• A CPI da Petrobras foi criada com o objetivo de não pegar os corruptos. Ainda assim, o governo e a liderança do PT no Senado decidiram não correr riscos e montaram uma fraude que consistia em passar antes aos investigados as perguntas que lhes seriam feitas pelos senadores. A trama foi gravada em vídeo
Hugo Marques – Veja
Era tudo farsa. Mas começou parecendo que, dessa vez, seria mesmo para valer. Em março deste ano, os parlamentares tiveram um surto de grandeza institucional. Acostumados a uma posição de subserviência em relação ao Palácio do Planalto, eles aprovaram convites e convocações para que dez ministros prestassem esclarecimentos sobre programas oficiais e denúncias de irregularidades.
Além disso, começaram a colher as assinaturas necessárias para a instalação de uma CPI destinada a investigar os contratos da Petrobras. Ventos tardios, mas benfazejos, finalmente sopravam na Praça dos Três Poderes, com deputados e senadores dispostos a exercer uma de suas prerrogativas mais nobres: fiscalizar o governo. O ponto alto dessa agenda renovadora era a promessa de escrutinar contratos firmados pela Petrobras, que desempenha o papel de carro-chefe dos investimentos públicos no país. Na pauta, estavam a suspeita de pagamento de propina a servidores da empresa e o prejuízo bilionário decorrente da compra da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos, operação que jogou a presidente Dilma Rousseff numa crise política sem precedentes em seu mandato. O embate estava desenhado. O Legislativo, quem diria, esquadrinharia o Executivo. Pena que tudo não passou de encenação.
O caso de Pasadena parecia ter potencial para desconstruir a imagem de gestora da presidente e atrapalhar sua candidatura à reeleição. Ele ganhou fôlego depois de uma troca de acusações entre os próprios governistas. Primeiro, Dilma disse que votou a favor da aquisição da refinaria, em 2006, quando comandava o Conselho de Administração da Petrobras, com base num parecer "falho" elaborado por Nestor Cerveró, então diretor da área internacional da Petrobras. O parecer teria omitido a existência de duas cláusulas contratuais capitais, o que teria induzido os conselheiros a erro. Integrantes da antiga cúpula da Petrobras reagiram. Ex-presidente da companhia, José Sergio Gabrielli afirmou que Dilma queria se eximir de uma "responsabilidade" que também era dela. Já Cerveró ameaçou desmentir a presidente se fosse convocado a depor no Congresso, declarando que ela dispunha, sim, de todas as informações necessárias para a tomada de decisão. A mera perspectiva de investigação provocava uma disputa fra-tricida e desgastava a presidente-candidata a seis meses da eleição. Foi justamente por isso que parlamentares governistas selaram um armistício e, longe dos holofotes, fecharam um acordo espúrio para neutralizar a CPI, proteger-se uns aos outros e, principalmente, salvaguardar a campanha de reeleição de Dilma Rousseff.
VEJA teve acesso a um vídeo que revela a extensão da fraude. O que se vê e ouve na gravação é uma conjuração do tipo que, nunca se sabe, pode ter existido em outros momentos de nossa castigada história republicana. Mas é a primeira vez que uma delas vem a público com tudo o que representa de desprezo pela opinião pública, menosprezo dos representantes do povo no Parlamento e frontal atentado à verdade. Com vinte minutos de duração, o vídeo mostra uma reunião entre o chefe do escritório da Petrobras em Brasília, José Eduardo Sobral Barrocas, o advogado da empresa Bruno Ferreira e um terceiro personagem ainda desconhecido.
A decupagem do vídeo mostra que, espantosamente, o encontro foi registrado por alguém que participava da reunião ou estava na sala enquanto ela ocorria. VEJA descobriu que a gravação foi feita com uma caneta dotada de uma microcâ-mera. A existência da reunião e seus participantes foram confirmados pelos repórteres da revista por outros meios — mas a intenção da pessoa que fez a gravação e a razão pela qual tomou público seu conteúdo permanecem um mistério. Quem assiste ao vídeo do começo ao fim — ele acaba abruptamente, como se a bateria do aparelho tivesse se esgotado — percebe claramente o que está sendo tramado naquela sala. E o que está sendo tramado é, simplesmente, uma fraude caracterizada pela ousadia de obter dos parlamentares da CPI da Petrobras as perguntas que eles fariam aos investigados e, de posse delas, treiná-los para responder a elas. Isso eqüivale a entregar por debaixo do pano a candidatos de um concurso o gabarito das respostas das provas — e ainda ajudá-los a resolver os problemas propostos. Muita gente desonesta conseguiu entrar na universidade por esse caminho torto. Aqui não se trata de obter fraudulentamente uma vaga no ensino superior. O que o vídeo mostra é a armação de uma fraude para tentar impedir que o povo brasileiro viesse a saber os caminhos e descaminhos de um negócio de centenas de milhões de dólares que, de tão contestado, demandou a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), um dos poucos instrumentos com punir os que malversam seu dinheiro.
A montagem do alçapão destinado a tragar a CPI no Senado teve a participação de servidores graduados do Palácio do Planalto, da Petrobras, do PT e até do presidente de uma das mais combativas comissões parlamentares da história recente, o senador Delcídio Amaral (PT-MS), que comandou a CPI dos Correios, a investigação que resultou na cassação e prisão de mensaleiros ilustres, como o petista José Dirceu. Barrocas revela no vídeo que até um "gabarito" foi distribuído para impedir que houvesse contradições nos depoimentos. Um escárnio. Um teatro.
O Brasil inteiro foi enganado nas transmissões de televisão que mostravam os convocados sendo bombardeados por questionamentos durante horas, no que parecia uma legítima apuração da verdade dos fatos. No dia seguinte, os jornais registravam fielmente em manchetes o desenrolar da CPI. Colunistas e analistas políticos e econômicos faziam suas avaliações, reproduziam entre aspas solenes declarações dos integrantes da comissão. Um trabalho sério, bem-intencionado, mas feito sobre um fundo falso, sobre um jogo combinado entre investigados e investigadores. O momento mais cínico da farsa, descobre-se agora, se deu no depoimento de Cerveró. Depois que o ex-presidente Lula mandou Gabrielli parar de confrontar Dilma, Cerveró se tornou o principal motivo de apreensão do governo porque ameaçara desmentir a presidente diante dos parlamentares. Essa ameaça jamais se consumou. No vídeo, uma das falas de Barrocas desfaz o mistério: ele insistia em saber se estava tudo certo para que chegassem às mãos de Cerveró as perguntas que lhe seriam feitas na CPI.
Paulo Argenta, assessor especial da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, Marcos Rogério de Souza, assessor da liderança do governo no Senado, e Carlos Hetzel, assessor da liderança do PT na Casa, são citados como peças-chave da tenebrosa transação. A eles coube fazer muitas das perguntas que alimentariam a cadeia de ilegalidades entre investigados e investigadores. Diz Barrocas: "Eu perguntei quem é o autor dessas perguntas. Oitenta por cento é do Marcos Rogério. O Carlos Hetzel fez alguma coisa. O Argenta fez outras". Barrocas conta também que o senador Delcídio Amaral era peça-chave da operação para manter Cerveró sob o cabresto governista. Nada mais natural. Delcídio foi padrinho político do ex-diretor na Petrobras. Quando a crise estourou, o senador fez a ponte entre Cerveró e os bombeiros do governo. Tamanha era a sua ascendência sobre o afilhado que até combinava com ele o que e quando falar com os jornalistas. "Falei: "Ó Delcídio, compacta aí". Chamaram ele (Cerveró), deram um curso a ele, media training", declarou Barrocas. Em resposta, o participante da reunião não identificado pela reportagem lembrou que funcionários do departamento jurídico da Petrobras acompanharam o treinamento de Cerveró na véspera do depoimento.
Nessa altura do vídeo, em uma alma mais crédula pode surgir a dúvida de que talvez se tratasse de um tumor institucional, mas do tipo benigno. Ou seja, quem sabe os prestimosos funcionários da Petrobras em Brasília não estariam apenas e tão somente fornecendo informações básicas e públicas aos investigados de modo a poupá-los do constrangimento de fornecer dados inexatos sobre a empresa. Essa impressão benigna se dissipa logo. O tumor é maligno. O objetivo era mesmo montar uma farsa com diálogos combinados entre os suspeitos e seus investigadores na CPI. Barrocas diz em alto e bom som no vídeo que a estratégia de combinar as perguntas e as respostas já havia sido usada em 20 de maio, quando Gabrielli depôs na CPI da Petrobras no Senado. O relator da comissão, o petista José Pimentel (CE), a quem respondem Marcos Rogério e Carlos Hetzel, deu o gabarito a Gabrielli — isso mesmo, gabarito, o termo clássico que define um conjunto de respostas corretas a um conjunto de perguntas. Para um candidato ao vestibular, obter o gabarito antes da prova é garantia de aprovação. Pimentel recorre ao ex-presidente da Petrobras José Eduardo Dutra, que hoje ocupa um cargo de direção na empresa, e à atual comandante da companhia, Maria das Graças Foster, para fazer o gabarito da CPI chegar a Gabrielli. "Eu digitalizei e passei para a Graça. Por quê? Porque eu não sabia que era o "gabarito". Achei que o Dutra tinha trazido para ele e: "estuda aí". Depois que fui lá vi que era o "gabarito". De posse das perguntas e respostas, Gabrielli, Foster e Cerveró passaram com louvor no teatro da CPI. Todos eles "estudaram aí"!
Cerveró ouviu 157 perguntas, das quais 138 do relator Pimentel, dezoito da senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) e uma do presidente da CPI, Vital do Rêgo (PMDB-PB). Os três são da base de apoio a Dilma. Vanessa estava se sentindo dona da situação e tripudiou sobre a oposição: "Lutaram muito para que a CPI tosse instalada, mas agora, em vez de participar, preferem ficar nominando a CPI de "CPI amiga", de "CPI chapa-branca". Com todo esse conjunto de questionamentos? Imagina!". Pois é, senadora Vanessa, com todo esse conjunto de questionamentos conhecidos previamente pelos dois lados da mesa, não foi mesmo uma CPI amiga ou chapa-branca, foi uma CPI que vai demandar uma outra CPI para desvendai- até onde foi a ousadia dos fraudadores, para descobrir que outros crimes foram cometidos além daqueles flagrantemente capitulados nos vinte minutos do vídeo.
"O poder de fiscalização é a própria essência do Legislativo. Não é normal o depoente ou a testemunha terem acesso às perguntas previamente. Isso facilita a vida deles e atrapalha o processo de investigação", disse o senador Vital do Rêgo, presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Casa. Como é bom advogado, pego de surpresa, Vital deu uma resposta política. Procurados por VEJA, Gabrielli, Dutra, Barrocas e Bruno não quiseram comentar o caso. Paulo Argenta disse que não tem nada a ver com isso. A Petrobras declarou, protocolarmente, que colabora com as investigações em andamento. Delcídio Amaral disse que deu apenas sugestões a Cerveró quando o ex-diretor participou de uma audiência pública na Câmara, em abril, antes da instalação da CPI da Petrobras. "Eu sugeri que ele fosse técnico, tivesse um viés empresarial e não titubeasse em relação ao assunto." O senador reconheceu que manteve contato com Barrocas, mas negou que tenha participado da orquestração para vazar as perguntas e combinar as respostas. Carlos Hetzel admitiu que fez perguntas direcionadas aos ex-diretores e disse que entregou o material ao relator Pimentel. "Se eu souber que as perguntas chegaram às mãos dos investigados, denuncio à Polícia Federal." Marcos Rogério também se mostrou assustado com a possibilidade de as perguntas que formulou terem sido passadas aos investigados. Como diria o Ricardo III de Shakespeare: "Agora que as feridas fecharam / e a paz voltou / que ela tenha longa vida entre nós / Amém!". Pena que não é teatro.
Com reportagem de Adriano Ceolin