Se Ocasio-Cortes conseguir isso, ela mudará o clima na política americana.

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