terça-feira, 31 de outubro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

O impacto da fala desastrada de Lula nos juros

O Globo

Descompromisso com as metas fiscais revelado pelo presidente dificulta a missão do Banco Central

A penúltima reunião de 2023 do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) começa amanhã com o mercado num clima de dúvida. O encontro acontece quatro dias depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter declarado que a meta fiscal de 2024 dificilmente será zero. Ao ser questionado hoje sobre o tema, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, reiterou seu compromisso com a meta assumida pelo governo: “Minha meta está estabelecida: vou buscar o equilíbrio fiscal de todas as formas justas e necessárias para que tenhamos um país melhor”.

A declaração desastrada de Lula vai além de desautorizar publicamente quem ele próprio escolheu para cuidar da economia. Lula volta a agir como se fosse um comentarista econômico, não um ator com poder de influenciar expectativas do mercado. Com isso, só contribui para dificultar o desafio do BC. Haddad tentou aliviar o clima, e a maioria dos analistas acredita que o BC cortará os juros em meio ponto percentual (para 12,25%). Mas cresceu a dúvida sobre quando terminará o ciclo de queda iniciado em agosto.

A projeção para a taxa básica em dezembro de 2024, que já esteve em 9%, começou a subir, como mostrou o relatório Focus divulgado hoje. As declarações de Lula provavelmente ajudarão a deteriorá-la ainda mais. Caso a perspectiva se confirme, o BC, cujo mandato é zelar pelo combate à inflação, será obrigado a manter o juro mais alto. Por enquanto, o banco tem cumprido sua missão. A previsão atual é que a inflação feche 2023 e 2024 acima do centro da meta (3,25% e 3%), mas abaixo do teto (4,75% e 4,50%).

Lula demonstrou desconhecimento sobre a necessidade de o governo equilibrar suas contas para mudar a trajetória ascendente da dívida pública, de modo a contribuir para a queda dos juros. Causa espanto a incompreensão, dada a gravidade do cenário externo. A expectativa é que a política monetária americana continue restritiva por um bom tempo devido à resiliência da inflação. Por isso as taxas de longo prazo nos Estados Unidos estão em alta. Com juros mais altos, os títulos da dívida americana atraem mais capital externo, e o dólar se valoriza. Nos países em que perde força, os importados encarecem e aumentam a inflação. Isso ainda não aconteceu por aqui, mas essa é uma fonte de preocupação.

Não é a única. Com a guerra na Ucrânia, o mercado global de energia sofreu um solavanco. Agora o conflito é no Oriente Médio. Relatório do Banco Mundial divulgado ontem projeta, com base na desaceleração da economia global, que o barril de petróleo deverá cair de US$ 90 para US$ 81 no ano que vem. Mas, caso a guerra entre Israel e Hamas se alastre e países exportadores cortem a produção, o documento prevê dois cenários alarmantes. No médio, os estragos seriam semelhantes aos provocados pela guerra no Iraque em 2003, e o valor do barril chegaria a US$ 121. No pior, comparável ao embargo de 1973, alcançaria US$ 157.

Na ata da última reunião do Copom, o presidente e os diretores do BC ressaltaram a necessidade de cooperação do governo: “Tendo em conta a importância da execução das metas fiscais já estabelecidas para a ancoragem das expectativas de inflação e, consequentemente, para a condução da política monetária, o Comitê reforça a importância da firme persecução dessas metas”. Ao final da reunião desta semana, precisarão ser mais enfáticos.

Mudar legislação penal não basta para combater tráfico e milícia

O Globo

Medida é necessária, mas problema na luta contra organizações criminosas começa antes da cadeia

O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, afirmou em entrevista ao GLOBO que a legislação brasileira é leniente demais com traficantes e milicianos. Citou o exemplo de líderes criminosos presos e condenados que, dois ou três anos depois, são soltos em razão do regime de progressão penal. “Queremos que esse criminoso de tráfico e de milícia, que pega em arma, lava dinheiro e usurpa serviços concessionários públicos em prol da milícia e do tráfico, não tenha a progressão”, afirmou Castro. “E que ele vá direto para presídio federal.” Da forma como hoje são combatidas as organizações criminosas, disse ele, “o crime compensa”. Castro sugere que o Congresso mude a lei, ou até a Constituição se necessário, para equiparar os crimes de tráfico e milícia ao terrorismo.

A ideia merece atenção dos parlamentares. É preciso, porém, entender que uma simples mudança na lei — por mais necessária — não terá o condão de resolver uma questão tão complexa. A infiltração das organizações criminosas no Estado acaba por dificultar o cumprimento de qualquer lei.

Reportagem do GLOBO mostrou como o principal líder miliciano em atividade hoje no Rio foi preso duas vezes — e duas vezes solto por decisão judicial. Na primeira, mesmo preso em flagrante com dinheiro, armas e registros de contabilidade, ele contou com a boa vontade de um juiz. Na segunda, quando já acumulava 16 anos em condenações, subornou a polícia e saiu da cadeia sem dificuldade, revelou investigação posterior. Os policiais até apagaram os registros da prisão do sistema da Polícia Civil. Mais recentemente, ele foi absolvido num processo em que era acusado de constituir milícia privada. A Justiça ainda desbloqueou recursos de uma empresa suspeita de lavagem de dinheiro. Seu irmão também foi absolvido de várias acusações.

Em 2019, ano mais recente para o qual estão disponíveis dados, apenas 16% das investigações de assassinatos no Rio resultaram em denúncia no período de um ano, revelou o estudo “Onde mora a impunidade”, do Instituto Sou da Paz. No caso específico do crime de constituição de milícia, um levantamento do GLOBO com 82 processos judiciais mostrou que foram absolvidos 38% dos acusados no Rio entre 2013 e 2022. Apenas os condenados e presos é que contam com os regimes generosos de progressão penal, apontados por Castro.

Os problemas no combate às organizações criminosas começam, portanto, bem antes da cadeia. Primeiro, na promiscuidade que mantêm com corporações policiais e outros agentes do Estado, impedindo que as investigações prossigam. Segundo, na ação leniente de juízes, que acaba por transformar mesmo condenações em vitórias dos criminosos. Castro tem razão em apontar a legislação penal permissiva como fator que favorece os bandidos — isso vale para tráfico, milícia e também para todo tipo de crime, de feminicídios a corrupção. Mas de nada adiantará uma lei mais dura se persistir a infiltração do crime na polícia, na Justiça, nas prisões e até na política.

Seca no Norte é fator adicional de preocupação com a economia

Valor Econômico

Custa a crer a inexistência de planos alternativos de logística, uma vez que a seca é tradicional nesta época

A seca histórica na região Norte já afeta negativamente a vida de 15% da população do Amazonas, que está com problemas de abastecimento de água e locomoção, e com 60 dos seus 62 municípios em estado de emergência. Agora, entrou no radar a preocupação com o impacto da seca na atividade econômica no fim de ano. Pelos rios são conduzidos 95% do transporte dos insumos que abastecem as fábricas da Zona Franca de Manaus e escoados produtos acabados para o varejo do país. Já se dá como certo que as vendas de eletrônicos da Black Friday em novembro perderão descontos, e há o receio de que o Natal seja afetado. Há problemas também no escoamento de produtos agrícolas de exportação pelos portos do Arco Norte.

As indústrias da Zona Franca de Manaus cobrem 26 setores econômicos e empregam 500 mil pessoas, 12,5% da população do Estado. O polo é responsável por toda a produção de ar-condicionado, televisores, máquinas de lavar louça e micro-ondas do país. Boa parte dos equipamentos eletrônicos, como celulares (30%), fones e relógios inteligentes (40%), são lá produzidos, assim como 80% das bicicletas e quase 100% das motocicletas.

O primeiro sinal de alerta veio das montadoras de motocicletas, que, já no início de outubro, reclamaram das dificuldades para a chegada de insumos e escoamento da produção, e do consequente aumento dos fretes. Depois de três anos consecutivos de produção afetada pela pandemia, as empresas esperavam um período mais tranquilo. Tudo parecia correr bem até setembro, quando a produção acumulada em 1,19 milhão de unidades mostrava o melhor resultado em nove meses desde 2013. Mas a seca histórica pode frustrar a expectativa de que o ano mantenha a recuperação. No fim de outubro, quatro empresas que juntas representam 19,6% do mercado - Yamaha, Kawasaki, JTZ e Triumph - anunciaram férias coletivas.

As empresas do polo geralmente programam férias coletivas entre o Natal e os primeiros dias de janeiro, período de menor demanda. Mas este ano será diferente. Cerca de 30 empresas informaram o Sindicato dos Metalúrgicos no Amazonas (SindMetal- AM) que estão antecipando as férias por conta da falta de insumos causada pela seca. Entre elas está a Samsung, que produz em Manaus de tablets e smartphones a televisores e aparelhos de ar-condicionado. A Philco não descarta a providência. Algumas empresas afirmam que se preveniram, antecipando a compra de componentes em julho. Uma delas é a Mondial. Mas restou a dificuldade de despachar a mercadoria para os centros consumidores.

O porto de Manaus, situado onde o Rio Negro encontra o Rio Amazonas, registrou o nível mais baixo desde que os registros começaram a ser feitos em 1902, superando 2010, que tinha sido o menor nível até agora. Problema maior está nas hidrovias do Rio Madeira e do Solimões, que conectam as principais cidades da região amazônica. O Rio Amazonas abriga a navegação de cabotagem e também foi afetado pela baixa das águas. Uma alternativa tem sido o uso de balsas, que, no entanto, são mais lentas e transportam 5% a 10% do volume dos navios.

Há reflexos também na produção de energia. A redução da vazão dos rios da região Norte obrigou o desligamento de uma das maiores hidrelétricas do país, a usina de Santo Antonio, situada no rio Madeira, em Rondônia. Outra grande hidrelétrica no mesmo rio, Jirau, seguiu operando para fornecer energia para o sistema Acre-Rondônia. Com isso, foi desligado o linhão de transmissão do rio Madeira, o maior do país, com 2,4 mil quilômetros, que conecta a produção para o Sistema Interligado Nacional (SIN), usado para transferir energia de uma região para outra do país em caso de necessidade. Felizmente os reservatórios do Sudeste e Centro-Oeste estão bem abastecidos, com mais de 60% da capacidade.

O governo federal prometeu contribuir com R$ 100 milhões para a dragagem do rio Amazonas, na expectativa de aumentar a profundidade para comportar o calado dos navios que chegam ao porto com insumos ou transportam grãos, soja e milho. O sucesso da empreitada, porém, depende principalmente do fluxo de água. No caso dos grãos, a alternativa dos produtores do Centro-Oeste seria voltar ao passado e retomar a antiga - e cara - rota de escoar a safra pelos portos de Santos ou Paranaguá, que era utilizada antes do desenvolvimento dos portos do Arco Norte.

Custa a crer a inexistência de planos alternativos de logística, uma vez que a seca é tradicional nesta época. A redução da vazão dos rios está sendo intensificada neste ano pelo El Niño e pelo aumento da temperatura do Atlântico Norte, fenômenos naturais, exacerbados pelo aquecimento do planeta, o que reforça a importância das iniciativas em favor do ambiente. O Amazonas foi um dos Estados que mais desmataram e queimaram a floresta nos últimos tempos, a ponto de a cidade de Manaus ter enfrentado dias de céu escurecido pela fumaça.

Janela que se fecha

Folha de S. Paulo

Censo revela envelhecimento do país, que começará a perder bônus demográfico

"Noventa milhões em ação, pra frente Brasil, no meu coração" animava o país, em 1970, a famosa canção ufanista de Miguel Gustavo Martins, quando a seleção se consagraria campeã mundial de futebol, pela terceira vez, no México.

Naquele ano, em meio ao chamado "milagre econômico", o PIB cresceria 10,4%, sustentado pelo grande endividamento externo na ditadura militar (1964-1985) e a migração acelerada do campo para as cidades. O país era também consideravelmente mais jovem.

Dados do Censo de 2022 divulgados na semana passada, contudo, revelam, meio século depois, um Brasil que envelhece rápido, impondo desafios cada vez maiores para o aumento do bem estar em um contexto de crescimento econômico persistentemente baixo.

Se, entre 1970 e 2022, a população aumentou pouco mais de 2,2 vezes, de 90 milhões para 203,1 milhões, os brasileiros com 65 anos ou mais saltaram 7,5 vezes, de 2,95 milhões para 22,2 milhões. Os acima de 80 anos decuplicaram, passando de 451 mil para 4,6 milhões.

Na contramão, o total de crianças e pré-adolescentes (0 a 14 anos) despencou de 42% para 19,8%. E aqueles no miolo da estratificação, onde concentram-se os que têm idade para trabalhar (15 a 64 anos), são agora 69,3%, ante 54,7% em 1970 —e 68,5% no Censo de 2010.

Para o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, professor por duas décadas na Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, os últimos 50 anos têm sido o "período dourado" do bônus demográfico. Mas 2022 parece marcar o auge das condições favoráveis ao Brasil.

Tudo indica que, a partir de agora, essa janela de oportunidade comece a se fechar, com o aumento da chamada razão de dependência.

O termo refere-se à quantidade de menores de 14 anos e maiores de 65 que existem para cada pessoa em idade ativa, entre 15 e 64 anos. A regra serve para analisar a carga para sustentar indivíduos que não estão trabalhando e que, portanto, dependem dos ativos.

Com a perspectiva de diminuição do total de trabalhadores como proporção de idosos, o desafio que se coloca é aumentar a produtividade dos que estão no mercado, para que gerem mais riqueza.

Neste quesito, infelizmente, o Brasil apresenta resultados decepcionantes, sobretudo pelo fato de quase 40% da força de trabalho ser informal, setor em que os empregos são bem menos produtivos.

Na raiz do problema está, mais uma vez, a persistente crise fiscal brasileira e os juros elevados pagos pelo setor público, que inibem investimentos produtivos e a criação de mais vagas formais. A janela do bônus demográfico que se fecha é mais um alerta para que o problema seja resolvido o quanto antes.

Reforma azeitada

Folha de S. Paulo

Congresso precisa ser ágil ao votar alterações necessárias no ensino médio

Finalmente o governo federal enviou ao Congresso o projeto de lei que altera a reforma do ensino médio. O programa foi sancionado em 2017, com um cronograma que previa conclusão para 2024.

A reforma foi alvo de protestos —muitos de cunho político e corporativista— que exigiam, de modo insensato, sua revogação. Afinal, o objetivo da mudança é válido: reduzir a evasão escolar ao aumentar a autonomia dos alunos na escolha de um currículo mais focado em suas aptidões.

Contudo, de fato, a implementação foi problemática. Antes de 2017, os três anos do ensino médio tinham 2.400 horas de disciplinas obrigatórias a todos os alunos. A reforma expandiu a carga para 3.000 horas, sendo 1.800 para as tradicionais, como português e matemática, e 1.200 para os chamados itinerários formativos, com matérias de escolha dos estudantes.

O problema é que as redes de ensino não contam com infraestrutura (salas de aula, laboratórios, oficinas, material didático etc.) e professores suficientes, com formação especializada, para uma expansão ampla e de qualidade.

Ademais, desconsiderou-se a situação dos jovens que conciliam estudos e trabalho, para os quais o aumento da carga horária poderia levar à evasão escolar.

Por isso, o Ministério da Educação agiu com sensatez ao interromper a implantação da reforma em abril e instituir uma consulta pública com entidades do setor.

Segundo o projeto enviado ao Congresso, a carga horária das disciplinas tradicionais passa de 1.800 (60%) para 2.400 (80%).

Os quatro itinerários formativos se mantêm, mas articulam três áreas do conhecimento —como por exemplo "Linguagens, Matemática e Ciências da Natureza"—, em vez de focar em apenas uma.

A eles, soma-se a possibilidade de oferta de ensino técnico profissional, fundamental para inserção de jovens no mercado de trabalho —neste caso, a carga do currículo comum diminui para 2.100 horas.

Ainda é preciso enfrentar a questão dos jovens que trabalham. Em setembro, Camilo Santana, ministro da Educação, indicou que criaria programa de bolsa e poupança para alunos do ensino médio, mas ainda não foram definidos critérios, orçamento e implementação.

Agora, espera-se que o Congresso aja com celeridade na votação do projeto. Os quase 8 milhões de jovens que cursam essa etapa do ensino não podem mais esperar.

A tribulação de Haddad

O Estado de S. Paulo

O que todos queriam saber é se o ministro ainda contava com respaldo de Lula para buscar o déficit zero em 2024. Sua irritação ante as perguntas dos jornalistas demonstrou que não

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tinha uma tarefa difícil de ser cumprida nesta segunda-feira: convencer o País de que o governo ainda tem como meta zerar o déficit fiscal em 2024. Bem que ele tentou, mas o presidente Lula da Silva tornou seu trabalho impossível.

Como reafirmar um compromisso sobre o qual já havia muito ceticismo sem desautorizar o chefe? Havia pouquíssimas formas de fazê-lo de maneira convincente, mas a convocação de uma entrevista, logo após uma reunião entre Haddad e o presidente, alimentou expectativas.

Esperava-se de Haddad que dissesse que Lula não escolheu bem as palavras ou foi mal interpretado. Não seria o primeiro nem o único ministro da área econômica a fazê-lo. O que se viu, porém, foi bastante constrangedor. Depois de um fim de semana de silêncio, Haddad ainda achava que poderia tergiversar.

Primeiro, chegou ao Ministério acompanhado dos economistas Paulo Picchetti e Rodrigo Alves Teixeira, nomes indicados para a diretoria do Banco Central (BC). Numa segunda-feira normal, este seria um tema de muito interesse da imprensa. Não era o caso.

Depois de apresentá-los, o ministro passou a meia hora seguinte a repetir a importância de medidas para recuperar a arrecadação e a lamentar decisões do Congresso, do Judiciário e de governos anteriores que contribuíram para erodir a base fiscal. Sem corrigi-las, não seria possível elevar as receitas – e este, segundo Haddad, teria sido o contexto no qual Lula se baseou para reduzir a importância do déficit zero.

Claro que não colou. Incisivamente questionado pelos jornalistas sobre a meta fiscal do ano que vem, o ministro passou a responder às perguntas com ironia e irritação. Por fim, referiu-se à meta de déficit zero como “minha meta” e encerrou a entrevista no momento em que foi instado a explicar claramente o que queria dizer com isso. Não respondida, a dúvida era pertinente: afinal, a meta fiscal de Haddad é a meta fiscal de Lula?

O ministro pode ter a meta que quiser, desde que esteja combinado com seu chefe. Do contrário, não será uma meta crível. Desde sempre, todos sabiam, inclusive dentro do governo, que a meta de déficit zero era utópica, e nunca ficou claro como Haddad pretendia reverter o rombo das contas públicas em tão pouco tempo sem anunciar medidas estruturais para aumentar impostos ou reduzir os gastos públicos.

Que a base fiscal do governo tem sido corroída nos últimos anos não é segredo para ninguém. A maior evidência disso é que as receitas não têm acompanhado o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). O superávit pontual atingido em 2022 não teria sido alcançado se não fosse a disparada das cotações do petróleo.

As despesas, por outro lado, têm subido de forma constante nos últimos anos e tiveram um impulso extra, muito além do necessário para recompor o Orçamento destroçado pelo então presidente Jair Bolsonaro, na emenda constitucional da transição – e isso no primeiro ano de mandato de Lula, período preferencial para os governantes adotarem medidas mais austeras.

Atingir o déficit zero era impossível. O que todos queriam saber é se Haddad ainda contava com o respaldo político do presidente para perseguir ativamente a meta e defendê-la. Sua irritação demonstrou que não.

O incômodo do ministro é compreensível, mas ele terá de começar a se acostumar. As enfáticas perguntas dos repórteres, que Haddad não gostou, voltarão a ser feitas pelo setor produtivo, pelos investidores e pelos parlamentares.

Durante a entrevista, o dólar voltou a se valorizar ante o real, a despeito da onda de enfraquecimento da moeda norteamericana no exterior; o Ibovespa caiu, descolado da alta registrada nos mercados internacionais; e os juros futuros continuaram a subir, embora seja esperado que o Banco Central anuncie uma nova redução dos juros amanhã. Não foi um movimento meramente especulativo, mas demérito do desacreditado Haddad.

Não é improvável que deputados e senadores, ao discutirem a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024, se sintam à vontade para propor a alteração da meta à revelia do ministro. Mas, se hoje Haddad sangra em praça pública, a culpa não é das perguntas incisivas da imprensa. É da sinceridade irresponsável do presidente da República.

Paridade de gênero é questão republicana

O Estado de S. Paulo

Tão mais justo será o País quanto menor for o abismo entre a demografia, onde as mulheres são a maioria da população, e a política, em que se perpetua a sub-representação feminina

Novos dados do Censo 2022, divulgados pelo IBGE no dia 27 passado, revelam que o Brasil é um país cada vez mais feminino. No ano passado, 51,5% da população era de mulheres, ante 48,5% de homens. São números que, como há muito se sabe, não apontam para uma nova realidade, mas que confirmam uma tendência demográfica que só tem se consolidado no tempo.

Também não é novidade, eis o ponto a lamentar, que, malgrado avanços sociais conquistados nos últimos anos no que concerne à paridade de gênero, a representação feminina na política brasileira ainda é muito desigual. O Congresso, para citar apenas o exemplo mais eloquente desse descompasso, ainda é dominado por homens e, talvez por isso, ainda se move orientado por visões de mundo e percepções da vida em sociedade marcadamente masculinas.

Essa separação entre duas realidades muito nítidas, a política e a demográfica, não dá conta de encaminhar a miríade de interesses em jogo em uma sociedade diversa e complexa como a brasileira. Tão mais justo será o País quanto menor for o abismo entre a demografia, onde as mulheres são a maioria da população, e a política, em que se perpetua a sub-representação feminina. É nessa direção que a sociedade deve caminhar caso almeje a construção de um Brasil mais inclusivo no futuro.

A pavimentação desse caminho auspicioso não será feita apenas pela força da lei, como a das cotas eleitorais, que obriga cada partido ou coligação a preencher o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo nas eleições para Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. As cotas agem como uma espécie de motor de partida para transformações que, ao fim e ao cabo, hão de vir da própria sociedade.

Alinhadas à formação de novas lideranças, uma das principais missões dos partidos, as cotas para candidaturas de gênero, desde que preenchidas com espírito público e respeito à lei, tendem a aumentar a presença feminina no Congresso e, desse modo, fortalecer a agenda de interesses das mulheres no Poder Legislativo – o que acaba estimulando um círculo virtuoso em toda a sociedade. Hoje, lamentavelmente, vê-se o contrário: com menos mulheres do que homens no Congresso, há menos espaço para a discussão e promoção de seus direitos.

A sociedade civil está repleta de exemplos de boas ações de promoção da paridade de gênero em múltiplas frentes da vida cotidiana. É dever dos partidos, como representantes que são dos diferentes interesses, valores e ideologias dos cidadãos, participar desse esforço coletivo e estimular essas lideranças femininas a ingressar na vida político-partidária, começando por suas próprias estruturas administrativas.

Há alguns dias, o presidente Lula, a propósito da substituição de Rita Serrano na presidência da Caixa por um homem, queixou-se de que “os partidos não têm mulheres para indicar” ao governo. Ora, é claro que têm. A questão de fundo é que essas mulheres não são estimuladas a participar mais ativamente da vida partidária, quando não são impedidas de alçar voos mais arrojados, até chegarem às esferas decisórias. Dos 23 partidos representados no Congresso, contam-se em poucos dedos os que são liderados por mulheres.

A sub-representação feminina em cargos políticos é um problema que vai além da desigualdade de gênero. Estáse tratando de severas consequências para a formulação de políticas públicas e para uma representatividade política mais equânime da população. Quando as mulheres não estão adequadamente representadas, consequentemente, suas preocupações e necessidades tendem a ser negligenciadas. E isso não raro resulta em políticas públicas que não abordam questões cruciais, como igualdade salarial, violência de gênero e acesso à saúde reprodutiva, entre outras.

Por fim, mas não menos importante, o caminho para a superação de uma mazela tão secular quanto vexatória passa ainda pela promoção, desde as escolas, da educação sobre igualdade de gênero e a conscientização sobre a importância da representação das mulheres em múltiplas esferas da vida nacional.

Israel e seus dilemas

O Estado de S. Paulo

Incursão gradual em Gaza mostra que Israel escolheu a cautela, mas falta estratégia política

A incursão israelense em Gaza inaugurou a “segunda fase” da guerra. O fato de que ela não só foi retardada, mas não foi “total”, traz alguma clareza sobre a escolha estratégica de Israel, mais cautelosa e gradual. Ainda assim, essa estratégia enfrentará sérios dilemas e desafios.

Publicamente, o objetivo permanece: obliterar a capacidade de agressão do Hamas, eliminar seus líderes e defenestrá-lo do governo de Gaza.

O primeiro desafio é tático. A guerra urbana é um pesadelo. Em Gaza será o pior deles. Os escombros favorecem o Hamas, que construiu uma vasta rede de túneis. A estratégia parece ser um cerco sufocante para expelir deles as milícias do Hamas.

Tudo se complica pelo fato de que o Hamas não é um inimigo convencional, mas um regime totalitário e terrorista fechado a negociações, que quer a dizimação do Estado judeu e utiliza hospitais como bases militares e o sacrifício de palestinos como tática. Para piorar, o Hamas mantém mais de 200 reféns.

Minimizar a morte de palestinos é uma necessidade humanitária e estratégica. As imagens de destruição em Gaza estão erodindo a legitimidade das operações de Israel e provocando ultraje entre as populações árabes. Mas Israel precisa manter abertas as portas para a normalização com regimes sunitas.

E há o risco de uma conflagração regional. As trocas de fogo entre milícias “por procuração” do Irã, especialmente o Hezbollah no Líbano, com Israel e com bases militares americanas na Síria e Iraque, têm sido contínuas, mas contidas. Um ataque aberto do Hezbollah poderia obrigar Israel a invadir o Líbano, eventualmente tragando para o conflito tropas americanas. Se o Irã retaliar, por exemplo, fechando o Estreito de Ormuz, por onde passam cerca de 30% do petróleo e do gás globais, o impacto sobre a economia mundial seria devastador. Os EUA e países do golfo árabe se veriam obrigados a uma operação de desbloqueio, mas o Irã poderia reagir insuflando milícias por todo o Oriente Médio. Todos perderiam e não é racional para o Irã conduzir a essa escalada. Mas o país segue alertando contra “linhas vermelhas” e, se o conflito em Gaza se tornar ainda mais sangrento, a racionalidade pode ir pelos ares.

As incursões graduais de Israel sinalizam que ele tenta manejar esses riscos, substituindo a aniquilação imediata do Hamas por uma estratégia híbrida: ferir o Hamas de morte, mas deixar que sangre até a impotência.

Um desafio final, porém, resta obscuro: o que fazer depois? Uma opção viável seria concertar, com a alavancagem dos EUA, uma coalizão de países árabes para restabelecer um governo civil em Gaza. Mas eles estão hesitantes e a operação passaria necessariamente pela participação da Autoridade Palestina, a adversária do Hamas que governa a Cisjordânia.

O problema é que a Autoridade Palestina é corrupta, esclerosada e desacreditada e não há sinal de que o governo de Benjamin Netanyahu esteja revendo suas políticas de ocupação e atrito na Cisjordânia, que contribuíram largamente para essa corrupção, esclerose e descrédito.

Mais rigor contra o feminicídio

Correio Braziliense

Na capital federal, ocorreu aumento de 70,6% (29 casos) em 10 meses, na comparação com todo o ano passado (17 mortes). Em Minas Gerais, foram 20 crimes até agora, contra 19 em 2022 (alta de 5,3%)

No primeiro semestre deste ano, ocorreram 1.153 feminicídios no Brasil, 72% a mais do que em igual período do ano passado (669). Na capital federal, ocorreu aumento de 70,6% (29 casos) em 10 meses, na comparação com todo o ano passado (17 mortes). Em Minas Gerais, foram 20 crimes até agora, contra 19 em 2022 (alta de 5,3%). O clima de insegurança que afeta a sociedade brasileira torna-se mais denso em torno das mulheres, em boa parte, depreciadas, coisificadas ou ignoradas. As políticas públicas, de um modo geral, e, em especial, as de segurança pública não têm conseguido domar a fúria masculina contra a companheira ou ex-parceira.

A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) estabeleceu as punições para a violência doméstica. Em seguida, foi complementada pela Lei do Feminicídio (13.104/2015), que tornou esse crime homicídio qualificado e o inseriu na lista de crimes hediondos, com penas mais altas, de 12 a 30 anos de privação de liberdade. Neste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 14.550/2023, que modificou a Lei Maria da Penha, acrescentando a determinação de que às medidas protetivas de urgência sejam concedidas de maneira sumária, ou seja, no momento em que a vítima fizer denúncia perante a autoridade policial.

Não faltam leis nem decisões judiciais. Ainda assim, as mulheres são vítimas da violência incontida dos homens. Para a primeira brasiliense a assumir uma cadeira de ministra do Superior Tribunal de Justiça, Daniela Teixeira, os níveis de feminicídios envergonham o Brasil. “É algo que precisa de uma solução de todos: Executivo, Legislativo, Judiciário, escola, imprensa”, afirmou a ministra em entrevista ao Correio Braziliense.

Quando a mulher chega ao ponto de recorrer à Justiça em busca de medida protetiva, ela revela não suportar mais a carga das crescentes etapas da violência doméstica. O conflito começou com discussões e, a partir daí, descambou para as agressões psicológica, moral, patrimonial e física (tapas, pontapés, estupro). Na realidade, a vítima antevê que a próxima briga não ficará restrita a xingamentos e surra, mas, provavelmente, poderá ser a última, com a sua morte, por arma branca, de fogo ou estrangulamento.

Esse desfecho comum não pode ser aceito nem banalizado. Pelo contrário, o final infeliz pode e deve ser evitado, como afirmou a ministra, desde que a polícia aja com seriedade e o juiz aplique com rigor a lei. À mulher, deve ser dado um “botão do pânico”, para que tenha meios de alertar a polícia quando o agressor desrespeitar a medida protetiva.

Nas delegacias, devem existir painéis que permitam fiscalizar os homens a distância, assim como há para o controle remoto do trânsito de veículos. Qualquer passo rumo à residência ou ao trabalho da mulher, deverá ser motivo suficiente para contê-lo, evitando mais uma morte por gênero, dando cumprimento à medida protetiva. Condenar o agressor à pena máxima, após o assassinato da companheira ou da ex-parceira, é medida de pouco efeito, pois mais uma vida foi perdida, crianças e adolescentes ficaram órfãos de mãe e marcados pela vergonha e pelos traumas provocados por um pai prisioneiro.

Aumentar o rigor das leis e das punições é decisão insuficiente. O machismo, força propulsora do comportamento inadequado dos homens, exige uma reeducação deles para a vida em família e em sociedade. Hoje, tanto no Distrito Federal quanto em vários estados, há projetos exitosos nesse sentido. Os agressores de mulheres são obrigados a passar por esse processo, a fim de compreender que a superioridade masculina é uma farsa, criada a fim de subjugar, depreciar a mulher e torná-la submissa aos interesses do sexo oposto. É preciso romper essa falsa compreensão, que sustenta um ciclo nefasto e custa muitas vidas.

Impõe-se imprescindível educar dentro da cultura de equidade de gênero. Exemplos devem partir do Estado, garantindo à mulher espaço nas instâncias de poder, para que a paridade de gênero deixe de ser um anseio e se torne uma realidade no Estado Democrático de Direito.

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