- O Globo
• Em seu discurso, Cármen Lúcia reconheceu que a Justiça não atende às expectativas da população e, mais do que uma reforma, precisa passar por transformação
“O tempo é de esperança. Quer-se um Brasil mais justo e é imprescindível que o construamos”
“Justiça não é milagre, nem jurisdição é mistério. De tudo se dará ciência e transparência”
A norma protocolar determina que os registros e cumprimentos se iniciem pela mais elevada autoridade presente. Inicio, pois, meus cumprimentos, dirigindo-me ao cidadão brasileiro, princípio e fim do Estado, senhor do poder da sociedade democrática, autoridade suprema sobre todos nós, servidores públicos, em função do qual há de labutar cada um dos ocupantes dos cargos estatais.
Passo aos cumprimentos, cumprindo o que é a forma regulamentar, e com todo o gosto, cumprimento ao presidente da República, presidente Michel Temer, a cuja presença agradeço, ao presidente do Senado, senador Renan Calheiros, na pessoa de quem cumprimento os membros do Poder Legislativo, o presidente da Câmara dos Deputados, deputado Rodrigo Maia, ministros do Supremo Tribunal Federal, de ontem e de hoje, e peço licença para destacar entre todos o meu querido amigo ministro Ricardo Lewandowski, de quem fui vice, e que, agora, voltando à bancada, tenho certeza que continuará a colaborar como sempre colaborou, com toda fleuma e com todo o empenho, para que tivéssemos e continuemos a ter um STF comprometido com a Constituição e com os desígnios da sociedade.
Senhores, ex-presidentes José Sarney, Luiz Inácio Lula da Silva, corregedor nacional de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, na pessoa de quem cumprimento os conselheiros do Conselho Nacional de Justiça. Senhora presidente do Superior Tribunal de Justiça, Laurita Vaz, na pessoa de quem cumprimento os ministros de tribunais superiores, senhor presidente do Superior Tribunal Militar, ministro tenentebrigadeiro do ar Willian de Oliveira Barros, senhor presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministro Ives Gandra Martins Filho, na pessoa de quem cumprimento os presidentes dos tribunais regionais do trabalho, presidente do Tribunal de Constas da União, ministro Haroldo Cedraz, na pessoa de quem também apresento os cumprimentos aos ministros daquele tribunal, presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Dr. Roberto de Figueiredo Caldas, ministro de Estado de Justiça e Cidadania, Dr. Alexandre de Moraes, na pessoa de quem cumprimento todos os ministros de Estado do atual governo, Sr. chefe do estado maior do conjunto das Forças Armadas, almirante de esquadra Ademir Sobrinho, Sr. procurador-geral da República, Rodrigo Janot, na pessoa de quem cumprimento os membros do Ministério Público, Dr. defensor geral federal, Sr. Carlos Eduardo Barbosa Paz, Sr. presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Sr. Cláudio Lamachia, na pessoa de quem cumprimento todos os advogados brasileiros, Sr. governador do Distrito Federal, Rodrigo Rolemberg, Sr. governador do Estado de Minas Gerais, Fernando Pimentel, na pessoa de quem cumprimento todos os governadores de estado aqui presentes, Sr. presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, desembargador Mario Machado Vieira Neto, Sr. presidente do TJ-MG, desembargador Hebert Carneiro, na pessoa de quem cumprimento os presidentes de tribunais de Justiça aqui presente, sr. presidente da Assembleia Legislativa de MG, deputado Adalclever Lopes, presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, dr. Tércio Lins e Silva, presidente da AMB, dr. João Ricardo dos Santos Costa, na pessoa de quem cumprimento todos os presidentes de todos os institutos e associações da magistratura brasileira, Dr. Nélida Pinon, queridíssima amiga, mas que aqui também cumprimento como representante da Academia Brasileira de Letras, senhores embaixadores e membros do corpo diplomático, senhores magistrados, jornalistas, servidores deste e de outros tribunais, familiares e amigos dos ministros empossados e ministros desta casa e servidores dos demais órgãos da administração pública.
Quase 40 anos de minha vida profissional, de peleja constante no direito, instrumento de pacificação social, pergunto-me hoje se será a Justiça, ela mesma, um direito. Direito é o produto de valores culturais. Mas não tenho notícia de um ser humano que não aspira à Justiça. Ou uma ideia de Justiça. Como se ela fosse não um dado da cultura, que pode acontecer ou não numa sociedade, mas um sentimento. Se, no verso de Cecília Meireles, a liberdade é um sonho, que o mundo inteiro alimenta, parece-me ser a Justiça um sentimento, que a humanidade inteira acalenta. Isso explica cedermos, nós humanos, espaços de liberdade para sermos e vivermos com o outro na crença sentida, até ao mais incréu dos homens, de que, com os outros, se alcança relação de Justiça. Não há prévia nem permanente definição do justo para todos os povos, em todos os tempos e em todo lugar. Mas há o credo da Justiça, sem predefinição, necessária apenas por acreditarmos não ser possível vivermos sem Justiça. É ela que permite supor que a dor de viver é superável pela suavidade do justo conviver.
É o juiz o depositário desta fé, garantidor da satisfação desse sentimento. Com homens lidamos nós, os juízes. O homem é a nossa matéria, sua vida, sua morte, seus sonhos, suas dores, suas alegrias e dissabores. A este dever nunca faltará o verdadeiro juiz, muito menos o juiz brasileiro, menos ainda o Supremo Tribunal, que atuará com rigor e respeito à Constituição e a todos os valores que predominam e que forjaram este ordenamento hoje em vigor.
Não entendi, dez anos atrás, aqui chegando, fala a mim dirigida de que, juíza, iria sofrer o cargo, não fruir a função. Tinha razão José Aparecido de Oliveira quando me lançou esse alerta.
Guardar e fazer garantir a satisfação do sentimento de Justiça de cada um e de todos os brasileiros como juíza constitucional é, tarefa tão grata quanto difícil. E compromisso que não tem fim. Compromisso, reconheça-se, nem sempre bem-sucedido. Quase nunca bem entendido. E apenas compromisso imprescindível como forma única de superação da barbárie.
E há de se reconhecer que o cidadão não há de estar satisfeito, hoje, com o Poder Judiciário. O juiz também não está. Para que o Judiciário nacional atenda — como há de atender — a legítima expectativa do brasileiro, não basta mais uma vez reformá-lo. Faz-se urgente transformá-lo. Tarefa ingente e necessária, para ser levada a efeito com o esforço de toda a comunidade jurídica e com a compreensão de toda a sociedade do que está a se propor e a praticar.
Talvez estejamos vivendo tempos mais difíceis que experiências históricas anteriores. Talvez porque também talvez cada geração tenha a ilusão e um pouco de soberba de achar que o seu é o maior desafio. Apenas por ser o seu e ter de ser resolvido com o empenho que cada situação impõe. Mas é certo que se modificaram, na raiz, os paradigmas antes adotados. Exauriram-se os modelos estatais e sociais antes aproveitados. O sonho de ser feliz e de viver numa sociedade justa é o mesmo, o de sempre: o que e como ser feliz e qual o modelo de sociedade justa, não é o mesmo de sempre.
Caetanos e não caetanos deste Brasil tão plural concluem em uníssono: alguma coisa está fora de ordem, fora da nova ordem mundial. O que nos cumpre, a nós servidores públicos em especial, é questionar e achar resposta: de qual ordem tudo está fora...
Nosso olhar recai hoje sobre realidades inéditas. E até a capacidade de ver a si e ao outro não é mais tão fácil. Olhos vidrados, virtuais, nem sempre virtuosos em ver o igual em sua diferença piscam sem reter o antes visto.
Os conflitos multiplicam-se e não há soluções fáceis ou conhecidas para serem aproveitadas. Vivemos momentos tormentosos. Há que se fazer a travessia para tempos pacificados. Travessia em águas em revolto e cidadãos em revolta. A busca pela Justiça como seja o ideal consensualizado — põe-se como bússola a impor que se persista na tentativa de se alcançar alguma calmaria.
Porque a busca pela Justiça é atemporal, mas o pensar o que e como a Justiça é engajado. Cada povo tem o seu ideal do justo. O que todos os povos de todos os tempos têm em comum é a inaceitação do injusto. Nosso tempo é de maior cuidado, prudência para saber ouvir e entender e coragem para enfrentar o que precisa ser mudado, a despeito de interesses superados ou desconexos com as demandas sociais legítimas.
Há uma boa nova a chamar a atenção do juiz. A luta pela Justiça hoje é mais firme, fruto, no caso brasileiro, talvez da experiência democrática que experimentamos desde a década de 80. Mais especificamente, desde o início de vigência da Constituição de 1988.
Mas, em parte, por isso mesmo, é de inegável gravidade e de difícil solução rápida o julgamento, em prazo razoável, de processos multiplicados, chegantes, no Brasil, à centena de milhões. Costurados em modelos artesanais, conflitos produzidos em escala industrial e de solução cada vez mais urgente não têm julgamento fácil de ser produzido em tempo curto, como exige o cidadão e há de aprender a fazer o Judiciário.
Justiça é sentimento de que tem fome o ser humano, porque sem ela a dignidade humana é retórica. Sem Justiça, sobra a força de uma pessoa sobre a outra; a violência pessoal, que não respeita o que de humano distingue o homem de outras espécies. E como repito tanto, fome dói. Nosso encargo e compromisso é supri-la.
Riobaldo afirmava que “natureza da gente não cabe em nenhuma certeza”. Mas parece-me que natureza da gente não se aguenta em tantas incertezas. Especialmente quando o incerto é a Justiça que se pede e que se espera do Estado. Esse só existe e se justifica para garantir a efetividade do justo, como concebido e plasmado no ordenamento jurídico.
Sei que este Supremo Tribunal Federal, de história proba e republicana, há de ser honrado pelos que ocupam, hoje, as cadeiras deste Colegiado, não se deixando ser refém de especiais dificuldades momentâneas, que vão de conceitos a serem recriados até modelos e práticas inovadoras. A transformação há de ser concebida em benefício exclusivamente do jurisdicionado, que não tem porque suportar ou tolerar o que não estamos sendo capazes de garantir.
Em tempos cujo nome é tumulto escrito em pedra, como diria Drummond, os desafios são maiores. Ser difícil não significa ser impossível. De resto, não acho que, para o ser humano, exista, na vida, o impossível. Impossível é apenas o caminho novo que, por covardia ou indolência, não se é capaz de buscar para se realizar o que precisa ser feito. Para o juiz, impossível é não pensar que ele existe só e só para o jurisdicionado, o qual acredita, espera e tem direito seja julgado o que acredita ser seu direito. A jurisdição é serviço público essencial, sem o que a ideia mesma do Estado de Direito não tem como prosperar.
Entregar ao cidadão brasileiro o seu direito não é gesto automático de uma Administração que não sente nem sabe o homem cuja vida e seus interesses escrevem-se nos autos do processo. Entregar ao cidadão brasileiro o seu direito é compromisso com o ato de justiça, nossa obrigação e nossa responsabilidade.
O que o Judiciário não deu certo e, reconheça-se, em muito ainda não deu há que se mudar para fazer acontecer na forma constitucionalmente prevista e socialmente justa. Não procuro discutir problemas. Minha responsabilidade é fazer acontecer as soluções necessárias.
O Judiciário brasileiro reclama mudanças e a cidadania exige satisfação de seus direitos. É tempo de promover as mudanças, diminuindo o tempo de duração dos processos sem perda das garantias do devido processo legal, do amplo direito de defesa, de garantia do contraditório, mas com processos que tenham começo, meio e fim e não se eternizem em prateleiras emboloradas que empoeiram as esperanças de convivência justa. Insisto: o momento parece-me de travessia, quando atravessamos nós mesmos, refazendo nossas velhas formas descompassadas com este tempo mudado, e nossas próprias trilhas, gastas pelos mesmos passos, que caminham sobre si mesmos, para que nossos pés palmilhem veredas novas em busca dos gostos atuais para os cidadãos de hoje.
Justiça é sentimento a ser respeitado em especial pelo juiz, cujo oficio é garantir que a confiança do ser humano se fortaleça para que a vida com os outros seja mais amena, com respeito a todas as diferenças e a identidade humana que é garantia da igualdade na dignidade. E quem tem a tarefa formal de satisfazer esse sentimento há de levar sua tarefa com o cuidado de quem carrega o sacrário no qual se guarda a fé na Justiça e, mais que tudo, a esperança no justo viver com o outro. E sem esperança, viver é mais que perigoso, é aflitivo.
Dificuldades do atual momento exigem mais coragem, que passa a ser não uma qualidade, mas uma imposição. Comprometer-se com o novo ainda não claro, mas que precisa ser visto para dar ao cidadão o de que ele precisa — e às vezes de forma que nem ele mesmo sabe ser o melhor e mais necessário — é que conduz a um Judiciário coerente com o que a sociedade exige do Estado-juiz. Há muito e profícuo trabalho a ser feito, em sequência ao que vem sendo realizado pelas gestões que me antecederam. O Supremo Tribunal constrói-se a cada tempo e em sequência que não se altera em seus compromissos republicanos.
Muito foi feito, muito mais há a fazer. Tenho certeza que há empenho, seriedade e honradez que o cargo de juiz exige para sermos capazes de dar cobro à exigência que nos impõe o jurisdicionado.
Esquece-se muito o que dizem as pessoas, especialmente em momentos como este. Mas nunca se deslembra do que se faz, especialmente quando o feito desdobra-se em experiências que melhoram a vida das pessoas. E não digo melhoria da vida sonhada, mas do todo dia, da labuta e da alegria ou agonia diária, num Estado cuja Constituição garante direitos que têm de ser assegurados jurídica e socialmente.
Cumpre-nos dedicar de forma intransigente e integral a dar cobro ao que nos é determinado pela Constituição da República e que de nós é esperado pelo cidadão brasileiro, o qual quer saúde, educação, trabalho, sossego para andar em paz por ruas, estradas do país e trilhas livres para poder sonhar além do mais. Que, como na fala do poeta da música popular brasileiro, ninguém quer só comida, quer também diversão e arte.
Cumpre a nós, servidores do povo, devotarmos à causa da Justiça como agentes de transformação das instituições que envelheceram, pois na esteira das mudanças socioeconômicas e tecnológicas que dominam o cenário atual, as estruturas não mais atendem aos fins estabelecidos no art. 3° da Constituição, os quais se mantém atualíssimos, mas que serão honrados com novos instrumentos a serem criados e aplicados.
O tempo é também de esperança. Homens e mulheres estão nas praças pelos seus direitos e pelo seus interesses. Quer-se um Brasil mais justo e é imprescindível que o construamos. Cansamos de sermos Pais de um futuro que não chega nunca. O futuro é hoje e há de ser construído pela união de todos, com direito às diferenças e respeito à identidade de cada um, garantindo-se sempre a igualdade em direitos de todos e para todos.
A ética não está em questão: é dever de todos e de cada, não se transigindo com a sua inobservância. A lei não é aviso, pelo que há de ser cumprida por todos. O Estado é de direito e a democracia é uma construção permanente, responsabilidade de todos, em especial de cada um de nós, servidores públicos. O Brasil é o nosso compromisso: o Brasil de hoje, a Justiça que se quer e se pede hoje, o Brasil que merecemos e pelo qual é nosso dever lutar e fazer acontecer. Afinal, a história de cada povo ele mesmo a constrói.
Este Supremo Tribunal Federal tem sua história feita a partir dos mandamentos constitucionais. Continuará a ser assim. O que se proporá a transformar diz com o aperfeiçoamento dos instrumentos de atuação jurisdicional. E cada proposta será transparente e imediatamente explicitada à sociedade.
Justiça não é milagre, nem jurisdição é mistério. De tudo se dará ciência e transparência.
Sossegue-se o cidadão: entregar a Justiça a quem busque o Judiciário será levado a efeito com a intransigente garantia dos princípios constitucionais, firmados com o objetivo expresso de construirmos uma sociedade livre, justa e solidária. E a garantia de que trabalhamos para termos uma prestação mais rápida, mais eficiente e menos custosa ao cidadão. Os projetos neste sentido serão expostos, breve e pormenorizadamente, aos cidadãos.
Constituição não é utopia. Justiça não é sonho. Cidadania não é aspiração. O Judiciário brasileiro sabe dos seus compromissos e de suas responsabilidades. Em tempo de dores multiplicadas, há que se multiplicarem também as esperanças, à maneira da lição de Paulo Mendes Campos. Afinal, gente só não é capaz de fazer e melhorar o que não tenta. Temos sorte de sabermos que o Brasil que merecemos pode e há de ser construído.
O Judiciário brasileiro não desertará desse seu encargo. A tarefa é dificultosa, sei-o bem. Mas não deixaremos em desalento direito e ética que a Constituição impõe que resguardemos. Porque esse é nosso papel. E porque o Brasil é cada um e todos nós. O Brasil que queremos seja mesmo pátria mãe gentil para todos os brasileiros.
Muito obrigada.
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