- O Globo
Acabaram virando rotina livros que apontavam até a necessidade da expulsão do Brasil das empresas americanas
A tradição brasileira de glorificar o Estado, como agente de desenvolvimento, modernizador e instrumento indispensável para resolver as demandas sociais, e a identificação dos Estados Unidos — o famigerado imperialismo americano, raiz primeira do nosso atraso — como o agente causal do fracasso nacional tiveram uma curiosa pré-história ideológica.
Estes dois pilares supostamente explicativos das nossas mazelas nem sempre foram dominantes no debate político. Dois bons exemplos — um no século XIX e outro no século XX — foram André Rebouças e Monteiro Lobato. Ambos criticaram a ação estatal na economia e tiveram os Estados Unidos como referência positiva, enfrentando a contínua demonização dos ianques.
No sentido contrário, numa primeira tentativa de antiamericanismo, ainda em um momento em que a Europa era o padrão econômico-cultural para a elite nacional, Eduardo Prado escreveu “A ilusão americana” (1893). O autor centrou seu ataque no governo Floriano Peixoto e no apoio americano recebido pelo presidente durante a Revolta da Armada. Segundo Prado, “é tempo de reagir contra a insanidade da absoluta confraternização que se pretende impor entre o Brasil e a grande república anglo-saxônica, de que nos achamos separados, não só pela grande distância, como pela raça, pela religião, pela índole, pela língua, pela história e pelas tradições do nosso povo.”
Durante os anos 1930, as empresas e os capitais americanos eram bem-vindos. A visita do presidente Franklin Roosevelt, em 1936, reforçou ainda mais os laços com o Brasil. A influência cultural americana era muito presente, especialmente no cinema. Roosevelt fez questão de destacar esta proximidade, até dando a Vargas um protagonismo hemisférico que não tinha: “Uma coisa eu quero lembrar. Existem duas pessoas no mundo que inventaram o New Deal: o presidente dos Estados Unidos e o presidente do Brasil.” No seu diário, Getúlio anotou que: “Roosevelt mostrouse muito interessado em auxiliar o Brasil na solução dos problemas de sua defesa militar e econômica.”
Se durante o Segundo Reinado e os primeiros 50 anos da República o sentimento antiamericano nunca foi um elemento expressivo no debate político brasileiro, tudo começou a mudar logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. O início da Guerra Fria trouxe ao Brasil não só o antiamericanismo, como o discurso estatista e, como consequência, o socialismo como uma das alternativas econômicas.
Após a Revolução de 1930, o papel do Estado foi a cada dia mais presente na cena política. Houve, então, uma confluência ideológica entre a esquerda — já nesta época sob hegemonia comunista — com o ultraconservadorismo varguista — basta recordar a ditadura do Estado Novo. Da esquerda veio o discurso antiamericano, já com a alcunha de anti-imperialista; e da ditadura estado-novista veio o nacionalismo. Se na arena política eles eram adversários acérrimos, no campo econômico tinham enorme proximidade. O laço da aliança ideológica foi dado pelo culto ao Estado, que deveria ser fortalecido ao extremo: para a esquerda como um caminho para a ditadura do proletariado; para a direita varguista, como um instrumento de poder.
No pré-1964, o discurso do atraso, com tinturas de “libertação nacional”, ganhou um espaço (e até legitimidade) nunca visto. O atraso econômico brasileiro seria uma consequência do imperialismo americano, ou seja, o nosso fracasso é que tinha possibilitado o sucesso americano. Neste clima de histeria e de manipulação histórica, acabaram virando rotina livros que apontavam até a necessidade da expulsão do Brasil das empresas americanas. Um deles, depois de quase 200 páginas e um discurso monocausal, concluiu que “o nosso país, assim como as nações coirmãs da América Latina, são os financiadores que, em sua miséria, enviam anualmente parcelas maciças de suas riquezas para financiar o ‘colosso revolto do Norte’”. E exortou “os trabalhadores, os estudantes e o povo em geral a unir todos os seus esforços em defesa do Brasil e exigir o banimento da nossa terra de todas as grandes empresas dos monopólios do imperialismo ianque.”
Em meio a este clima político, foi absolutamente natural que as visões de Rebouças ou Lobato acabassem literalmente desaparecendo completamente do debate político. Foram consideradas ingênuas ou datadas. O moderno era fortalecer o Estado, atacar o imperialismo americano e defender o nacionalismo — até com fortes tinturas xenófobas. E o lado oposto, ocupado por interlocutores tão vinculados ao capitalismo estrangeiro — especialmente o americano —, que retirava legitimidade do seu discurso, caracterizado por uma defesa caricata do liberalismo econômico e uma submissão a interesses antinacionais. Dessa forma, um pensamento original que poderia dar sustentação a uma visão de mundo que combinasse um projeto de desenvolvimento capitalista, com equilíbrio entre a presença nacional e estrangeira, foi suprimido da cena política. E a demonização do estrangeiro — especialmente do americano —, o inchamento do Estado e a vazia retórica nacionalista dominaram por mais de meio século o campo das ideias e da prática político-administrativa. E quem perdeu — e como! — foi o Brasil.
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Marco Antonio Villa é historiador
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