domingo, 17 de dezembro de 2023

Elio Gaspari - 180 escrituras no Morro do Alemão

O Globo

Há duas semanas, como parte do Programa Solo Seguro, a Corregedoria Nacional de Justiça entregou 180 títulos de propriedade a moradores do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. (Naquele cenário, em 2011, foi instalado o espetáculo do teleférico que custou R$ 210 milhões. Ficou sete anos parado e seria reaberto no início deste mês. Tudo bem, o que começa como presepada, como presepada se encrenca.)

A regularização dos lotes onde vivem 180 famílias do Alemão custou três meses de trabalho a 17 pessoas: duas da Corregedoria, cerca de 12 da Prefeitura do Rio e três do cartório de registro de imóveis. A impressão das escrituras deve ter saído por uns R$ 2 mil. Só.

As duas iniciativas mostram a futilidade das obras espetaculares que beneficiam primeiro a turma do andar de cima, e a utilidade de ações onde o que se precisa é apenas interesse pelo andar de baixo, mais algum trabalho.

O economista peruano Hernando de Soto mostrou há décadas que, no Terceiro Mundo, milhões de famílias vivem em modestas residências, sobre terrenos desprovidos de documentação. Sem escrituras, sofrem com milicianos, não têm acesso a serviços públicos regulares e têm dificuldade para obter crédito. Com escrituras, ganham uma espécie de cidadania financeira.

Segundo De Soto, numa conta velha, as pessoas que vivem em lotes irregulares estavam sentadas em cima de um patrimônio de 9,3 trilhões de dólares, ervanário equivalente ao valor de todas as companhias listadas nas Bolsas dos 20 países mais desenvolvidos. No Brasil, é provável que esse patrimônio seja superior ao valor das companhias da Bolsa de São Paulo.

A regularização fundiária dos lotes urbanos parece uma questão insolúvel porque é quase exclusiva do andar de baixo. Não se pode fazer a escritura porque antes deve vir o arruamento e o arruamento não pode vir porque não se sabe de quem é a terra. É a Síndrome da Reivindicação Sucessiva: Não se pode fazer A porque falta B e só se pode fazer B quando estiver feito C. Enquanto isso, nada se faz.

O Corregedor Nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão, e sua pequena equipe, mostraram que se faz, e não só no Alemão. Em apenas uma semana, entre agosto e setembro, foram regularizadas 31 mil propriedades na Amazônia Legal. Em todos os casos, foi decisiva a colaboração das prefeituras.

Noutra iniciativa, o Conselho Nacional de Justiça, ajudado pelos cartórios e seus servidores, emitiu cerca de 100 mil documentos de registro civil para pessoas que vivem nas ruas. Era outro caso de vigência da Síndrome da Reivindicação Sucessiva. Esses cidadãos por não terem documentos tinham dificultado o acesso a alguns serviços sociais.

Fim da reeleição

A boa notícia de 2024 surgiu no final de 2023. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, pretende colocar o fim da reeleição na pauta durante o primeiro semestre. Ele acredita que a emenda constitucional será aprovada.

Pacheco, como muita gente, acredita que o instituto da reeleição é um dos maiores males da política brasileira. Mesmo que a PEC seja aprovada, os eleitos de 2022, ainda poderão disputar um novo mandato.

A reeleição dos presidentes, governadores e prefeitos foi uma novidade instituída em 1997. Nas palavras do ex-presidente Fernando Henrique, seu inspirador e imediato beneficiário, deu errado.

A PEC de autoria do senador Jorge Kajuru (PSB-GO) aumenta os mandatos para cargos executivos de quatro para cinco anos. A ideia é boa, mas contém uma girafa aritmética, desalinhando os mandatos.

O presidente seria eleito a cada cinco anos (2026, 2031, 2036...). Os senadores e os deputados, continuariam com mandatos de oito ou quatro anos e as eleições aconteceriam em 2026, 2030 e 2034.

Com o desalinhamento, o presidente eleito em 2031 teria que conviver por três anos com uma Câmara eleita um ano antes.

Perigo à vista: o desalinhamento é uma girafa, mas não é veneno. Para evitá-lo, pode surgir a ideia de extensão dos mandatos de governadores, deputados e senadores para cinco e dez anos.

Ameaças inúteis

Com a aprovação do nome de Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal por 47 votos contra 31, ficaram mal na foto os intermediários que defendiam a escolha do advogado-geral da União, Jorge Messias, argumentando que o ministro da Justiça seria rejeitado. Alguns deles eram notáveis petistas.

Mandatos no STF

Pela conta de hoje, o Senado aprovará a PEC que estabelece mandatos com prazo para os futuros ministros do Supremo Tribunal Federal.

A reação impulsiva de alguns ministros contra a aprovação da emenda que limita as decisões monocráticas do Tribunal, contribuiu para fortalecer o mal-estar.

Comunistas no STF

Lula disse que “pela primeira vez na História desse país conseguimos colocar na Suprema Corte um ministro comunista.”

Flávio Dino filiou-se ao PCdoB em 2006, quando já se haviam apagado as luzes de todos os partidos comunistas, inclusive os da China e da Albânia, que haviam iluminado a organização. Deixou o partido 16 anos depois, indo para o Partido Socialista.

Pelo menos na visão do professor Henry Kissinger, que morreu há pouco, Lula pode ter se enganado. Em 1962, o Kissinger esteve no Brasil, encontrou-se com o então primeiro-ministro Hermes Lima, e escreveu a um amigo:

“O ‘New York Times’, com sua habitual perspicácia, descreve-o como um socialista moderado. Se ele é isso, eu gostaria de saber como é um comunista.”

Meses depois, João Goulart nomeou Hermes Lima para o Supremo Tribunal Federal, onde ele ficou até 1968, quando foi aposentado pelo AI-5.

Hermes Lima nunca pertenceu ao Partido Comunista.

Ministério da Justiça

O alto comissariado petista está olhando para o ministério da Justiça como um cargo que ilustra biografias.

Flávio Dino foi um ministro combativo nas palavras e bem-humorado nas atitudes. Só. Nesses atributos nenhum sucessor fará melhor, mas é pouco.

Lula pode fazer o que quiser com o ministério, desde que não se esqueça que a segurança pública será um tema central nas próximas campanhas eleitorais.

Seu primeiro ano de governo foi rico em palavras e planos.

Fávaro na frigideira

Se Lula vier a mexer no ministério, o senador Carlos Fávaro deverá deixar a pasta da Agricultura, e ele percebeu isso.

Na quinta-feira, reassumindo sua cadeira para aprovar a indicação de Flávio Dino, Fávaro votou a favor da derrubada do veto de Lula ao marco temporal para demarcação das terras indígenas.

Fávaro foi um dos primeiros políticos ligados ao agronegócio a apoiar a candidatura de Lula, mas de um lado ele não abandonou sua base ruralista e, de outro, foi menos ouvido do que esperava.

O calibre de Marta

Marta Suplicy foi prefeita de São Paulo de 2001 a 1º de janeiro de 2005. Enfrentou as empresas de ônibus e instituiu o bilhete único. Ela não conseguiu se reeleger e hoje seu nome circulou como provável candidata a vice, tanto de Ricardo Nunes, de cujo governo participa, quanto de Guilherme Boulos, candidato do PT e do PSOL.

São raros os casos de políticos que foram lembrados pelos dois lados da disputa eleitoral. Em alguns casos isso se deve à habilidade e em outros ao desempenho. No caso de Marta, se deveu aos dois.

2 comentários:

Daniel disse...

Obrigado FHC, por colocar a reeleição na vida política brasileira!! Muito obrigado FHC! Só porque interessava a ele e a seus colegas do Centrão que dividiam o governo com ele.

ADEMAR AMANCIO disse...

O instituto da reeleição é a única herança maldita de FHC.