segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A última homenagem a Freyre na Flip 2010

DEU EM O GLOBO

Na última mesa dedicada a Gilberto Freyre, o homenageado desta edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), José de Souza Martins, Peter Burke e Hermano Vianna se reuniram para tratar da atualidade na obra do sociólogo pernambucanor. A mesa, chamada "Gilberto Freyre e o século XXI", aconteceu na manhã deste domingo, sob mediação de Benjamin Moser.

Os três foram muito aplaudidos ao trazer pontos da obra de Freyre para o debate.

- Precisamos pensar o Freyre para além e adaptar seu pensamento para situações do século XXI - disse Burke.

- Um livro que chega a 52 edições, como o "Casa-grande & senzala" tem seu lugar assegurado na sociologia do século XXI - acrescentou Martins.

- Obviamente o Brasil não é uma democracia racial. Mas acho que temos que entender essa afirmação do Freyre menos como uma tentativa de acobertar o racismo, mais como um meio de combatê-lo - afirmou Vianna.

DEU NO JORNAL DO BRASIL
Verdade tropical


Bolívar Torres - PARATY, RJ

Grande homenageado da Flip, Gilberto Freyre ainda não é reconhecido como merece fora do Brasil.

Pelo menos, esta é a conclusão do historiador inglês Peter Burke, coautor de Repensando os trópicos: um retrato intelectual de Gilberto Freyre (es crito com sua mulher, a brasileira e também historiadora Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke), livro que contextualiza as ideias do antropólogo pernambucano, servindo quase de cartão de visita de sua obra para o público estrangeiro. Especialista em Idade Moderna europeia, o conceituado historiador será um dos debatedores na mesa Gilber to Freyre e o século 21, hoje, às 11h45, marcando o último dia da Festa Literária Internacional de Paraty.

Em entrevista ao Ca derno B, Burke frisa que nunca existiu um intelectual como Freyre na Europa e defende a atualidade de seu pensamento.

Como o mundo acadêmico europeu analisa hoje a obra de Gilberto Freyre? – Sinto dizer isso, mas os acadêmicos europeus simplesmente não conhecem sua obra. Na Inglaterra, quando falava do projeto do meu livro, as pessoas diziam: “Ah, Freyre, claro, o educador...”. Na verdade, estavam confundindo com Paulo Freire, que é muito mais conhecido. Tanto na França quanto na Itália também não sabem nada sobre Gilberto. A grande maioria dos seus livros está sem edições novas. Sinto vergonha por isso, mas acredito que, nos últimos anos, não foram vendidas nem 2 mil cópias de seus livros. Quando Casa-grande & senzala saiu, Freyre teve um certo auge, com artigos publicados na França. Mas desde então entrou num lento declínio.

Foi por isso que escreveu o livro tentando apresentar Freyre para os ingleses? – Sim, é uma das principais razões. Gilberto precisa ser mais bem entendido.

Suas ideias continuam relevantes.

Freyre antecipou muitas questões. Quais delas têm mais pertinência hoje? – O hibridismo cultural, que só começou a ser analisado por gerações mais recentes. Mas eu diria que a questão mais extraordinária foi a sua consciência ecológica.

Era incrível a maneira como ele se preocupou com as questões do meio ambiente nos anos 30.

A mistura de culturas e raças é um dos assuntos mais pertinentes na Europa hoje, confrontados principalmente por países como Inglaterra e França. Até que ponto o conceito de democracia racial, defendido por Freyre, pode ser uma referência para estes centros? – É interessante imaginaro que Gilberto pensaria do multiculturalismo atual.

Precisamos antes ver em que contexto surgiram as suas ideias, sua interpretação de culturas. O contexto, claro, era o Brasil colonial.

Mas nos anos 30, quando ele escreveu Casagrande, a questão já era muito mais complexa, com a vinda de japoneses, alemães, italianos... Fiquei decepcionado com Ordem e progresso, que falava quase nada sobre a contribuição dessas culturas à identidade brasileira. A impressão que se tinha é que ele via o Brasil como um clube de três raças, negra, índia e branca. Por outro lado, países europeus também exaltaram a mistura de culturas.A Inglaterra é uma grande mistura de tribos celtas. É irônico pensar que até a clássica ideia de mistura cultural brasileira possa ter inspiração estrangeira.

A ideia de miscigenação de Freyre seria, portanto, relativa? – Sim, sem dúvida.

Mas não é indiscutível que o português teve muito mais tendência à mistura no Brasil do que os britânicos em suas colônias? – Acredito que, neste sentido, Gilberto tenha exagerado as diferenças entre o império britânico e o português.

Sua ideia de colonialismo britânico se limitava à época de Kipling.

Talvez porque adorasse Kipling.

Mas o fato é que, antes disso, os ingleses tiveram um hábito de interpenetrar em países como a Índia, sexual e culturalmente.

A mistura com indígenas era comum.

O senhor esteve com Freyre em duas oportunidades.

Qual foi sua impressão? – A primeira foi em uma palestra em Assex, em 1965, quando ele foi receber um grau honorário.

Em um inglês muito bom ele louvou a miscigenação.

Fiquei surpreso. Para mim era estranho, já que ele era branco, muito pálido: parecia um português, não um brasileiro mestiço. Depois, em 1986, fui convidado a ir à sua casa. Mas na época ele estava adoentado e alternava períodos de lucidez com outros em que não estava muito lúcido. E naquele dia, infelizmente, ele não estava lúcido.

Freyre foi um pensador muito peculiar. Recusava ser visto como acadêmico, e dizia que a literatura não podia ser dissociada de seu trabalho de antropólogo.

Estudar a sociedade era muito mais “uma aventura de sensibilidade do que um esforço de pesquisa”. Existiu na Europa ou nos Estados Unidos algum intelectual parecido com ele? – Realmente, Gilberto nunca quis ser visto como um acadêmico. Financeiramente, era muito menos rentável para ele afastarse das universidades.

Ele era, de fato, polêmico, um enfant terrible que adorava provocar. E é realmente difícil encontrar alguém tão interdisciplinar quanto ele na Europa.

Talvez Fernand Braudel, na França, ou Johan Huizinga, na Holanda.

Mas na Inglaterra não conheço.

Como foi escrever o livro com sua mulher? – Foi minha primeira experiência de escrever um livro a quatro mãos. Nesse caso, a colaboração teve outro fator especial, já que minha mulher pertence à cultura brasileira e eu, não. Seria impossível escrever o livro sem ter vindo ao Brasil. Fiquei encantado com nossa passagem por aqui, de ter acesso aos arquivos da Fundação Gilberto Freyre.

Suas cartas foram importantíssimas para o nosso trabalho. E foi fantástico ver algumas de suas anotações. Tínhamos acesso aos livros que ele lia, com as anotações que ele fazia nas margens.

Era como ver o pensamento dele voando.

Por outro lado, confesso que foi complicado conhecer sua família e as pessoas que conviveram com ele, porque isso provoca uma certa autocensura quando você precisa criticar um ou outro aspecto de sua vida e de sua obra. Como sempre escrevi sobre pessoas do século 16 e 17, não costumava ter esse tipo de problema antes (risos).


(Domingo, 8 de Agosto de 2010)

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