Folha de S. Paulo
Em vez de resolver gargalos no acesso ao
aborto legal, Legislativo usa a vida de meninas e mulheres estupradas para
barganha política
"Fui estuprada, estou grávida, mas vou
esperar alguns meses para fazer um aborto". Para os parlamentares
brasileiros é assim que uma mulher que engravidou por violência sexual pensa.
Só isso explica a crueldade do projeto
de lei que pune o aborto após 22 semanas de gestação como homicídio —mesmo
nos casos autorizados, como estupro.
Mas outro fator esclarece melhor o disparate. O presidente da Câmara e aliados resolveram usar a vida de meninas e mulheres como moeda de troca contra o governo, que, por sua vez, lavou as mãos. A insensatez, portanto, ganha ares abjetos.
O Código
Penal permite o aborto no caso de estupro e não estipula limite
temporal para a gestação. O Estado, assim, não pode obrigar a mulher a ter um
filho do seu agressor —um princípio humanista básico.
Se os deputados são contra a interrupção da
gravidez após 22 semanas, devem examinar por que ela ocorre. Afinal, nenhuma
mulher quer realizar um procedimento arriscado, quando poderia facilmente ter
acesso a um mais simples e seguro.
O problema é que não é fácil. Há preconceito
e excesso de burocracia; a
rede de saúde é desigual e restrita. O Brasil tem 5.570 municípios e,
em 2021, os 290 estabelecimentos que realizavam aborto legal estavam
localizados em apenas 3,6% deles, de cordo com estudo da UFSC.
Nem mesmo crianças violentadas têm pleno
acesso ao serviço. Levantamento
da Folha mostrou que, em 2021,
das 1.556 internações relacionadas a abortos na faixa etária entre 10 e 14
anos, só 131 (8%) ocorreram por causas autorizadas, como estupro —o restante
foram abortos espontâneos ou tentativas malsucedidas de interrupção da
gestação.
O fato de os deputados não se preocuparem em
resolver os gargalos que dificultam e protelam o acesso ao aborto legal no país
só comprova que a urgência, sem debate, dada ao projeto de lei não passa de
politicagem rasteira e mesquinha. Para o Congresso
Nacional, o direito de meninas e mulheres estupradas serve apenas como
poder barganha.
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