Quando
o Programa Nacional estiver funcionando normalmente, aí vai aparecer o
imunizante no sistema privado
Vamos
falar francamente: ainda neste ano, mais para o segundo semestre, hospitais e
clínicas particulares estarão oferecendo vacina contra a Covid-19, em caráter
suplementar ao Programa Nacional de Imunizações — e tudo de acordo com a
Constituição.
Um
pouco de história: a Constituinte de 1988 tinha um viés claramente estatizante.
Por isso, temos o Sistema Único de Saúde — e o “único” aí não era apenas um
modo de falar. A ideia era essa mesma: um sistema estatal, universal e
gratuito. E obrigatório, vetando a medicina privada.
Só
não ficou assim por dois motivos. Primeiro, porque seria preciso estatizar
hospitais, clínicas e mesmo consultórios privados. E não havia dinheiro para
isso — já que não se poderia simplesmente confiscar tudo, como se fosse uma
ditadura.
O
segundo motivo vai na mesma linha: teria o Estado os recursos necessários para
esse sistema gratuito? Está lá no artigo 196: que a “saúde é direito de todos e
dever do Estado” e que será garantido “acesso universal e igualitário”.
Reconhecendo isso, os constituintes incluíram o artigo 199, dizendo que a assistência à saúde é “livre à iniciativa privada”. Como isso estava em contradição com o contexto, colocaram-se várias ressalvas: essa atuação seria “complementar” e controlada pelo SUS, seria vedada a empresas estrangeiras e se daria preferência às instituições filantrópicas em relação àquelas com fins lucrativos.
O
entendimento dos estatizantes era simples: com o tempo, dada a qualidade e
gratuidade do SUS, o sistema privado desapareceria ou ficaria apenas para os
poucos milionários.
O
mundo andou, e como estamos hoje? Mais de 40 milhões de contratos particulares
com planos e operadoras de saúde, muitas de capital estrangeiro. E um sistema
privado de qualidade internacional.
Isso
já funciona no caso da Covid-19. Os hospitais e clínicas particulares atendem
os doentes e aplicam os testes. Aliás, os altos dirigentes da República se
tratam nesses hospitais.
Por
que, portanto, não podem vacinar?
Por
questões econômicas, éticas e políticas. Na economia: ainda há escassez de
vacinas em relação à demanda mundial. As farmacêuticas que já têm o imunizante
estão vendendo apenas para governos e instituições multilaterais, como a OMS. A
entrada do setor privado no negócio, no mundo, aumentaria ainda mais a demanda
e elevaria os preços. Assim, se cairia onde os líderes mundiais de respeito
tentam evitar: que os ricos passem na frente.
Mas,
para falar francamente, de novo, ricos, no cenário mundial, estão tentando
passar à frente. A União Europeia encomendou 400 milhões de doses à
AstraZeneca, para entrega neste primeiro trimestre. A farmacêutica avisou,
nestes dias, que não conseguirá entregar nem metade disso. Qual a reação de
parte dos líderes da União Europeia. Proibir a AstraZeneca, que tem sede na
Europa, de exportar sua vacina antes de atender a toda a demanda da comunidade.
Ainda
bem que líderes como a alemã Angela Merkel se opõem ao que consideram falta de
solidariedade global.
Mas
veremos.
A
questão ética vem na sequência. Não se podem vacinar os ricos, aqui e lá fora,
antes dos grupos prioritários, pobres ou não.
A
questão política decorre das anteriores. Claro que os hospitais e clínicas
privadas, assim como as grandes empresas, poderiam estar no mercado comprando
vacinas, se é que já não o fizeram. Mas não estão querendo vacinar neste
momento justamente por temor da reação da sociedade, dos clientes e dos
parceiros comerciais.
Tudo
considerado, no momento, no Brasil e no mundo, cabe aos governos comprar e
aplicar as vacinas, seguindo a fila dos mais para os menos vulneráveis.
Não
há problema onde os governos estão cumprindo isso. Não é o caso do Brasil. Como
o governo Bolsonaro desdenhou a doença, está muito atrasado na busca dos
imunizantes. Se não fosse o governo paulista, tudo o que teríamos seriam dois
milhões de doses vindas da India.
Saída de momento? O setor privado financiar o público e, sobretudo, apoiar na organização. Quando o Programa Nacional estiver funcionando normalmente, aí vai aparecer a vacina no sistema privado. E se o governo nem assim conseguir vacinar? Aí os mais ricos vão se vacinar à sua maneira.
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