O Globo
Huawei ou Evergrande, qual delas simboliza
melhor o “modelo chinês”? A primeira, maior fabricante mundial de equipamentos
de telecomunicações, tornou-se uma marca global e um ícone da irresistível
ascensão chinesa. A segunda, um conglomerado imobiliário, era um nome
desconhecido fora da China até surgir a notícia de sua iminente falência sob o
peso de dívidas de US$ 300 bilhões. Ela ilumina uma China oculta — e, ainda, os
limites de seu modelo econômico.
Na última década, o mercado imobiliário expandiu-se para se tornar a fonte de mais de um quarto do crescimento econômico chinês. Hoje, quase três quartos do patrimônio das famílias concentra-se em propriedade imobiliária. Antony Blinken, o secretário de Estado dos EUA, pediu ao governo chinês para “agir responsavelmente” diante da ruína da Evergrande. Chefes de bancos centrais ao redor do mundo murmuram as palavras “momento Lehman”, traçando um paralelo sombrio com a falência de 2008 que deflagrou a maior crise financeira mundial desde o Crash de 1929.
A Evergrande dificilmente será um segundo
Lehman Brothers, mas seu destino conta uma história mais ampla. A economia
chinesa assenta-se, em larga medida, na velha indústria da construção civil:
edifícios residenciais ou empresariais, fábricas, usinas, rodovias, pontes,
viadutos, hidrelétricas. O frenesi do setor, que não deixa intactos nem os
povoados longínquos, alimenta-se de financiamento e esculpe um castelo de
dívidas. Atrás dele, encontra-se um sistema bancário cujo núcleo é constituído
por quatro gigantescas instituições estatais.
Sob Xi Jinping, o capitalismo de Estado
chinês evoluiu para uma combinação em que o segundo termo predomina cada vez
mais, em detrimento do primeiro. Na antiga URSS, os desequilíbrios econômicos
manifestavam-se pela carência de bens de consumo; na China, pelo excesso de
dívida. O endividamento total da economia chinesa saltou de 140% do PIB em 2008
para quase três PIBs no final de 2020. O valor é similar ao das dívidas dos EUA
e da Zona do Euro, mas concentra-se numa base estreita de instituições
financeiras. A China tem pés de areia.
O superinvestimento é o traço comum entre o
atual capitalismo de Estado chinês e a antiga economia estatal soviética. Para
além do setor da construção civil, incontáveis empresas chinesas investem em bens
que carecem de demanda. Na potência asiática, cerca de 300 mil firmas
desenvolvem veículos movidos a energias alternativas. A extravagância
financiada por bancos estatais responde a estímulos políticos, não a
sinalizações de mercado. O “milagre chinês” tem um limite — e seu esgotamento
não parece distante.
Nas últimas semanas, a agonia da Evergrande
somou-se à crise energética que provocou paralisações em série em linhas de
produção e interrupções em cadeias globais de suprimentos. A causa imediata são
inundações em províncias carboníferas do norte do país que impuseram o
fechamento temporário de minas. Contudo, atrás da crise circunstancial, está a
persistente dependência do carvão mineral, cuja produção cresce em ritmo muito
mais lento que a demanda. O país conviverá com uma elevação estrutural dos
preços da energia, com implicações diretas sobre os custos de produção
industrial. A China barata, fornecedora global de bens manufaturados a preços
irrisórios, vai se apagando no passado.
Muitas vezes, desde o Massacre da Praça da
Paz Celestial de 1989, vaticinou-se o encerramento do longo ciclo da expansão
chinesa. Diante do fracasso da profecia, os EUA concluíram que o ciclo
prosseguirá indefinidamente e formularam um consenso bipartidário expresso na
noção da Guerra Fria 2.0. Obama definiu a China como parceiro e rival. Trump
fez os pratos da balança penderem para a rivalidade — e Biden segue a mesma
linha de contenção da potência asiática.
A estratégia de contenção sustenta-se no
pressuposto de que o crescente poderio econômico chinês impulsionará suas
ousadas ambições geopolíticas. Hoje, porém, há razões para duvidar da solidez
dos alicerces da economia chinesa — e da lógica de longo prazo da política
externa dos EUA.
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