sexta-feira, 5 de novembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Congresso tem o dever de derrotar PEC do Calote

O Globo

Só a necessidade de apresentar uma vitória política depois de reveses sucessivos explica o afã do presidente da Câmara, Arthur Lira, para aprovar a todo custo a Proposta de Emenda Constitucional de número 23 (PEC-23), apelidada PEC dos Precatórios — ou PEC do Calote.

Essencial à estratégia eleitoral do governo em 2022, o texto aprovado em primeiro turno na Câmara ameaça não apenas a estabilidade econômica ao autorizar a ruptura do teto de gastos. Se aprovado, também se tornará objeto de contestação jurídica tanto pelo conteúdo — pois legaliza o calote em dívidas judiciais cujo pagamento já foi decidido em última instância — quanto pela forma adotada por Lira para garantir a aprovação.

As consequências econômicas da ruptura do teto já vêm sendo sentidas na cotação do dólar, na alta da inflação e na escalada dos juros. O pretexto do governo para promover a lambança é pagar a 17 milhões o novo Auxílio Brasil de R$ 400, substituto do Bolsa Família desenhado não para combater a pobreza ou a desigualdade, mas tão somente para aumentar as chances de reeleição do presidente Jair Bolsonaro.

É um pretexto sem cabimento. Seria perfeitamente possível criar um programa social mais barato e mais eficaz que coubesse sob o teto. O que Lira e o governo querem, na verdade, é manter — se possível ampliar — o espaço orçamentário destinado a seus interesses paroquiais, em particular às emendas do relator, expediente por meio do qual verbas são distribuídas à revelia dos organismos de controle e fiscalização. É dinheiro fundamental para a reeleição dos parlamentares em seus redutos.

Controlando esse mecanismo opaco, Lira e o Centrão têm tentado garantir o apoio necessário à aprovação de propostas legislativas. O fracasso na PEC do Ministério Público, porém, lançou um sinal de alerta. A PEC-23 só saiu vitoriosa por quatro votos porque Lira usou outras manobras mais criativas — e mais questionáveis. Ainda que a Câmara já tenha retomado sessões presenciais, convocou uma sessão virtual. Com os trabalhos em andamento, baixou uma norma mudando a regra de votação para permitir o voto remoto de deputados que estavam em Glasgow, na COP26. Um despropósito.

Para conquistar os votos que faltavam, Lira foi ainda obrigado a introduzir um dispositivo permitindo que estados e municípios furem a fila em dívidas relativas à educação. Fez isso lançando mão de outra manobra duvidosa, a “emenda aglutinativa”. Todas as piruetas contribuem para abrir mais brechas à contestação, ampliando a insegurança jurídica em torno de um texto já profícuo nesse quesito (a OAB apontou 30 inconstitucionalidades).

O calote viola a decisão do Supremo Tribunal Federal que julgou inconstitucional parcelar dívidas da União. O Congresso pode mudar a Constituição, mas não criar contradições. “Negar o pagamento de uma dívida estatal judicialmente reconhecida e transitada em julgado é fator de insegurança jurídica para qualquer cidadão de bem”, escreveu Marcus Abraham, desembargador no TRF da 2ª Região. Fora a fragilidade jurídica, a PEC padece de deficiências técnicas graves. Para calcular o teto, usa uma estimativa da inflação, cujo valor real só é conhecido no ano seguinte ao Orçamento — um absurdo lógico.

Não há outra saída: se a PEC-23 passar em segundo turno na Câmara, caberá ao Senado derrubá-la. A derrota do governo seria uma vitória do Brasil.

Leilão do 5G recoloca Brasil no mapa global das telecomunicações

O Globo

Em meio às más notícias no front da economia, o país recebeu ontem raras boas-novas de Brasília. Na venda das faixas de frequência da telefonia celular de quinta geração (5G) pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), os três lotes de alcance nacional ficaram com Claro, Telefônica (dona da marca Vivo) e TIM. Um grupo que arrematou outro lote criou uma nova telefônica para operar em todo o país. A venda de lotes menores só deverá ser concluída hoje, mas o resultado de ontem já é suficiente para proclamar o leilão um sucesso.

Com ofertas separadas que somaram R$ 1,1 bilhão, Claro, Vivo e TIM conquistaram o direito de explorar o mercado de 5G em cidades com mais de 30 mil habitantes, passaram a ter a obrigação de construir uma rede de fibra óptica de alta capacidade para 530 municípios e uma rede de uso exclusivo do governo federal, entre outros compromissos. O leilão ainda foi palco do surgimento da Winity II Telecom, a nova operadora de telefonia móvel lançada pelo fundo Pátria Investimentos, que arrematou, por R$ 1,4 bilhão — com mais de 800% de ágio — , o lote nacional responsável pela expansão do 4G em áreas hoje sem cobertura. A empresa terá de cobrir 625 municípios e mais de mil trechos de rodovias, num total de 31 mil quilômetros. Os demais lotes eram voltados a cidades com menos de 30 mil habitantes em todas as regiões.

A transição do 4G para o 5G não se resume ao acréscimo de um número. Tampouco pode ser medida apenas pelo salto na velocidade de transmissão dos celulares (embora ela possa ser multiplicada por cem). Sendo conservador, o mínimo a dizer é que se trata de uma revolução. À medida que a rede fique disponível e novas tecnologias sejam desenvolvidas, será possível conectar lavouras, criar indústrias totalmente automatizadas e avançar em áreas como medicina remota ou carros autônomos. O 5G dará origem a todo um novo ecossistema de negócios, comparável ao aberto pela internet no final do século passado.

Embora o ágio de algumas disputas tenha sido alto, o grosso do dinheiro não vai para os cofres do governo. O leilão acertadamente privilegiou a exigência de investimentos. O compromisso de pôr a infraestrutura de pé em prazos rígidos faz parte dos contratos. Para ter uma ideia dos desafios, basta analisar o número de antenas que deverão ser erguidas. Hoje o país tem cerca de 100 mil. Para completar a cobertura de 4G, serão necessárias mais 200 mil. Para ter uma cobertura de 5G, o total precisará chegar a 700 mil.

Se o cronograma for cumprido, as vencedoras levarão o novo serviço a todas as capitais até julho de 2022. Municípios com mais de 500 mil habitantes serão atendidos até 31 de julho de 2025. O prazo para atingir todos os municípios com mais de 30 mil habitantes é fim de julho de 2029. Será uma transformação capaz de recolocar o país no mapa global das telecomunicações e de abrir a porta para que nos tornemos também um centro de desenvolvimento de tecnologia. Tudo dependerá de sabermos incentivar o conhecimento e acolher o investimento.

PEC do Calote, uma ameaça a todo o País

O Estado de S. Paulo

Se definitivamente aprovada, a PEC dos Precatórios converterá o calote em direito constitucional, uma de suas muitas consequências desastrosas

Caso seja aprovada, a PEC dos Precatórios converterá o calote em direito constitucional, uma de suas consequências desastrosas.

Além de arrebentar o teto de gastos e facilitar a farra com dinheiro público, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios, se aprovada e posta em vigor, transformará o calote em direito constitucional – pelo menos o calote praticado pelo Tesouro da União. Será, talvez, a mais audaciosa reforma promovida pelo desgoverno do presidente Jair Bolsonaro. Além disso, poderá valer como vigorosa resposta a quem cobra do Executivo federal maior empenho reformista. Com essa mudança, argumentam o presidente e seus acólitos, o poder central terá dinheiro para o Auxílio Brasil, versão turbinada do programa Bolsa Família, e a política social será ampliada e reforçada. Já quem se opõe a essa transformação, diz o coro oficialista, pouco deve importar-se, portanto, com os brasileiros em pior situação.

Esse coro inclui o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara, Arthur Lira, fidelíssimo, até agora, a seu grande eleitor para o cargo atual, o presidente Bolsonaro. Graças, em grande parte, ao esforço de Lira, 312 deputados, 4 além do mínimo necessário, votaram a favor da PEC dos Precatórios. Garantiram sua aprovação em primeiro turno, mas ainda faltaria enfrentar o segundo turno na Câmara e dois no Senado. Entre os senadores, segundo se calcula, a resistência ao projeto deve ser maior. Não se pode, no entanto, tratar essa proposta como algo normal e razoável.

Aprovada, a PEC dos Precatórios produzirá vários desastres. Ao converter o calote em direito constitucional, deformará o próprio conceito de precatório, até agora um crédito confirmado e protegido por sentença judicial. Ao retardar a liquidação desse crédito segundo sua conveniência, o Executivo imporá seus critérios a uma determinação do Judiciário. Além disso, uma âncora fiscal inscrita na Constituição, o teto de gastos, ficará subordinada a outro dispositivo constitucional, construído para atender às demandas do presidente e de seus associados. Também a noção de ordem constitucional se enfraquece, como valor, quando mudanças desse tipo – improvisadas e concebidas para servir às conveniências do momento – são aprovadas e inscritas no sistema básico de normas.

Ao desmoralizar uma âncora do sistema fiscal, o presidente e seu séquito, formado principalmente pelo fisiológico Centrão, fortalecem as dúvidas sobre o futuro das contas oficiais e passam um recado sinistro: atropelados os credores dos precatórios, restará alguma segurança para outros credores do governo? Que juros serão compatíveis com o risco de financiar o Tesouro?

Essas perguntas obviamente remetem a outras questões, como a conveniência de buscar segurança em outros mercados. Diante da nova ameaça ao teto de gastos, o dólar voltou a subir, prenunciando pressões inflacionárias mais fortes. O Banco Central já reiterou a disposição de promover um duro aperto, com juros altos, para conter os desajustes associados ao risco fiscal. Menor crescimento econômico e crise social prolongada são efeitos fáceis de prever.

Mas o ataque ao teto de gastos é defendido pelo presidente como condição para ajuda aos pobres. Há quem mencione também uma situação excepcional. São argumentos falsos. Haveria dinheiro, se outros gastos – com emendas de relator, por exemplo – fossem cortados. O auxílio emergencial aos mais necessitados em 2020 foi reduzido à metade em setembro de 2020 e extinto em janeiro. Cerca de 19 milhões de cidadãos foram jogados na miséria.

O auxílio voltou em abril, com menor valor e menor alcance e previsto para acabar antes do fim do ano. Prometeu-se ampliar o Bolsa Família, mas a extensão bastaria apenas para assimilação da fila de espera. Faltaria definir a situação de mais de 20 milhões de assistidos pela ajuda emergencial. Não há uma situação nova, mas um drama prolongado e agravado pela política inadequada. Violando o teto e os precatórios, Bolsonaro tentará conciliar a ajuda eleitoral aos pobres com a manutenção de dinheiro para sua base. O resto é conversa para quem acredita em terra plana.

Desconfiança e esperança na COP-26

O Estado de S. Paulo

Os compromissos assumidos pelo Brasil na conferência do clima foram importantes. Mas a questão central é: qual a credibilidade de quem faz as promessas?

Muito além de um governo, há um país inteiro comprometido com a preservação ambiental e o combate às mudanças climáticas. É o que, por ora, se pode concluir da participação do Brasil na COP-26, a Conferência do Clima da ONU, em Glasgow.

Apesar dos esforços do presidente Jair Bolsonaro – um notório agressor não apenas da chamada causa ambiental, como também dos ambientalistas – para dilapidar o soft power do Brasil na seara ambiental construído ao longo de décadas, a imagem do País no fórum internacional não foi tão deteriorada como se esperava. Temendo as duras críticas que decerto receberia por sua postura negligente e destrutiva em relação ao meio ambiente, Bolsonaro decidiu não ir à COP-26, mas o Brasil foi bem representado por 10 dos 22 governadores de Estado que compõem o Consórcio Brasil Verde, além de empresários, banqueiros, acadêmicos e organizações não governamentais.

Essa união de esforços entre governos subnacionais e a sociedade civil em prol da preservação do meio ambiente transmitiu um claro recado ao mundo civilizado: o Brasil é maior do que Bolsonaro e mais consciente de sua parcela de responsabilidade pela redução da emissão de gases que provocam o efeito estufa do que faz parecer o governo de turno. Diante da inação da administração federal, quando não de sua ação deletéria, representantes da sociedade brasileira apresentaram na COP-26 planos concretos para desenvolver a Região Amazônica de forma sustentável, combater os crimes ambientais e participar mais ativamente de um futuro mercado global de carbono.

Evidentemente, a sociedade civil pode muito, e tem feito o que está ao seu alcance para se contrapor ao descalabro da administração pública federal, mas não pode tudo. O governo central ainda é chave para a formulação e implementação de políticas públicas ambientalmente responsáveis.

A bem da verdade, o governo federal não esteve totalmente ausente da COP-26. Importantes compromissos oficiais foram assumidos. Em discurso transmitido no pavilhão do Brasil no fórum do clima, Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, anunciaram um aumento na previsão de cortes na emissão de gases de efeito estufa, dos atuais 43% para 50% até 2030, um compromisso firmado no Acordo de Paris, em 2015. Especialistas alertam, no entanto, que esse aumento, na realidade, não passa de uma “pedalada climática”. O governo federal alterou a base de cálculo para aplicação do novo porcentual. Inicialmente, tomava-se como parâmetro para redução os 2,8 bilhões de toneladas de gases emitidas em 2005. Agora, estima-se que tenham sido emitidos 2,4 bilhões de toneladas de gases na atmosfera naquele ano. Ou seja, na prática, não haveria aumento da meta brasileira assumida no Acordo de Paris.

Pressionado pelos Estados Unidos e pela União Europeia (UE), o Brasil também assumiu o compromisso de reduzir em 30% a emissão de gás metano, em relação ao patamar de 2020, até o fim desta década. O presidente americano, Joe Biden, e a presidente da Comissão da UE, Ursula von der Leyen, acreditam que reduzir a emissão de metano, o segundo gás que mais provoca o efeito estufa, atrás do CO2, seja a forma mais rápida de reduzir o aquecimento global. O Brasil tem cerca de 220 milhões de cabeças de gado e, portanto, é um dos maiores emissores de gás metano do planeta. Desse modo, atingir a meta pactuada significa reduzir o consumo de carne vermelha no País ou investir em rações que, por meio de avanços tecnológicos, reduzam a emissão de metano na pecuária.

Em suma, os compromissos assumidos pelo Brasil na COP-26 foram importantes. As metas são arrojadas. A adesão do País aos pactos firmados em Glasgow é muito positiva. Mas o papel aceita tudo. A questão central continua sendo a mesma desde a Cúpula de Líderes sobre o Clima organizada por Biden, em abril deste ano, e da qual Bolsonaro participou. Qual a credibilidade de quem faz as promessas? O histórico do governo federal em relação à proteção do meio ambiente fala por si só. É ver para crer.

5G, enfim

Folha de S. Paulo

Brasil atrasou leilão de forma inconcebível e deverá cumprir prazos exíguos

Com um atraso de mais de um ano, o Brasil enfim realizou a primeira rodada de leilões das frequências para a tecnologia móvel do 5G.

O certame correu como o previsto pelo mercado, com grandes operadoras levando os lotes principais e dando espaço a saudáveis disputas por frequências de menor velocidade ou com escopo regional.

Serão cerca de R$ 50 bilhões movimentados inicialmente, dos quais R$ 40 bilhões na forma de investimentos obrigatórios em 20 anos.

Aí entram candidatos a elefantes brancos, análogos aos programas de universalização de orelhões embutidos na privatização da Telebrás nos anos 1990, como a suposta conexão integral do inóspito território amazônico.

Jair Bolsonaro, sempre ele, chegou a fazer proselitismo tosco a partir dessa regra, ao pontificar que a imagem do Brasil no exterior melhoraria porque os índios da região poderiam contar uma versão edulcorada da incandescente realidade da floresta.

Ao menos esses são delírios folclóricos por parte do mandatário, que quase colocou muito a perder neste leilão. O presidente havia dito que a modelagem seria uma decisão pessoal sua, sugerindo que impediria a presença da Huawei.

A gigante chinesa é o bicho-papão do mercado de infraestrutura de redes, dominando 80% das atuais malhas de 3G e 4G brasileiras. Suas concorrentes principais são as europeias Nokia e Ericsson.

Ocorre que, desde a eclosão da Guerra Fria 2.0 entre EUA e China em 2017, a empresa virou alvo de Washington, que pressionou com sucesso aliados a não adotarem suas redes sob a alegação de que estarão se expondo a espionagem.

Noves fora o fato de que todas as potências bisbilhotam o que lhes é alheio, não há evidências de que a Huawei realmente tenha culpa.

Para o entorno ideológico e militar de Bolsonaro, contudo, isso sempre foi tema central, o que ajudou a atrasar o leilão. Felizmente, suas cabeçadas diplomáticas com a China se mostraram limitadas.

Foi decidido que a rede do governo federal terá de ser construída com material ocidental pelas ganhadoras, que de resto poderão usar infraestrutura chinesa.

A gambiarra destravou o nó político, e o leilão enfim foi em frente. Seu edital, contudo, tem metas que parecem irrealistas exceto para fins de campanha eleitoral: prevê que todas as capitais do país já gozem do serviço em julho de 2022.

Resta então cobrar tal execução exemplar, por ilusória que seja, para tentar recuperar o tempo perdido até aqui. O 5G é o início de uma revolução econômica, assim como o 4G foi antes dele. Modos produtivos e relações interpessoais serão afetadas, e o Brasil já está bastante atrasado nesta corrida.

Trumpismo sem Trump

Folha de S. Paulo

Vitória republicana na Virgínia mostra vigor da retórica usada por ex-presidente

Realizada no ano seguinte ao do pleito presidencial, a eleição para o governo do estado americano da Virgínia costuma ser encarada como uma espécie de referendo acerca do ocupante da Casa Branca.

Daí que a vitória do candidato republicano, Glenn Youngkin, soe inevitavelmente como um alerta tanto para Joe Biden como para o seu Partido Democrata. Ainda mais por ter se dado num estado em que o atual mandatário venceu com uma vantagem de nada menos de dez pontos percentuais.

Mais do que um reflexo do início errático do governo Biden —marcado pela caótica retirada das tropas do Afeganistão, uma nova onda de Covid-19 e a dificuldade para aprovar seus projetos no Congresso—, o triunfo do postulante republicano é também um sinal claro da sobrevida do trumpismo na política dos Estados Unidos.

Mas um trumpismo, diga-se, sem a presença de Donald Trump.

Seguindo o modelo das chamadas guerras culturais, habilmente explorado pelo ex-presidente, Youngkin centrou sua campanha na questão educacional, forjando para si o papel de protetor dos mais jovens diante de supostas doutrinações no ambiente escolar.

O republicano defendeu a ampliação da presença dos pais na definição do conteúdo escolar e prometeu proibir o ensino da teoria crítica da raça (escola de pensamento que estuda como o racismo permeia o funcionamento das instituições), ainda que esse tema nem faça parte do currículo estadual.

Ao mesmo tempo em que era endossado por Trump e discursava sobre temas caros aos seus apoiadores de áreas rurais e pequenas cidades, Youngkin buscou se dissociar da figura do ex-presidente, mantendo-o longe do estado e de sua campanha —numa estratégia bem-sucedida para atrair também o eleitor moderado dos subúrbios.

Embora o revés democrata na Virgínia possa ser contrabalançado por triunfos importantes em outros locais, como o obtido nesta semana na cidade de Nova York, que escolheu pela segunda vez na história um prefeito negro, a eleição de Youngkin representa, ao fim e ao cabo, mais do que uma vitória pontual de seu partido.

Ela fornece algo como uma receita para os republicanos nas eleições legislativas de 2022, capaz de arregimentar tanto eleitores leais a Trump como antagonistas dele. Resta saber se o ex-presidente, conhecido pelo ego estelar, aceitará o papel de coadjuvante.

Biden perde atração e apoio para agenda de mudanças

Valor Econômico

A possibilidade de um governo de centro voltado para a esquerda será aniquilada com uma vitória republicana nas eleições legislativas

Após nove meses de governo, o presidente americano Joe Biden está cercado de problemas por todos os lados. Como aconteceu com seu colega democrata Barack Obama, do qual foi vice, os republicanos estão agindo unanimemente contra os projetos de sua administração - sem contar que se alinham com Donald Trump, que tentou interromper a democracia e a posse do sucessor. Mas, ao contrário de Obama, além da barreira republicana, Biden enfrenta dissensões dentro do próprio partido. Era previsível que a ala esquerda, revigorada, traria problemas ao centrista Biden. Diante da tímida maioria no Senado, são os democratas conservadores que impedem a aprovação dos principais planos econômicos e sociais, com gastos de US$ 4,7 trilhões. A paralisia corroi a popularidade do presidente.

Biden coleciona dissabores no cenário externo e doméstico. Uma saída mal planejada do Afeganistão - o objetivo era correto - levou o alvo para a invasão do país, os fanáticos do Talebã, que acobertavam Bin Laden, a voltar ao poder em questão de semanas. Segundo a própria política externa americana, os EUA não teriam mais nada a fazer ali. A retirada atabalhoada, porém, lembrou uma humilhação nacional, a retirada do Vietnã, ainda que desta vez o Exército americano não tenha sido derrotado.

Após criticar corretamente Donald Trump pelo trabalho de destruição da reputação americana no mundo, Biden deu prioridade ao confronto com a China, sem desmontar as políticas do antecessor - foi um pouco mais polido na linguagem. As barreiras tarifárias contra Pequim seguem em vigor, assim como o cerco à transferência de tecnologia de ponta, um dos fronts estratégicos de uma disputa que não acabará tão cedo.

Para conter a ofensiva geopolítica da China na Ásia, a diplomacia de Biden deu um drible em acordos comerciais firmados pela França com a Austrália para o fornecimento de submarinos, anulados e transformados em aquisição de submarinos americanos, dentro da aliança entre Austrália, Reino Unidos e EUA. A face multilateralista de Biden é sincera, mas práticas unilaterais - hábito americano - desagradaram tradicionais aliados dos EUA a quem Trump, por princípio, desprezava. Refazer laços destruídos pelo antecessor, está sendo mais difícil do que se poderia supor.

Os pacotes econômicos domésticos, trilionários, visam por um lado recuperar a infraestrutura, alinhá-la à economia do futuro, verde e com tecnologia de ponta, e aumentar a produtividade. Por outro lado, os US$ 3,5 trilhões originais, que já encolheram à metade, buscaram dar uma resposta à indagação de por que um populista autoritário como Trump foi eleito.

Os planos mostrariam que o Estado pode alterar a balança social, por décadas excessivamente pendente para os ricos, em favor dos pobres e da classe média. Eles contemplavam pré-escola gratuita, US$ 555 bilhões para enfrentar o aquecimento global, ampliação do acesso à educação, com qualidade aprimorada, e maior disponibilidade da saúde a todos os cidadãos.

Os planos empacaram quando foram discutir seu financiamento, que deveria provir de maiores impostos para empresas (reduzidos por Trump), taxação de recompra de ações e sobretaxas sobre pessoas com renda maior que US$ 10 milhões. Os senadores democratas Kyrsten Sinema e Joe Manchin se opuseram e, com o equilíbrio matemático entre os dois partidos no Senado, Biden perderá a votação.

A vitória do republicano Glen Youngkin para o governo da Virginia acendeu sinais de alerta: é real a chance de perda de controle da maioria das casas legislativas em novembro de 2022. A queda da popularidade de Biden indica que os democratas têm um problema. Pesquisa da ABC mostrou que quase um terço dos americanos julgam o presidente competente, sua taxa de aprovação, baixa após menos de um ano de governo, é de 42%, e que 71% acham que os EUA estão indo na direção errada. Os democratas vão bem na gestão da pandemia, mudanças climáticas e aborto e os republicanos em boa parte do resto: crime, economia, imigração e segurança.

A possibilidade de um governo de centro voltado para a esquerda, encarnado por Biden, será aniquilada com uma vitória republicana nas eleições legislativas. Com décadas de experiência parlamentar, o presidente tentará corrigir rumos, prenunciando choques internos relevantes. Trump, forte, continua à espreita do fracasso democrata para voltar à Casa Branca.

 

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