quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Fernando Exman*: O jogo da regulação dos criptoativos

Valor Econômico

Ideal é proteger investidor sem criar amarras à inovação

Era tarde da noite de 8 de dezembro, algo comparável aos 42 minutos do primeiro tempo deste biênio em que a Câmara será presidida por Arthur Lira (PP-AL), quando os deputados aprovaram o projeto de lei que regulamenta a atividade de prestação de serviços de negociação de criptoativos.

Lance inesperado, que ainda não se sabe qual andamento terá no Senado, a despeito dos sinais de que a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) não perderá tempo. Será difícil ignorar o assunto depois da notícia divulgada recentemente pelo Banco Central (BC) de que as importações de criptoativos somaram US$ 6 bilhões em 2021 - volume recorde e quase o dobro do registrado no ano anterior.

Pode-se dizer que a pressão da torcida fez diferença. Novamente foi necessário acontecer algum fato escabroso para que os parlamentares acelerassem a tramitação de uma matéria que há tempos clamava por mais atenção e não era colocada na lista de prioridades. Fato comum, infelizmente, sobretudo quando se trata da área penal. Com frequência, deputados e senadores atuam de forma reativa ao noticiário quando acham que precisam dar uma resposta rápida à opinião pública.

Neste caso, o responsável pela mobilização teve nome, sobrenome e apelido: foi a prisão de Glaidson Acácio dos Santos, o “Faraó dos Bitcoins”, que movimentou o Congresso. Sua jogada, drible mais conhecido como pirâmide financeira com criptomoedas, foi lembrada diversas vezes durante a sessão em que foi aprovado, por votação simbólica e com amplo apoio, o projeto de lei apresentado em 2015 pelo deputado Aureo Ribeiro (SD-RJ).

Só os deputados do Novo decidiram formar barreira. “É o Estado colocando a mão em algo que funciona”, bradou Gilson Marques (Novo-SC). “Mas aí o político não está contente com algo que está dando certo e vai lá regulamentar. É um absurdo. Quem quer criptomoeda não quer regulamentação do Estado. Quem quiser regulamentação do Estado que compre real, uma moeda que a todo tempo perde valor, justamente por causa de políticas econômicas inflacionárias que deturpam o poder de compra dos mais pobres.”

Seu discurso fazia referência às origens de um mercado concebido para existir fora do alcance dos tentáculos do Estado. Todos os Estados. Porém, não comovia as demais legendas.

Alertando que já era quase 23h, seu colega, Paulo Ganime (Novo-RJ), tentou uma variação tática e pediu a retirada do projeto da pauta. Também sem sucesso.

“É claro que temos, sim, motivos para preocupação com relação a fraudes, a uso indevido, como em qualquer coisa”, ponderou o deputado fluminense, para quem, dependendo da regulamentação feita, investidores podem preferir operar no exterior. Também apontou-se risco à concorrência local. “Vamos ter o Brasil retrocedendo em uma evolução tecnológica. Nós falamos de desemprego, de evolução do trabalho, de inovação, e estamos criando barreiras para a inovação.”

Por fim, o PSDB também acabou orientando contra e juntou-se ao lado derrotado. “O Brasil vai se meter a correr para regulamentar isso? O mundo está conhecendo o assunto. Eu não estou entendendo a necessidade de nós corrermos para regulamentá-lo”, disse Eduardo Cury (PSDB-SP).

Não é bem assim. Sim, trata-se de algo novo que todos ainda estão aprendendo a lidar. Mas, também é um assunto discutido há anos por organizações internacionais e governos.

O Canadá, por exemplo, foi o primeiro país do mundo a implementar uma lei nacional sobre moedas digitais. Isso ocorreu em 2014, apenas um ano antes da proposta protocolada em Brasília. E no decorrer do tempo as regras foram sendo atualizadas.

Pelos quatro cantos do globo existem experiências, umas mais flexíveis outras mais rígidas. E entre elas, autoridades brasileiras destacam o modelo europeu, de acordo com o qual as empresas que transferem bitcoins ou outros criptoativos devem reunir informações sobre as partes que estão operando para ajudar as autoridades no combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento de atividades criminosas.

Também por isso o governo nunca deixou de participar das discussões no Congresso. Agora, contudo, todos os interessados renovarão suas atenções para o Senado.

Há convergências entre o que foi produzido na Câmara com o que pensam agentes do mercado de criptoativos e instituições financeiras de maior porte. Eles, inclusive, consideram que o projeto contribui para a formalização do setor e, do jeito que está, não chega a travar a inovação.

Além disso, acrescentam, o projeto ainda tende a fortalecer os mecanismos de proteção ao investidor. É difícil acreditar que o Código de Defesa do Consumidor seja suficiente para cumprir esta missão, embora algumas regras criadas para a área já existam e não deveriam ser ignoradas - como em alguns casos têm sido.

Com o retorno do Congresso, algumas questões se colocam.

A primeira é se avançará a proposta dos deputados ou se algum texto produzido no Senado ganhará preferência. Se isso ocorrer, há risco de a conclusão da tramitação demorar mais ou até mesmo algum veto ocorrer quando a ela chegar ao Planalto.

Outra questão é como distribuir as atribuições para disciplinar, fiscalizar e, eventualmente, punir quem andar à margem da lei. Tudo isso sem deixar um mercado incipiente obrigado a buscar autorizações muito burocráticas e sob um regramento rígido demais.

Um primeiro passo foi dado quando ficou definido que o Executivo editará um ato para escalar as instituições que entrarão em campo. Inicialmente, o projeto dava funções apenas ao Banco Central. A substituição foi feita diante do receio de que, agora independente, o BC jogasse muito na retranca.

Falta o Senado fazer a sua parte, o presidente da República editar um decreto distribuindo a bola, ou seja, as competências, e o Conselho Monetário Nacional (CMN) publicar uma regulamentação geral. Esta, por sua vez, seria complementada por atos do BC e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), por exemplo. O jogo está no intervalo.

*Fernando Exman é chefe da redação, em Brasília

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

O mundo econômico e suas complexidades.