Parcela ponderável dos brasileiros se recusa a votar num sistema partidário
distante do que a representação política deveria ser
A indicação de que cresceu a proporção de votos nulos nessas eleições
propõe, mais uma vez, a questão da compreensão do significado do antivoto ou do
abandono do título eleitoral para expressar omissão e desinteresse político por
uma eleição. Essas variantes do desalento político do eleitorado constituem,
provavelmente, a mais interessante revelação da manifestação eleitoral recente,
até mais que o rearranjo de posições partidárias que a votação válida indicou.
O cansaço do eleitor está indicando, em suas diferentes formas de manifestação,
o declínio do homem político e da própria política.
Abstenção, voto em branco e voto nulo parecem indicar uma gradação do
desalento dos eleitores, começando daqueles que recusam desde a eleição
propriamente dita, passando pelos que recusam os candidatos e partidos
disponíveis e chegando àqueles que não só não se identificam com as
alternativas oferecidas como se punem, anulando-se como eleitores ao anularem
seu voto. Aqui, não é a recusa da cidadania nem a recusa de partidos e
candidatos: é a recusa da política propriamente dita através de um gesto que
será interpretado corretamente se interpretado como gesto político dos que não
encontram abrigo nos canais partidários de expressão política.
É evidente que no interior da categoria dos aproximadamente 15% que se
abstiveram nos colégios eleitorais mais importantes do País há desde os que,
por idade, estão liberados de comparecer às urnas, como se diz, até os que,
tendo mudado de município de residência, não providenciaram a mudança do
domicílio eleitoral. Nos dois casos o eleitor preserva seus direitos
eleitorais, embora não os exerça. Pode mudar de ideia e votar, como pode, se
quiser, providenciar a transferência do título em tempo hábil, processo simples
e fácil. Portanto, quem anula o voto não está distante dos que votam em branco
nem propriamente discrepa dos que se abstêm.
O voto em branco é um voto cidadão e é por isso voto válido. O eleitor
cumpre seu dever, mas nega seu voto aos candidatos disponíveis. O voto nulo já
é mais complicado e nem por isso deixa de ser legítima manifestação do eleitor,
ainda que deplorável porque expressa uma vontade política que não se
materializa em nenhuma mensagem compreensível. O caso recente de sucedâneo do
voto nulo foi o da acachapante votação do palhaço Tiririca, que se ofereceu
explicitamente como candidato do deboche a deputado federal e foi eleito:
"Vote em Tiririca que pior não fica". O eleitorado enviou à Câmara
dos Deputados um representante que relembraria a seus pares, diariamente, o que
deles pensa o eleitor.
Mesmo submetido à assepsia limitante da urna eletrônica, que impede os
insultos e palavrões, o voto nulo é uma luz que fica muito mais vermelha numa
eleição como essa se o somarmos aos votos em branco e às abstenções. Na cidade
de São Paulo, os eleitores desalentados, 2.490.513, superaram em muito os dois
primeiros colocados da votação válida: José Serra (PSDB) teve 1.884.849 votos e
Fernando Haddad (PT) teve 1.776.317 votos. No Rio de Janeiro, a vitória em
primeiro turno de Eduardo Paes (PMDB/PT), com 64,6% dos votos válidos, fica
muito menos significativa se levarmos em conta que o segundo colocado foi o
eleitor desalentado, que não votou em ninguém: 1.472.537 eleitores, uma vez e
meia votação do colocado seguinte, Marcelo Freixo, do PSOL. Em Belo Horizonte,
o fenômeno se repetiu. Márcio Lacerda (PSB/PSDB) teve 676.215 votos e foi
eleito com 52,6% da votação válida. Patrus Ananias, do PT, teve 523.645 votos,
enquanto os eleitores desalentados foram 576.673, segundo colocados. Em Recife
houve um fenômeno parecido. Geraldo Julio, do PSB, foi eleito em primeiro turno
com 51,1% dos votos. Mas o segundo colocado, Daniel Coelho, do PSDB (245.120
votos) e Humberto Costa, do PT (154.460 votos), tiveram individualmente menos
votos do que o número de eleitores desalentados, 283.279, que nesse caso
ficaram em segundo lugar. Em Salvador, os desalentados foram 589.437 eleitores,
mais numerosos que os votos do primeiro colocado, ACM Neto, do DEM, que teve
518.976 votos, e Pelegrino, do PSB/PCdoB, com 513.350 votos. O mesmo fenômeno
ocorreu em Fortaleza, onde Elmano, do PT, teve 318.262 votos, Roberto Cláudio,
do PTB, teve 291.740 votos e Moroni, do DEM, teve 172.002 votos. Ali os
eleitores desalentados foram 361.211, bem mais do que o primeiro colocado. Em
Porto Alegre, em que Fortunati, do PDT, foi eleito em primeiro turno com
517.969 votos, a segunda colocada, Manuela d"Avila, do PCdoB, teve os
votos equivalentes à metade dos eleitores desalentados, que somaram 282.048.
O fenômeno se repetiu, ou quase, em diversas outras capitais e em outros
municípios emblemáticos. O que sugere uma crise da representação política e
mesmo o declínio dos partidos. Uma parcela ponderável dos brasileiros está
tendo seus direitos políticos cassados por falta de um sistema partidário que
dê efetivamente conta do que a representação política deveria ser.
É sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, autor,
entre outros, de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto)
Fonte:
Aliás / O Estado de S. Paulo
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