Valor Econômico
Com os cofres abarrotados, São Paulo está
largada
Aprende-se nas primeiras aulas de
jornalismo que o buraco na rua em frente à casa do leitor é mais importante
para ele do que a grande manchete internacional.
Talvez seja preciso levar mais a sério essa lição elementar. O leitor deve estar cansado de se deparar, nas páginas e telas principais da mídia, com assuntos técnicos, como discussões de política fiscal, teto de gastos, arcabouço, meta de inflação, juros, desindustrialização e outros temas macroeconômicos importantíssimos, mas que não dizem respeito a suas aflições do dia a dia.
Com a licença do leitor não paulistano,
vamos falar sobre São Paulo. Ao circular pelas ruas dessa que é uma das maiores
e mais ricas cidades da América Latina, o leitor vê cenários tenebrosos:
buracos com cones e sem cones, calombos remendos mal-acabados no asfalto,
iluminação precária, enchentes, calçadas intransitáveis, faixas de pedestres e
ciclovias apagadas, moradores de rua aos milhares, mato e lixo nas guias,
semáforos antigos e desregulados, obras privadas obstruindo e sujando a via
pública.
Mesmo com dominância de “arcabouços”, isso
vira tema de economia porque diz respeito à gestão pública no município mais
populoso do país, o quarto do mundo e cuja administração tem o caixa abarrotado
de dinheiro.
Claro que esses recursos podem e devem ser
aplicados preferencialmente em setores essenciais, como saúde, educação e
habitação, bom tema para outras colunas. Mas pretende-se tratar aqui do descaso
com zeladoria, mobilidade e inovações no funcionamento da megacidade.
Arrefecida a pandemia, o trânsito paulistano
voltou a ser infernal e faz mais de 4 mil vítimas por ano, apesar do
“centenário” rodízio, que tira das ruas de segunda a sexta, nos horários de
pico, um quinto dos carros. Pedestres são comumente atropelados em travessias
com faixas apagadas e sem iluminação. Boa parte dos problemas de mobilidade na
cidade decorre não apenas do excesso de veículos, mas também da antiguidade de
normas e equipamentos, em especial aqueles que os paulistanos chamam de faróis,
também conhecidos como semáforos, sinais, sinaleiras etc.
Não há em São Paulo, por incrível que
pareça, faróis com temporizadores ou “inteligentes”, já vistos em muitas
cidades do país. Filas gigantescas de carros e ônibus esperam o farol abrir sem
que haja nenhum veículo ou pedestre atravessando a pista. Congestionamentos,
assaltos e atropelamentos poderiam ser bem reduzidos com os faróis que “leem” o
volume de veículos e pedestres nos cruzamentos.
Pode-se argumentar que a prioridade de
investimentos nas grandes cidades, em matéria de trânsito, é o transporte
público e que os carros perderão importância no futuro. Argumento aceitável.
Mas, por enquanto, os automóveis estão aí, serão realidade ainda por muitos
anos, elétricos ou não, e parece irresponsável ignorar a necessidade de
organizar e modernizar o sistema caótico de circulação na cidade.
Pouco se investe na orientação do trânsito.
Raros agentes da CET que circulam nas ruas se preocupam mais em multar veículos
infratores que em facilitar a circulação dos disciplinados. Algumas regras de
trânsito denotam até sadismo, como as proibições desnecessárias de conversões à
direita com farol fechado. Nas grandes cidades do mundo, semáforos impedem a
travessia, mas não a conversão à direita feita com cuidado e dando preferência
à passagem de pedestres. As proibições são exceção, apenas para esquinas muito
movimentadas. Em São Paulo, são a regra, sem amparo do código nacional de
trânsito e com enorme reflexo na fluidez da circulação.
Não parece haver cérebros da administração
municipal pensando em promover pequenos e médios ajustes para melhorar o
tráfego e proteger pedestres e ciclistas. Conversões à esquerda em grandes
avenidas com largos canteiros centrais são a regra em metrópoles pelo mundo.
Aqui, elas existem, mas como exceção. A regra é fazer um longo retorno por
congestionados quarteirões para virar à esquerda.
Para quem está acostumado a debater
macroeconomia e problemas federais, discussões como essas parecem picuinhas.
Então, é oportuno lembrar a surrada frase cuja autoria tem sido algumas vezes
atribuída a Tancredo Neves e outras a Franco Montoro ou Ulysses Guimarães:
“Ninguém mora na União, todos os cidadãos vivem em municípios.”
Cidade abandonada
Em entrevista a Marta Watanabe, do Valor (15/3/23), o
secretário das Finanças do município de São Paulo, Ricardo Ezequiel Torres,
disse que a prefeitura encerrou 2022 com disponibilidade de caixa bruta de R$
30 bilhões, sendo R$ 10 bilhões em liquidação e R$ 12 bilhões em recursos
vinculados. “Uma capacidade de investimento relevante”, segundo o próprio
Torres, que prometeu investir R$ 11,1 bilhões em 2023. As prioridades serão
obras de drenagem, recapeamento asfáltico, sistema BRT (Bus Rapid Transit), eletrificação
da frota e equipamentos de saúde e educação.
Com a proximidade das eleições municipais,
é provável que essa promessa seja parcialmente cumprida - o recapeamento até já
começou em áreas nobres da cidade, dentro de um programa de metas de mobilidade,
zeladoria e infraestrutura até 2024, ano eleitoral. É difícil, porém, explicar
por que a cidade foi tão abandonada no ano passado, e continuou sendo no último
e chuvoso verão, se a prefeitura tinha R$ 30 bilhões em caixa. A Sabesp,
estatal estadual de águas e saneamento, e outras prestadoras de serviços
públicos são em geral responsabilizadas pelas “crateras” no asfalto, porque
abrem valas e não as fecham como deveriam. Mas, em qualquer caso, cabe à
prefeitura a fiscalização.
Há políticos fiscalistas cuja ideia fixa é administrar as contas públicas, buscar superávit fiscal e encher os cofres de dinheiro. Delegam sem cobranças a obrigação de direcionar recursos para cuidar desses problemas que afetam o dia a dia das pessoas, nas escolas, nas moradias precárias, embaixo dos viadutos forrados de sem-teto, nos postos de saúde, na polícia, nas paradas de ônibus, nos buracos da esquina. Tanto no setor público quanto no privado, o olho esperto do gestor garante que pequenos buracos não virem enormes crateras, frase oportuna em sentido literal ou figurado.
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