Muitos dos que quebram e destroem são jovens revoltados com a vida infame da periferia, ou outros que procuram algum futuro além do shopping Center
A ação é tão caótica e contundente que é como se somente eles estivessem nas ruas. Além da polícia, claro, seu alter ego. São tão performáticos e agressivos, tão sem agenda e voz coletiva que geram a sensação de que as massas não existem. A violência que praticam não gera comunidade ou democracia, mas seu oposto. Ataca o sistema e seus ícones, mas não os põe em xeque, antes os reforça. Empurra as pessoas de volta para casa, longe das ruas politizadas por junho de 2013.
Nunca se falou tanto em black bloc, essa “tática” clonada da Europa que parece tomar conta das grandes metrópoles brasileiras de uns meses para cá. Não sabemos quase nada do fenômeno. Há duas versões típicas na praça. Uma faz a crítica do movimento como hostil à democracia, desmobilizador e desagregador. Outra faz seu elogio, escancarado ou dissimulado. Afirma que a violência black bloc é fundamental para tirar as massas da letargia, chamar às falas os partidos de esquerda e revelar a face brutal do Estado, ou que é expressão da iniquidade social, uma reação defensiva que protege as massas.
A estética black bloc adere na vida que temos. Seus seguidores querem ser vistos como vanguarda da luta contra o capital, a ala mais intransigente da contestação, aqueles que tirarão as massas do pacifismo que não perturba a ordem nem abala as instituições. A ação não traz consigo direitos, causas ou utopias, somente o fim dos tempos. Não leva rigorosamente a lugar nenhum. Reforça o sistema, em vez de miná-lo. É, na verdade, o efeito colateral de uma vida bloqueada, sem esperança, sem utopia, individualizada e fragmentada, de uma sociedade em que a violência entrou na corrente sanguínea, de um Estado pouco eficiente, de uma cultura que homenageia o espetáculo, mas não se complementa com uma ética pública consistente. Produto das contradições de um capitalismo sem freios e do descontrole que afeta a vida coletiva.
Mas nem tudo que verte sangue nas ruas é ação black bloc. Nem todos os que batem e quebram seguem a eventual filosofia de vida que lhe é típica. Muitos são revoltados, gente que quer dar um basta à vida infame que leva na periferia ou que deseja visualizar algum futuro além dos shopping centers. Podem até existir alguns “riquinhos” que aproveitam o pique para descarregar hormônios reprimidos ou mal utilizados.
Não havia black blocs na rodovia Fernão Dias, em São Paulo. Mas havia muita revolta, indignação, ressentimento e medo. Adrenalina de sobra para enfrentar a polícia, pois a polícia é um dos piores pesadelos das periferias urbanas, onde entra sem pedir licença, sem dialogar, matando com espantosa facilidade.
Não se precisa de black blocs para que se extravase o que está armazenado nos porões das periferias, carências e sofrimentos que se misturam com criminalidade, drogas e miséria. A desesperança alimenta desejos de vingança, protestos imprecisos contra tudo que representa ordem e autoridade. Porque a ordem e a autoridade que se apresentam ali não nasceram de nenhuma construção, não são de modo algum “amigáveis”.
É uma situação que afeta a todos, mas fere sobretudo os mais jovens. Mata-lhes o futuro, convida-os a fazer cálculos existenciais negativos. É por isso que são eles que se jogam contra a polícia, que queimam e destroem. Encontram assim formas de lutar por reconhecimento, de aparecer, de adquirir uma identidade que a vida lhes rouba, de exigir uma atenção que lhes é negada. Ou será que há alguma política para eles, algum braço do Estado que não seja o da polícia? A democracia política não lhes faz muito sentido, pois seus resultados não são palpáveis, não são decodificados. Quem atua nas periferias como agente democrático? Agem ali operadores e associações de outro tipo, algumas delas especializadas em fomentar violência.
A violência explode sempre que a política soluça, a democracia não encorpa como valor e os governos não produzem resultados. Anda junto com a exclusão, o crime, a exploração. Não há como sumariamente suspendê-la. Em épocas de má política e muito espetáculo, a necessidade de dizer “não aguento mais” conflui para a busca de um lugar que dê visibilidade. É uma via torta, contraproducente. Mas há um tipo de política nela, que precisa ser compreendida. Até para que não se ative uma espiral de violência que a ninguém beneficiará.
Como apagar o rastilho? Certamente não com mais polícia. Pactos e entendimentos são recursos cívicos eficazes, atos que celebram a cooperação para a conquista de coisas comuns, no caso, políticas públicas e direitos. Se forem sérios, generosos e tiverem qualidade, vencem. Temos deficiências nessa área, mas sempre se pode tentar superá-las. Poder-se-ia começar, por exemplo, com um pacto intraestatal: situação e oposição, União, Estados e municípios trabalhando juntos, em nome de um plano de recuperação das periferias, de desmilitarização da polícia, de valorização das escolas, gestos que deixem claro que se quer de fato fazer alguma coisa. Sem isso, será difícil que se avance.
*Marco Aurélio Nogueira é cientista social, Diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP e acaba de lançar As ruas e a democracia - ensaios sobre o Brasil contemporâneo (Contraponto)
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás
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