terça-feira, 11 de março de 2025

A democracia e a crise dos 40 - César Felício

Valor Econômico

Desafios foram vencidos desde 1985, mas capacidade da Política de prover soluções está em xeque

Há quarenta anos, quando o regime militar estertorava e o País aguardava o início da nova era democrática, garantir comida era a principal preocupação da população.

Uma pesquisa feita pelo Ibope nas regiões metropolitanas, publicada pelo jornal Gazeta Mercantil e revista Istoé, foi a campo para sondar o que mais angustiava o País que Tancredo Neves ia assumir. Era dezembro de 1984. Tancredo não assumiu, Ibope e Gazeta Mercantil não existem mais e a Istoé desapareceu no formato impresso, mas a pesquisa de então é uma cápsula do tempo que permite ver como os problemas de então se transformaram. Outros se criaram, nada propriamente se perdeu.

Quase a metade dos pesquisados—48,6 %—disseram que a segurança alimentar deveria ser tratada como a prioridade máxima. A segurança pública vinha em segundo lugar, com 20,7%. Problemas sociais, como Educação, Saúde e Habitação, somavam 24%.

A alimentação era um drama porque nela convergiam duas tragédias nacionais, a fome e a inflação. Dados da FAO apurados na década de 80 mostravam a dimensão da fome. Havia 15% da população com desnutrição em 1981, e não há porque imaginar que este percentual teria se reduzido em 1985, ano para o qual não há estatística disponível. Isso equivaleria a 18 milhões de pessoas, considerando a população total de 136 milhões de brasileiros há quarenta anos. Hoje são 8 milhões nessa situação, ou 3,9%.

Já a inflação anual estava em 242,2%. Em fevereiro de 1985 o índice mensal bateu em 10%. Era um país de mais famintos com inflação fora de controle. Hoje vivemos em um país onde a fome ainda persiste, mas bem menos disseminada e com uma inflação que incomoda por estar no patamar anual de 5% ( 8% no caso de alimentos).

A inflação explica boa parte da abrupta queda de popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas pesquisas recentes assemelhadas com a de 40 anos atrás indicam que a alta nas gôndolas não é vista como o principal problema nacional. A distância no tempo recoloca a proporção entre a crise de 1985 e a atual, ainda que o incômodo com a inflação esteja crescendo de modo acelerado.

Na Genial/Quaest de janeiro, a violência foi a preocupação principal dos pesquisados, com 26%. A economia vem em segundo, com 21%. Na pesquisa Bloomberg/Atlas de fevereiro a criminalidade também é apontada como principal problema (54%), enquanto economia e inflação são lembrados por 35%.

A violência urbana há quarenta anos estava em patamar ligeiramente inferior ao atual, quando se observa a taxa de homicídio por 100 mil habitantes.

Explicações alheias às políticas de segurança pública podem explicar a variação, entre elas a subnotificação. Não há porque achar que a situação nos anos 80 era melhor, salvo em um ponto: o avanço do crime organizado de lá pra cá disseminou no País um controle territorial antes mais localizado no Rio de Janeiro.

A redemocratização do País se torna, portanto, bastante relativa para quem mora em locais como Pirambu, em Fortaleza, onde uma facção criminosa ordenou esse fim de semana o corte de serviços de internet, para reforçar seu controle sobre a comunidade. A violência se alastrou, inclusive nos redutos tradicionais do PT, e a conversão de um país majoritariamente das classes D e E para a classe C tornou a população mais sensível a crimes contra o patrimônio.

A criminalidade é um problema em sociedades mais urbanizadas, e a população urbana passou de 65,4% em 1980 para 87,4% em 2022. Além do aumento da percepção de risco em relação ao crime, a urbanização acelerada levou a um crescimento exponencial da população de favelas, áreas mais vulneráveis ao controle territorial por facções.

Fora do universo da aflição das ruas, o mercado financeiro e a comunidade política andava sobressaltada em 1985 pelo peso asfixiante do pagamento da dívida externa. A proporção entre o estoque de compromissos externos em relação ao PIB ultrapassava 50% há quarenta anos, o que levantava suspeitas de “default” , como realmente foi o que aconteceu, em 1987.

Hoje a dívida externa não assusta tanto, mas há crescente suspeição sobre a insustentabilidade da dívida pública interna. A dívida doméstica está em torno de 76% do PIB. Em 1985, estava em 20%.

O nó fiscal continua. Tancredo em 1985 acreditava ter capital político alto o suficiente para realizar um ajuste rigoroso nas contas e pactuar um acordo com os credores. Encarnava a democracia e contava com aprovação popular superior a 70%. Seu impedimento na véspera da posse e morte um mês depois retirou essas condições de Sarney, o primeiro presidente civil efetivo. As demandas sociais eram gigantescas, dificilmente administráveis. Sarney a duras penas terminou o mandato e o entregou para Fernando Collor, um virtual outsider eleitoral, sem base partidária ou social, que montou em 1990 uma equipe de amadores na política.

Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, entre 1993 e 2010, cada um a seu modo, atenderam a demandas sociais com bom resultado na economia. De 2011 para cá há uma sensação de que fórmulas se esgotaram.

Aos 88 anos, o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, protagonista de boa parte da trajetória da Nova República, vaticina: “este regime aberto em 1985 está sobrevivendo a si próprio. Agora ou realiza uma autorreforma, ou aguarda a ruptura”. Nos 40 anos de democracia, desafios sociais e econômicos foram vencidos e a ordem de prioridades na sociedade se alterou, mas há um ponto crítico na crise: o sistema político não parece ser capaz de prover soluções.

 

Nenhum comentário: