Articulação
permitiria que Brasil, China, Índia e Rússia se organizassem para produzir
vacinas
Está
certo que Brics, na maior parte do tempo, foi mais uma sigla do que uma aliança
concreta. Originalmente representando Brasil, Rússia, Índia e China, a sigla
foi inventada por um economista britânico, Jim O’Neill, para designar o grupo
de países emergentes com mais chances de se tornarem ricos e influentes.
Que
formassem um grupo, era duvidoso, dadas as notórias divergências entre, por
exemplo, Índia e China, ou Rússia e China, sem contar que o Brasil não parecia
ter qualquer proximidade com aqueles três.
Num
dado momento, entretanto, com o Brasil sob governo petista, surgiu um interesse
comum entre aquelas nações em fazer um contraponto à influência americana,
principalmente, e europeia, em segundo lugar. Seria a voz mais importante do
mundo emergente.
O
grupo se formalizou diplomaticamente, incorporando a África do Sul, para ter um
representante daquele continente. De uma coisa meramente retórica, de mais
discurso e menos ação, evoluiu para algo mais prático, especialmente com a
criação do Novo Banco de Desenvolvimento, chamado banco do Brics, para
financiar projetos em comum. Banco que é hoje presidido por um brasileiro, o
economista Marcos Troyjo, indicado pelo governo Bolsonaro.
Tudo
isso para dizer que as circunstâncias abriram uma enorme possibilidade para o
Brasil — não aproveitada. Dos membros do grupo, um, a China, era não apenas o
principal parceiro comercial do Brasil, como um dos maiores produtores mundiais
de medicamentos e insumos. A Índia, há anos, cravou posição como a maior
produtora de genéricos e também de insumos farmacêuticos. A Rússia, em
reconstrução, não havia perdido a capacidade tecnológica, inclusive nas
ciências biológicas e médicas.
O Brasil tem dois institutos com reconhecimento mundial na produção de vacinas, o Butantan e Manguinhos.
Todo
mundo sabia disso quando se iniciou a pandemia. E a oportunidade estava na mão:
uma boa articulação permitiria que Brasil, China, Índia e Rússia se
organizassem para produzir e distribuir vacinas em larga escala, com
financiamento de seu próprio banco.
China,
Índia e Rússia entrando com a tecnologia e as fórmulas; Brasil, com sua
capacidade de produção e seu imenso mercado, estendendo-se para o Mercosul e
toda a América Latina.
Mas
isso jamais passou pela cabeça do presidente Bolsonaro e de seu chanceler,
Ernesto Araújo. Nessa cabeça, a China é um bando de comunistas, que produz
vacina para destruir o mundo ocidental. A Rússia, bem, seja o que for, não é
amiga dos EUA. A Índia, do direitista e populista Narendra Modi, até poderia
ser próxima, mas o país tem uma diferença histórica com os EUA.
Sendo
a maior produtora de genéricos, a Índia sempre teve interesse em limitar as patentes
farmacêuticas, dominadas pelas grandes farmacêuticas americanas e europeias.
Por
isso, em meados do ano passado, a pandemia crescendo, a Índia propôs na OMS que
as patentes de medicamentos relacionados à Covid-19 fossem temporariamente
suspensas.
Trata-se
de uma controvérsia. A patente, o direito exclusivo de explorar a venda de um
medicamento, é um estímulo importante para que as farmacêuticas invistam
bilhões de dólares na busca de uma nova substância.
Mas
faz tempo que o mundo, incluindo governos e setor privado, está debruçado na
busca de arranjos legais que permitam conciliar a patente com a distribuição de
medicamentos para as nações mais pobres.
A
calamidade da pandemia justificava esse esforço. Só que o Brasil de Bolsonaro
seguiu fielmente os EUA de Trump e votou contra a suspensão temporária de
patentes da Covid, deixando Índia, principalmente, e China enfurecidas.
A
retórica antichinesa de Bolsonaro e sua turma terminou o serviço.
Se
não fosse o governador João Doria, o Brasil não teria vacina alguma.
Agora,
Bolsonaro implora os medicamentos de Modi e tem vergonha de pedir os insumos
chineses, esperando que Doria resolva o problema. A vacina “chinesa assassina
do Doria” vira a vacina do Brasil, na nova mentira bolsonarista, tentando
salvar o que não pode salvar: o fato de que ele desprezou o sofrimento e
boicotou a vacina.
Uma diplomacia pragmática salvaria milhares de vidas. Essa outra matou.
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