- Valor Econômico
• Experimentar ser adulto não é já ser adulto
A maioridade virou caso de polícia. No debate sobre a redução da maioridade penal, só que se discutiu foi o "penal". A "maioridade" mesma foi para segundo plano, reduzida à possibilidade de mandar uma pessoa para a cadeia aos 16 anos. O adjetivo tomou todo o espaço do substantivo.
Quem defende a redução da maioridade diz coisas como: se alguém pode votar aos 16 anos, pode muito bem ir para a cadeia por ter cometido um crime. Ou ainda: crianças e adolescentes hoje têm experiências antes exclusivas de adultos e uma pessoa de 16 já deve ser considerada como adulta. A posição em favor da redução da maioridade ecoa preocupações com a sexualização de crianças, com a violência dos filmes e dos games, com o acesso considerado precoce às experiências do sexo, das drogas e do álcool.
Mas a questão que realmente importa é: o eventual acesso de crianças e adolescentes a experiências consideradas antes como típicas da vida adulta faz de um adolescente ou de uma criança um adulto? Fazer essa pergunta significa refletir sobre as razões pelas quais se estabeleceu uma idade de passagem para a vida adulta. É da maioridade que se trata aqui e não apenas de seu aspecto penal.
Há quase dois séculos, Hegel caracterizou a modernidade como composta por três instituições fundamentais: a família, a sociedade civil e o Estado. Vista nesse quadro, a família se mostra como uma instituição essencial para a formação de indivíduos autônomos. É uma esfera protetora em relação aos imperativos do mercado e do comando estatal, em uma fase de aprendizado e de descoberta.
Todas essas instituições passaram por mudanças estruturais em duzentos anos. A família burguesa que era o modelo de Hegel é hoje uma instituição aberta a uniões estáveis, configurações monoparentais e homossexuais. O que se entende por família inclui diferentes arranjos de pais separados, configurações plurinacionais e multiétnicas. É cotidiana e miúda a luta contra a reprodução da divisão sexual do trabalho típica de uma sociedade machista. O direito de família e mesmo o direito penal regulam algumas relações que antes pertenciam apenas à esfera da privacidade. A psicologia e a psicanálise ensinaram que a família também produz e reproduz patologias que podem bloquear uma formação autônoma dos indivíduos.
São transformações que dão prova de uma impressionante maleabilidade dessa instituição, capaz de comportar mudanças profundas sem alterar seu papel social fundamental. São mudanças que mostram que a família é até hoje um espaço insubstituível para a formação de uma pessoa. É o lugar em que pode se dar uma socialização protegida de crianças e adolescentes.
Esse "pode se dar" é necessário para lembrar que esse espaço de proteção é negado cotidianamente a milhões de crianças e jovens. Uma redução da maioridade penal acabaria por institucionalizar essa negação de um direito. Um direito que diz o que se quer ser como sociedade e não a sociedade tal como existe.
É claro que assusta que crianças e adolescentes tenham acesso a experiências que há cinquenta anos eram reservadas ao mundo adulto. Mas esse é um caminho sem volta. Não há controle familiar que dê conta das portas abertas pela internet e pela convivência escolar. A única saída virtuosa para essa nova situação histórica é reconhecer que crianças e adolescentes precisam ter cada vez mais capacidade de decidir por si mesmos. Para isso, precisam de cada vez mais informação - e não menos. Têm aprender a fazer as experiências com a consciência possível dos riscos envolvidos.
É isso o que se pretende dizer quando se afirma que crianças e adolescentes são hoje "já adultos". Mas o fato de crianças e adolescentes terem cada vez mais cedo acesso a experiências de adultos não os torna menos crianças e menos adolescentes. Apenas faz deles crianças e adolescentes diferentes de algumas décadas atrás. Não significa de modo algum que não precisem de proteção para experimentar e aprender. Podem mesmo precisar de mais proteção do que antes.
Quem é contra a redução da maioridade é contra a redução da fase de descoberta e aprendizado pessoal e cidadão. Sabe que essa proteção especial nesse período de formação é essencial para que a lógica do mundo adulto não se imponha cedo demais, que o espaço de experimentação seja preservado. Experimentar ser adulto não é já ser adulto.
Não é por outra razão, por exemplo, que o voto entre 16 e 18 anos é facultativo, não é por outra razão que pessoas nessa faixa etária não podem se candidatar a cargos eletivos. Têm a faculdade de aprender o que é o exercício de um componente fundamental da cidadania em um ambiente ainda protegido. Não deixaria de ser um belo exercício de formação, aliás, perguntar aos adolescentes nessa idade o que pensam da redução da maioridade. Dar-lhes voz também no debate público seria um interesse exercício de aprendizagem cidadã.
Mas o rumo regressivo que tomou a discussão não tem admitido esse tipo de generosidade social. Porque há exceções, pretende-se mudar a regra. Porque há crimes cometidos por adolescentes, conclui-se que todos devem ser considerados adultos. Muda-se o que se entende por maioridade em nome da possibilidade de mandar alguém para a cadeia. Até mesmo em nome de pesquisas de opinião que dão ampla maioria a favor da redução da maioridade.
Em seu texto "Respondendo à pergunta: o que é o Esclarecimento?", Immanuel Kant sustentou que não vivia em uma época esclarecida, mas em processo de esclarecimento. Para ele, Esclarecimento (ou Iluminismo) é sinônimo de maioridade. Para Kant, a humanidade é culpada por sua própria minoridade.
Do século 18 para cá, o Esclarecimento já não é mais aquele, bombardeado que foi por críticas, fundadas e infundadas. Mas o problema colocado por Kant permanece: a maioridade de uma sociedade não é a soma da maioridade de seus integrantes, é uma sociedade ela mesma maior. A redução da maioridade penal é mais um obstáculo que a sociedade se põe a si mesma no caminho para sair de sua minoridade.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
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