sábado, 1 de abril de 2023

Entrevista | Arieh Saposnik: ‘Movimentos de extrema direita pelo mundo estão conectados’

Arieh Saposnik, historiador da Universidade Ben-Gurion do Negev, afirma que a extrema direita se apossou de símbolos israelenses e que reforma judicial de Netanyahu pode ecoar em outros países

Por Renato Vasconcelos / O Globo

O recuo de Benjamin Netanyahu para rediscutir o projeto de lei de reforma do Judiciário em Israel — que muitos ativistas apontam como a morte da divisão de Poderes no país— não foi suficiente para convencer historiador Arieh Saposnik, professor da Universidade Ben-Gurion do Negev. Um dos milhares de israelenses que foram às ruas nos protestos contra a reforma, que propõe uma maior intervenção do governo na escolha de ministros e redução do poder de revisão legal da Suprema Corte sobre leis aprovadas no Parlamento, Saposnik acredita que a pausa no processo é apenas uma estratégia para diminuir a pressão dos opositores da iniciativa.

Em conversa com O GLOBO em visita ao Brasil, onde participou de um ciclo de palestras sobre a transformação de Israel em um símbolo para a extrema direita global, o historiador afirmou que a tendência é que a violência contra os protestos aumente, e que em caso de aprovação, o projeto pode ecoar pelo mundo.

Sua vinda ao Brasil foi para um ciclo de palestras sobre a apropriação de Israel como modelo cultural pela extrema direita no mundo. Poderia explicar esse fenômeno?

Como você sabe muito bem, existem símbolos de Israel, como a bandeira do país, que se tornaram marcadores de identidade política, social e ideológica em um contexto que na verdade não tem nada a ver com Israel. É como se Israel tivesse se tornado uma marca ou um código para uma série de questões que às vezes não têm nada a ver com o próprio Estado de Israel ou com o que de fato está acontecendo no país. Infelizmente, neste momento, Israel se tornou um dos estereótipos mais negativos sobre isso.

Mas o que levou Israel e seus símbolos a se tornarem a representação dessa extrema direita, que muitas vezes não tem conexão alguma com o país ou com o judaísmo?

A resposta fácil e rápida seria que temos um governo de extrema direita, e que desde 1977, salvo poucos anos, Israel tem sido liderado por um governo de direita e conservador, do partido Likud em aliança com partidos religiosos. Mas as raízes são muito mais profundas. Há um pilar religioso, que tem a ver com o simbolismo da Terra Santa, que desde o século XIX motiva disputas geopolíticas e religiosas não apenas entre judeus e muçulmanos, mas também as Igrejas Católica e Ortodoxa.

Há também uma conexão com o imaginário do judeu nas tradições de direita, que mudou em pouco tempo. Se você pensar no século XIX, os judeus estavam no imaginário como fracos, afeminados, coniventes. Hoje, a imagem do judeu é exatamente oposta: forte, militarizado, exportador de armas. Essa transformação radical permitiu que essa tendência aparentemente filosófica entrasse e tomasse o lugar de algumas tendências antissemitas, mas criou uma linha divisória muito tênue, o que criou uma tendência de “antis-semitismo pró-Israel”.

Infelizmente, temos na atual direita israelense pessoas que estão interessadas em cultivar essa imagem.

Existe uma conexão entre os movimentos de extrema direita em Israel e no Brasil?

Certamente. Sabemos que os movimentos de extrema direita pelo mundo estão conectados, como a aliança entre Netanyahu e Bolsonaro, as alianças com [o premier húngaro, Viktor] Orbán. Há uma extrema direita global — não entenda que estou sugerindo alguma teoria da conspiração, não acho que eles sejam tão organizados. Eles criam essa aliança de uma maneira esperada e natural, da mesma forma que a luta que estamos travando agora pela democracia israelense também faz parte de uma luta global em um momento de crise da democracia liberal em todo o mundo.

Eles claramente fazem parte de uma tendência ampla que é essa pós-verdade populista, de fatos alternativos. Está minando nossa própria capacidade de entender a realidade. E essa é a base desse populismo que faz parte do que houve aqui no Brasil e, infelizmente, temos Israel na vanguarda hoje.

Quais seriam os pontos comuns da agenda desses grupos?

Uma das bases intelectuais é a era da pós-verdade. Acho que essa realidade orwelliana é muito crucial para esses movimentos. Nos EUA, [o ex-presidente Donald] Trump foi o campeão mundial disso, mas também vemos em Israel, e isso cria uma base. Além disso, há os ataques a instituições liberais, concentração de poder nas mãos de cada regime — esse é um dos principais eixos do que o governo chama de reforma judicial, que muitos de nós em Israel vemos realmente como um golpe ilegal — e é sobre uma semeadura de ódio. Uma das principais táticas que este governo usa é usar as feridas históricas da sociedade israelense para alimentar sua narrativa. Este governo está muito ativamente engajado em semear o ódio como um dos principais pilares e em minar as instituições, e as instituições judiciais são um alvo geral. Elas foram um alvo na Polônia e na Hungria antes.

O que estamos vendo em Israel neste momento é uma reação institucional a essa agenda de extrema direita?

Outro dos pilares da agenda da extrema direita é a destruição da sociedade civil, porque ela é perigosa para um regime autocrático centralizado. Então, em Israel, há esse esforço para minar a sociedade civil. Acho que a sociedade civil israelense esteve um pouco adormecida, mas agora temos instituições e líderes de instituições que estão lutando contra isso.

O verdadeiro desafio acontecerá à medida que essa legislação for aprovada na Knesset [o Parlamento] e, em seguida, for para a Suprema Corte. Essa será uma crise muito séria, porque algumas das instituições do Estado, como os militares e a polícia, terão que tomar a decisão de obedecer à Suprema Corte ou ao governo? E então podemos estar diante de um problema muito grande.

Em discursos recentes, Netanyahu vem alardeando a possibilidade de uma guerra civil. Ela existe realmente?

Ele está fazendo de tudo para provocar uma. Nas últimas semanas, o governo vem mobilizando e incentivando manifestações de direita, como contramanifestações aos atos democráticos. Já houve incidentes de violência sem condenação da violência por parte do governo. E a violência vai piorar. Quando Netanyahu decidiu interromper o processo legislativo, Itamar Ben-Gvir ameaçou deixar o governo e, para mantê-lo, lhe prometeram essencialmente sua própria milícia privada. Aonde isso pode levar?

A pausa do processo legislativo da reforma do Judiciário é um artifício de sobrevivência política ou Netanyahu tem mesmo intenção de uma abertura ao diálogo?

Eu acho que é parte de uma estratégia dupla de tentar acalmar os protestos e depois preparar o solo para continuar com o golpe. O governo não deu nenhuma indicação em nenhum momento [de que abriria diálogo]. Na verdade, eles deram todas as indicações claras de que não têm nenhuma intenção real de interromper essa lei.

O senhor acha que, se essa reforma for aprovada em Israel, os outros movimentos de direita vão usá-la como modelo no resto do mundo?

Certamente soa como um cenário provável. Há um vídeo que está circulando em grupos de WhatsApp do movimento de protestos que mostra Netanyahu anos atrás, falando sobre a importância da independência do Judiciário e como se isso fosse comprometido em Israel, se espalharia para outras democracias. O próprio Netanyahu respondeu para você: sim. E nesse caso, acho que ele provavelmente está certo.

Nenhum comentário: