segunda-feira, 8 de junho de 2009

As cicatrizes que a crise vai deixar

Luiz Carlos Mendonça de Barros
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A economia mundial continua a mostrar claros sinais de que os momentos mais dramáticos da crise que vivemos ficaram para trás. Os sinais de estabilização da atividade econômica nos países mais afetados pelo ajuste do consumidor americano afastam definitivamente os perigos de um buraco negro. A estabilização das condições financeiras, a recuperação da produção industrial global após um período de cortes excessivos de estoques e a redução do ritmo de destruição de emprego nos EUA são peças importantes neste quebra cabeça. Com isto, a atenção dos mercados deve se voltar progressivamente para a dinâmica de prazo mais longo da economia mundial. Minhas reflexões de hoje estão voltadas para algumas questões que precisam ser acompanhadas, com cuidado, a partir de agora.

A economia mundial vai sair desta crise com cicatrizes importantes. Algumas delas serão superficiais, de fácil recuperação. Outras serão mais profundas e devem permear o tecido econômico de vários países por vários anos. Entre as primeiras podemos citar a nacionalização de bancos e empresas industriais em vários países do primeiro mundo. Apesar do choque cultural criado pela entrada do Estado na seara exclusiva do capital privado, a venda de seu controle a investidores privados deve ocorrer com a normalização do crescimento econômico.

Certamente não haverá escassez de recursos para este movimento com a volta gradual da confiança aos mercados de capitais.

Mas outras cicatrizes vão permanecer por um tempo mais longo e vão exigir um grande esforço por parte dos governos de vários países - principalmente o dos EUA - para serem curadas. Cito algumas que me parecem as mais relevantes. A primeira está relacionada à condução da política monetária nas economias centrais. Após duas décadas de sintonia fina, a crise do ano passado exigiu mudanças radicais nos mecanismos de gestão monetária, com a introdução emergencial do chamado "afrouxamento quantitativo" e a inclusão, pela primeira vez na história, de risco de crédito privado no balanço do Fed.

As preocupações se voltam para a estratégia de reversão destas medidas de emergência a partir do momento em que a recuperação da economia se torne segura. Apesar do elevado nível de ociosidade no setor produtivo e no mercado de trabalho, há preocupações a respeito dos possíveis impactos inflacionários do excesso de liquidez atual. Apesar das incertezas envolvidas, preocupo-me moderadamente com esta questão. Isto porque o Fed dispõe de mecanismos eficientes para lidar com este problema e se diz, desde já, preparado para agir com rapidez. Não me parece sensato duvidar deste compromisso.

Minha preocupação mais séria, esta sim uma cicatriz profunda e complexa, é com o crescente endividamento do governo americano, que pode dobrar e atingir mais de 80% do PIB nos próximos dez anos. Tal dinâmica sombria decorre da perspectiva de crescimento econômico abaixo do potencial por um longo período. Este cenário certamente comprometeria a qualidade do crédito dos títulos do Tesouro, limitando severamente a autonomia fiscal do governo. Parece-me uma tarefa muito difícil reduzir o endividamento público, no momento em que gastos maiores com os programas sociais prometidos pelo governo Obama e pesadas despesas militares pressionam o orçamento. O debate sobre a solvência do governo é inédito para o país emissor da moeda reserva global, que agora se vê questionado pelo que seria um abuso deste privilégio.

Nas últimas semanas tem ficado evidente a preocupação do mercado, que começa a ver riscos de que o governo dos EUA em algum momento se veja compelido a monetizar sua dívida, o que resultaria em inflação e instabilidade global de grandes proporções. A compra de títulos do Tesouro pelo Fed, para implementar sua política de afrouxamento quantitativo, é mais um ingrediente neste caldo de cultura. Não creio que a temida monetização ocorrerá, mas a dúvida do mercado tem sido um dos vetores por trás da elevação das taxas de juros longas nos EUA, o que pode prejudicar a recuperação - ainda muito frágil - da economia. O problema é sério o suficiente a ponto do presidente do Fed ter feito na semana passada um discurso duro, rechaçando qualquer temor de frouxidão monetária e alertando o establishment político americano que ações firmes para equilibrar o orçamento no longo prazo precisam ser implementadas sem demora.

Isso me leva à cicatriz final, que está relacionada em parte à dinâmica do financiamento da dívida americana, e que traz em si um misto de ameaça e oportunidade para os países emergentes: a forma com que o mundo superará o padrão de desequilíbrios em conta corrente que caracterizou os últimos anos é que vai definir os vencedores de longo prazo desta crise. Além das questões complexas a respeito da nova configuração do sistema monetário internacional, que não cabe detalhar neste artigo, uma direção já parece clara: a importância dos países emergentes será cada vez maior, no que tenho chamado de "descolamento incremental".

A crise permitiu ao analista aprofundar esta questão. Baixada a poeira do stress financeiro, fica ainda mais claro o dinamismo intrínseco de grande parte das economias em desenvolvimento. É possível separar as economias emergentes que dependiam pouco dos mercados de consumo no mundo desenvolvido daquelas que tinham parcela importante de seu crescimento ligado a esta dinâmica. No primeiro caso os melhores exemplos são a Índia e o Brasil. Já a China e a maioria dos países do Sudeste Asiático representam bem o segundo grupo. Mas estes países, mesmo sem a alavanca do consumidor americano, ainda vão crescer bem acima das economias do G-7.

Esta diferença expressiva de taxas de crescimento deve provocar um progressivo realinhamento das expectativas dos investidores, aumentando, ao longo do tempo, a percepção de descolamento.

Por fim, a consolidação progressiva da China como polo autônomo de dinamismo será o grande resultado desta crise. A inexorável reconfiguração chinesa em direção a vetores domésticos de crescimento é chave para o cenário de longo prazo. E o Brasil encontra-se em posição privilegiada para participar deste processo.

Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é diretor-estrategista da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações. Escreve mensalmente às segundas-feiras.

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