- O Globo
Usar Cristo para justificar a proposta de armar a população brasileira é subverter a sua mensagem pacifista
O candidato Jair Bolsonaro fez o sinal da cruz antes de entrar no local onde seria entrevistado e o repetiu no início das perguntas. Esse é um gesto católico, que não é feito por evangélicos ou protestantes. Ele se diz “cristão”, mas deixa a definição imprecisa para ser aceito pelos evangélicos, como um deles, e não sofrer rejeição de outros grupos religiosos. Ao citar a Bíblia, demonstra falta de intimidade com o livro que chama de “caixa de ferramentas”.
Bolsonaro tem usado a religião de diversas formas. Afirma que está cumprindo “uma missão de Deus”. Colocar-se como um ungido, com uma missão divina, é uma forma de tentar atrair setores religiosos mais extremados.
Suas citações da Bíblia parecem mais repetição de algum trecho que lhe dão, do que conhecimento advindo da leitura do texto sagrado. Isso ficou claro ao fim do debate da Rede TV!, quando ele responde a Marina. “Leia o livro de Paulo.” Não existe um livro chamado Paulo. Existem vários livros escritos pelo apóstolo, no seu trabalho de construir as bases doutrinárias do cristianismo. São as epístolas às várias comunidades, os livros aos Romanos, Coríntios I e II, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses e Tessalonicenses I e II. Há também as endereçadas a Timóteo (duas), Tito e Filemon. Uma frase como essa de Bolsonaro revela desconhecimento elementar. Existem dois livros de Pedro, quatro com o nome de João — um do Evangelho e três epístolas — mas nenhum dos 66 livros da Bíblia protestante, nem dos 73 da Bíblia católica, chama-se Paulo.
Ao explicar o que tentara dizer a Marina, naquela indicação de leitura, Bolsonaro errou um pouco mais. Disse que se referia a uma passagem que diz “venda suas capas e compre espadas” e que teria sido dita por Paulo. O GLOBO informou que isso estava em Lucas. Bolsonaro foi além. “É que naquele tempo não existia arma de fogo, senão seria ponto 50 e fuzil.”
Existem diferenças grandes ao longo da Bíblia, principalmente quando se compara o Velho Testamento com o Novo Testamento. Jesus inicia, pela fé cristã, um tempo de perdão e paz. Se no primeiro há o “olho por olho”, no segundo há o “dai a outra face”. A mensagem pacifista de Jesus Cristo é inescapável. Usar Cristo para justificar a violência ou a proposta de armar a população não faz sentido algum. No momento da fúria no Templo, contra os vendilhões, ele não usou armas, mas sua autoridade moral. Mesmo quem jamais leu a Bíblia entende que não é de guerra, mas de paz, a principal mensagem de Jesus Cristo.
Que importância tem isso para a eleição? Nenhuma. Afinal, o Estado brasileiro é laico e, felizmente, assim deve permanecer. Mas a busca do eleitorado evangélico fez com que cada vez mais candidatos usem a Bíblia como marketing. Certa vez, Garotinho disse que houve violência até no céu, “onde Caim matou Abel”. Como todos sabem, isso ocorreu fora do paraíso. O prefeito Marcelo Crivella fez pior: depois de eleito, quis criar um caminho mais curto para os fiéis da sua igreja terem acesso aos serviços públicos.
A diversidade religiosa brasileira é muito maior do que está nas estatísticas, porque sempre esteve em parte encoberta pelo sincretismo. Princípios do cristianismo fazem parte do conjunto de valores da nossa sociedade. Algumas das ideias-força já estão incorporadas à sabedoria geral, como a que Marina utilizou, “ensina o teu filho no caminho que deve andar”, orientação de bem educar. Bolsonaro cita sempre em seu favor João 8:32, “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. É soberba usar assim, como se a verdade dele, Bolsonaro, é que libertasse. Jesus está se referindo à verdade divina.
O TSE acabou de cassar dois deputados por pedirem voto em ato religioso. Religião e questões de Estado não devem se misturar. Este foi um avanço civilizatório e um dos legados da Reforma Protestante. Certos líderes evangélicos têm feito essa mistura nos últimos tempos. Alguns sabem separar. Marina é evangélica mas lembra sempre que o governo é laico. Geraldo Alckmin não faz convocação aos católicos, apesar de ser um. Contudo, muitos postulantes têm alimentado essa mistura, indo pedir a benção de pastores em atos públicos. Essa mistura jamais dará um bom resultado. Púlpito e palanque devem estar distantes. O uso da Bíblia e da religião serve para atemorizar ou enganar eleitores. Isso ameaça a soberania do voto.
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