O Globo
Ao contrário das vítimas, podemos nos
desconectar ao fim do dia, mudar de canal
Depois da tempestade — e antes mesmo da
bonança —, costuma vir o esquecimento. As águas ainda não baixaram por
completo, e o Rio Grande do Sul já não rende mais manchetes. Nesta sexta-feira,
7 de junho de 2024, não havia na primeira página da Folha ou do Estadão
qualquer menção à tragédia dos gaúchos. No GLOBO, apenas uma pequena chamada.
Em menos de 40 dias, o desastre ambiental que afetou 475 municípios, desalojou mais de meio milhão de pessoas, matou 172 e deixou 42 desaparecidas — além de arrasar comunidades inteiras — já se recolheu às páginas internas dos três maiores jornais do país. Foi substituído pelo imposto das blusinhas e o foguetão do Musk, pela condenação de Trump e o perdão à rachadinha do Janones, pelo crescimento do PIB e a baixa da taxa de desemprego, pela PEC das Praias e o ‘algoritmo do ódio’, pelas eleições no México e na Índia, pelas derrotas de Lula e os ataques a Gaza. Vida que segue.
Menos para quem perdeu tudo. Para estes, a
vida parou — e será preciso mais que reconstruir pontes, erguer bairros
provisórios, fornecer auxílio emergencial. Recomeçar do zero, financeira e
emocionalmente, não é hoje, para milhares de pessoas, apenas força de
expressão. Quanto a nós — que acompanhamos tudo a seco e a salvo, nos
emocionando com os resgates e nos solidarizando por meio de ações concretas (ou
bem-intencionados clichês nas redes sociais) —, nós vamos nos cansando de
sofrer com a dor alheia, num efeito colateral (e natural) da superexposição.
Foi tudo gráfico demais, intenso demais — a
água barrenta tomando as casas, as cidades submersas, os salvamentos
transmitidos em tempo real. Mas, ao contrário das vítimas, podemos nos
desconectar ao fim do dia, virar a página, mudar de canal — e as coisas à nossa
volta continuam sendo o que sempre foram, não se tornaram lixo acumulado nas
ruas.
Em psicologia, há o conceito de “alagamento”.
É quando somos expostos a uma quantidade tão esmagadora de estímulos que se
torna difícil processar tudo. O resultado pode ser terapêutico (a cura de uma
fobia, pela redução da resposta ao medo) ou o embotamento da percepção (como
mecanismo de defesa). Estamos alagados, querendo voltar à programação normal,
justamente quando emergem os maiores desafios, e a mobilização deveria ser
redobrada.
É preciso que a reconstrução seja rápida e
planejada, com soluções definitivas e sustentáveis, para que a economia se
recupere logo, e o súbito empobrecimento da população comece a ser revertido. É
preciso atualizar as leis ambientais — as condicionantes agora são outras. E,
mais que nunca, fiscalizar o uso dos recursos públicos.
O governo federal tem se empenhado em
desmontar todas as estruturas de combate à corrupção e ao aparelhamento do
Estado. O cenário de devastação é perfeito para o expediente das “ações
emergenciais” (pouco transparentes) e para decisões politiqueiras, como a
importação de arroz — a ser vendido a preço subsidiado, com mal disfarçada
propaganda na embalagem.
Continuam as mortes (agora por leptospirose),
mas o evento não é mais midiático. Já passaram os 15 minutos da primeira-dama
exultante pelo resgate do cavalo Caramelo (aquele que foi égua por um dia) e do
ex-primeiro-filho se exibindo em vídeo promocional, de jet-ski.
O Rio Grande do Sul pode ser uma notícia
velha ou um ponto de virada. A escolha é nossa.
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