Correio Braziliense
O episódio da dosimetria comprova que
decisões legislativas de alto impacto são moduladas não apenas pelo mérito, mas
pela disputa por narrativa, pela necessidade de preservar a governabilidade e
pela busca incessante de vantagens eleitorais
A votação e aprovação do chamado PL da Dosimetria no Senado expuseram, mais uma vez, como as engrenagens da política brasileira giram sob a lógica permanente da eleição que se aproxima. A praticamente 10 meses do pleito presidencial, cada gesto em Brasília se mostra calculado, de olho em 2026. Ao permitir, em nome da agenda econômica, a votação de um projeto duramente criticado por flexibilizar penas para condenados pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, a base governista, especialmente o PT, aceitou o custo político de deixar avançar um texto que o presidente Lula confirmou que vai vetar mais adiante, mirando também dividendos eleitorais futuros.
O primeiro ponto é que o PL da Dosimetria não
é um projeto qualquer. A proposta reduz substancialmente o tempo de cumprimento
de pena em regime fechado para condenados por crimes contra o Estado
Democrático de Direito, podendo, no caso do ex-presidente Jair Bolsonaro,
encurtar significativamente o período de reclusão. Não surpreende, portanto,
que tenha sido classificado por senadores como Renan Calheiros como um
"projeto infame". O relator, Esperidião Amin, buscou apresentar o
texto como gesto de pacificação, embora restrito apenas aos crimes do 8/1,
justamente o que torna seu alcance tão politicamente carregado.
Mas o que realmente moldou o desfecho da
votação foi a engrenagem política que se revelou nos bastidores. O líder do
governo, Jaques Wagner, admitiu que a liberação do PL no Senado era parte de um
acordo para não travar a pauta considerada prioritária pelo Executivo, como o
corte de isenções fiscais e o aumento da tributação de fintechs e bets, medida
crucial para liberar mais de R$ 22 bilhões no Orçamento da União de 2026. A
mensagem passada, no entanto, é inequívoca. Na disputa por recursos e por
estabilidade fiscal, o governo preferiu absorver o desgaste imediato da
derrota, que se mostrava irreversível, em troca da garantia de que a agenda
econômica seguiria adiante.
É um movimento, porém, que não está
dissociado do calendário eleitoral. Lula vai vetar o PL da Dosimetria, ciente
de que o Congresso deve derrubar o veto. Com o gesto, o petista se posiciona
simbolicamente em defesa da democracia. Caso o veto seja revertido, como
avaliam os congressistas, caberá ao Supremo arbitrar as dúvidas sobre a
validade constitucional do texto. O jogo, em outras palavras, permanece aberto,
e todos os atores sabem disso. Cada passo é calculado para produzir impacto não
apenas agora, mas no discurso de campanha que se aproxima.
2026 está logo ali, e a política brasileira
opera como se já estivesse em pleno período eleitoral. O episódio da dosimetria
revela essa dinâmica com precisão: decisões legislativas de alto impacto são
moduladas não apenas pelo mérito, mas pela disputa por narrativa, pela
necessidade de preservar a governabilidade e pela busca incessante de vantagens
eleitorais. O pragmatismo político sobressair-se ao interesse público é uma
marca constante da nossa democracia.

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