O Globo
Não pode, numa democracia, o governo
definir o que é uma ‘política pública corretamente executada’
O governo Lula quer
bater de frente com a máquina de desinformação que ameaça faz já pelo menos
cinco anos a democracia brasileira. Ponto para ele. Mas começou mal — de forma
atabalhoada, desastrada e, ora, no mínimo desinformada. É que a Advocacia-Geral
da União tomou para si o trabalho de definir desinformação. As aspas são
oficiais:
“Mentira voluntária, dolosa, com o objetivo claro de prejudicar a correta execução das políticas públicas com prejuízo à sociedade e com o objetivo de promover ataques deliberados aos membros dos Poderes com mentiras que efetivamente embaracem o exercício de suas funções públicas.”
Política pública quem determina qual é,
evidentemente, é o governo. Imaginemos que essa definição valesse para o
governo Bolsonaro em plena pandemia. O que seria a “correta execução das
políticas públicas” em plena quarentena de 2020? Distribuir cloroquina, talvez.
Ou promover aglomeração no entorno do presidente quando o contágio estava a
toda. Se Jair
Bolsonaro publicasse uma definição assim, contra “ataques
deliberados aos membros dos Poderes” para embaraçar o exercício das funções
públicas, a sociedade civil de presto levantaria o dedo para observar mais um
avanço antidemocrático.
Alguns poderiam argumentar, em benefício
da AGU,
que ela está falando de algo mais específico, de uma mentira que seja
voluntária e danosa. Mas não tem nada de trivial definir se alguém mentiu ou se
enganou e, a partir daí, se mentiu com o objetivo de causar dano. Fosse simples
determinar o que é mentira danosa, o problema continua de pé. Não pode, numa
democracia, o governo definir o que é uma “política pública corretamente
executada” e ter uma norma, qualquer norma, que possa intimidar seus críticos.
Definido desta forma, qualquer um que
critique políticas públicas poderá ser acusado de estar mentindo com o objetivo
de causar dano. Mesmo que inocente, o crítico terá de pagar advogado — se tiver
recursos para tal —, gastar tempo na Justiça, enfrentar o peso do Estado.
Não pode, e não pode por um motivo muito
simples: a definição de democracia exige que o Estado jamais use seu peso para
intimidar qualquer cidadão que questione as intenções do governante.
É isso que diferencia democracia de todos
os outros regimes.
O início é terrível e atabalhoado por um
motivo simples: caso os responsáveis pela regra não tenham se preparado para
encarar um problema desse tamanho, poderiam perfeitamente ter esperado mais uns
dias, umas semanas, mesmo alguns meses. Muita gente, na academia e na sociedade
civil, estuda esse problema a fundo e há anos. Junta uns dez numa sala por um
mês, e o resultado sai uma excelente proposta inicial.
Além do que, o foco da AGU está
possivelmente errado. Não tem nada de trivial ir de tuíte em tuíte definindo o
que é desinformação que ameaça a democracia e o que não é. Primeiro, porque
desinformação não é só mentira, ela é mais eficiente quando confunde, quando
planta dúvidas, quando termina com reticências, e não exclamação. Segundo,
porque a ameaça à democracia está mais numa força que impõe o ódio, o dissenso,
que dificulta conversas e racha a sociedade, do que nas mentiras.
Essa força é o algoritmo. O problema não é
o tuíte, é o algoritmo que decide que aquele tuíte, post, foto ou vídeo
alcançará dez ou 20 milhões. Quando bombardeados por ódio, raiva e insanidade
todos os dias, saímos todos irritados e pouco dispostos a encarar quem
discordamos. Regular a distribuição é mais eficiente do que regular a mensagem,
e aí nem precisa encarar problemas espinhosos como liberdade de expressão.
2 comentários:
Alguns neogovernistas mais ávidos de demonstrar sua total adesão ao lulismo já estão tropeçando nas próprias pernas... Esta ideia de combater desinformação através da AGU (setor jurídico que defende o governo ou governantes) é de uma estupidez digna do DESgoverno Bolsonaro... Será que tem bolsonarista infiltrado aí? Ou é coisa da mente privilegiada de alguns petistas mesmo?
Então tá...
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