quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Opinião do dia – Antonio Gramsci*

“Pode-se ver como ocorreu a passagem de uma concepção mecanicista e puramente exterior para uma concepção ativista, que está mais próxima, como observamos, de uma justa compreensão da unidade entre teoria e pratica, se bem que ainda não lhe tenha captado todo o significado sintético. Pode-se observar como o elemento determinista, fatalista, mecânico, tenha sido um “aroma” ideológico imediato da filosofia da práxis, uma forma de religião e de excitante (mas ao modo dos narcóticos), tornada necessária e justificada historicamente pelo caráter “subalterno” de determinados estratos sociais.

Quando não se tem a iniciativa na luta e a própria luta termina assim por identificar-se com uma série de derrotas, o determinismo mecânico transforma-se em uma formidável forca de resistência moral, de coesão, de perseverança paciente e obstinada. “Eu estou momentaneamente derrotado, mas a forca das coisas trabalha por mim a longo prazo, etc.” A vontade real se disfarça em um ato de fé, numa certa racionalidade da história, numa forma empírica e primitiva de finalismo apaixonado, que surge como um substituto da predestinação, da providência, etc., próprias das religiões confessionais.”

*Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere, v.1, p. 106, 4ª edição, Civilização Brasileira, 2006.

Merval Pereira - A lição do Zé Gotinha

- O Globo

A tese de que a vacinação contra a COVID-19 é uma obrigação do Estado, e uma exigência da cidadania para a proteção coletiva deve prevalecer no julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que começou ontem, com o voto do ministro Ricardo Lewandowski.

 “Portanto, aqui é importante estabelecer desde logo, não é uma opção do governo vacinar ou não. É uma obrigação do governo. Não é uma faculdade”, disse Lewandowski. O ministro ressaltou que “a obrigatoriedade da vacinação não contempla a imunização forçada, porquanto é levada a efeito por meio de sanções indiretas”.

A lógica por trás do voto é impor restrições a quem se recusar a vacinar. Também o Procurador-Geral da República deu parecer nesse sentido, lembrando que “o indivíduo que se recusar sofre no plano de restrição de direitos, como por exemplo o de ingressar em certos públicos, ou mesmo de receber benefícios”.  

Ele se referia ao pagamento dos benefícios sociais, que exige carteira de vacinação em dia, assim como matricula em escolas, e inscrição em concursos públicos, entre outros. O ministro Lewandowski também acatou o pedido do PDT para que Estados e Municípios possam ter autonomia para definir restrições e a própria vacinação.

O partido lembrou que vários Estados e Municípios já estão fazendo acordos próprios para comprar vacinas, tanto aqui, no Instituto Butantan, quanto diretamente do exterior, como o acordo feito com a Pfizer, antes mesmo que o governo o fizesse.

Foi o ministro Lewandowski quem exigiu que o governo apresentasse um plano nacional de vacinação, o que foi feito ontem no Palácio do Planalto. Embora não exista ainda a data marcada para o inicio da vacinação, o governo já assumiu que é seu dever.

Ascânio Seleme - Brava gente

- O Globo

São 46 milhões, ou 22% das almas nacionais, que não pretendem se vacinar. É assustador

Somam-se aos milhões os brasileiros que não se vacinarão contra a Covid-19. Segundo o Datafolha, são 46 milhões, ou 22% das almas nacionais, que não pretendem se vacinar. O número é assustador, sem qualquer dúvida. Mas talvez mais aterrorizante ainda, seja a constatação de como esse contingente se formou. Como essas pessoas chegaram à conclusão de que é melhor ficar exposto ao risco de se contaminar com um dos vírus mais violentos e letais que já passaram pelo planeta do que contra ele se imunizar. A primeira resposta é o comportamento do governo e do presidente Bolsonaro, sobretudo. Mas é mais, muito mais do que isso.

Bolsonaro não vai se vacinar e não recomenda vacina alguma. Ao contrário, sugere que elas podem fazer mal. O ministro general Pazuello, todos sabem, adorou o brilho do cargo, mas deslustrou sua farda ao ficar paralisado diante do caos. Claro que essas sinalizações afetam muitas pessoas, mas são as mais débeis que trocam a segurança pelo risco, apenas porque o líder assim orientou. Essas pessoas normalmente não leem, leem pouco ou se deixam mal informar. Buscam esclarecimentos em fontes erradas e acreditam em impressões alheias, desprovidas de embasamento.

O mar de pessoas presente na Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo) ouvindo Bolsonaro na terça-feira, fora os puxa-sacos de sempre, era formado por esse tipo de gente. Que desdenha o vírus e debocha dos que tentam se proteger (os “maricas”, nos termos do presidente), que grita “vivas” toda vez que ouve uma barbaridade pulando da boca de sua excelência, que não usa máscaras e nem respeita o distanciamento social. Foto de Alan Santos, fotógrafo oficial da Presidência da República, publicada ontem pelo GLOBO, explica melhor do que estamos tratando.

Os negacionistas brasileiros foram contaminados pela ignorância porque se recusaram a entender, a aprender. Não quiseram saber. Estavam e continuam disponíveis toneladas de informações científicas e técnicas, que provam que as regras de prevenção evitam o contágio e que a vacinação garante a imunidade. A maioria simplesmente as ignorou, alguns preferiram buscar argumentos fraudulentos, mentirosos, incorretos para justificar sua alienação. Os primeiros são ignorantes genuínos, os demais são ignorantes ideológicos. Estes são os piores.

Luiz Carlos Azedo - MDB quer dar as cartas

- Correio Braziliense

A linha divisória entre governo e oposição no Senado é sinuosa, por causa da relação dos governadores com o governo federal, que funciona na base da velha política de conciliação

O velho MDB quer o comando do Congresso. Em decisão salomônica, seus senadores decidiram lançar candidato próprio à sucessão de Davi Alcolumbre na Presidência do Senado e definiram o critério para escolha do nome que unificará o partido, que tem quatro pré-candidatos: o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (PE); o líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (TO); o líder da bancada, Eduardo Braga (AM); e a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Simone Tebet (MS). Será aquele que trouxer mais votos. Velhos caciques, Renan Calheiros (AL) e Jader Barbalho (PA) atuam nos bastidores para que o nome seja Bezerra. A maioria dos senadores do MDB é governista de primeira hora.

O protagonismo de Davi Alcolumbre (DEM-AP) na Presidência da Casa está em ocaso, que pode ser maior do que se imagina, caso o irmão dele seja derrotado, neste fim de semana, na disputa pela Prefeitura de Macapá. Josiel Alcolumbre é candidato à reeleição, mas sua estrela foi eclipsada pelo apagão no Amapá, que durou três semanas. A oposição se unificou em torno da candidatura de Dr. Furlan (Cidadania), que chegou ao segundo turno. O prestígio de Alcolumbre no comando do Senado era resultado de um movimento pendular: o primeiro, à esquerda, garantiu a sua própria eleição, contra Renan Calheiros, com apoio do grupo Muda Senado, na onda do tsunami eleitoral de 2018; o segundo, à direita, possibilitou a aproximação com a ala da bancada do MDB que queria apoiar o governo.

Ricardo Noblat - Doria derrota Bolsonaro, e o Brasil só tem a ganhar com isso

- Blog do Noblat / Veja

Presidente rende-se à vacina chinesa e à pressa do governador

 Quando se vê em apuros depois de esticar a corda e ela dá sinais de que se romperá do seu lado, o presidente Jair Bolsonaro costuma recuar e falar manso. Foi o que fez mais uma vez – desta, no anúncio do que chamou de “plano de vacinação contra a Covid-19”, ao pregar “a união” para combater “algo que nos aflige há meses”.

O “algo”, tratado por ele como “gripezinha” incapaz de matar 8 mil pessoas, matou até ontem quase 184 mil e infectou mais de 7 milhões. A média móvel de casos chegou a 44.654. O país não atingia esse nível de contaminação desde 4 de agosto. Já a média móvel de mortes foi de 684, a maior desde 2 de outubro.

O recuo de Bolsonaro deve-se à iminente aprovação da vacina CoronaVac pela agência de vigilância sanitária da China, uma das quatro referências globais para a avaliação de novos medicamentos. Pela lei brasileira, tão logo isso aconteça, o uso da CoronaVac em território nacional torna-se imediatamente possível.

Carlos Alberto Sardenberg - Sem vacina e sem auxílio

- O Globo

Campanhas de vacinação são nacionais, mas vá dizer isso aos moradores de São Paulo

O país se aproxima de um momento delicado e com expectativas contraditórias. De um lado, a pandemia está em clara aceleração, e isso pode piorar com as aglomerações de Natal e fim de ano. De outro, há a esperança da vacina, a solução universal.

Essa situação se repete em diversos outros países, especialmente na Europa e nos Estados Unidos. E dificulta a tomada de decisões políticas e econômicas.

A segunda onda exige medidas restritivas — isolamento social — que alguns governos estão aplicando. Essas medidas, porém, são politicamente delicadas, neste momento que deveria ser de confraternização, e atrasam a recuperação econômica.

Por isso, bancos centrais pelo mundo afora e instituições como o FMI alertam os governos: que tenham cuidado na retirada dos estímulos monetários e fiscais. Tradução: que mantenham os juros a zero e, na medida do possível, mantenham os pacotes de apoio às empresas e pessoas, isso incluindo gastos públicos.

Bernardo Mello Franco - Diplomacia da desinformação

- O Globo

O Brasil foi o último país do G20 a reconhecer a vitória de Joe Biden nas eleições americanas. A birra não se limitou ao presidente Jair Bolsonaro e ao chanceler Ernesto Araújo. Os dois contaram com o aval do embaixador em Washington, Nestor Forster.

Em telegramas enviados a Brasília, o diplomata se comportou como tiete de Donald Trump. Em vez de aconselhar o governo a cumprimentar o democrata, endossou a falsa versão de fraude contra o republicano.

“Ele comprou o discurso trumpiano quando a vitória de Biden já era inquestionável. Isso demonstra uma falta de profissionalismo no trabalho de informação”, critica o embaixador Roberto Abdenur, que representou o Brasil nos EUA entre 2004 e 2007.

Maria Hermínia Tavares* - Nem tudo é desastre

- Folha de S. Paulo

São inaceitáveis as idas e vindas na discussão dos recursos destinados à Fapesp

Há mais de duas décadas, o historiador José Murilo de Carvalho usou dados de pesquisas de opinião para refletir sobre o que os concidadãos se orgulhavam. No artigo “O motivo edênico no imaginário brasileiro”, concluiu que apenas a natureza grandiosa —os céus, mares, rios e florestas— gratificava a sociedade. Nada do que os humanos haviam legado ou estivessem construindo causava admiração: o povo era visto, antes, com ceticismo e desprezo.

Com efeito, há muito de negativo a apontar nessa obra perversa que, ao longo do tempo, produziu uma nação de iniquidades e injustiças; predação e violência; ignorância e superstição; notável insensibilidade (das elites) pela sorte alheia (a dos mais vulneráveis); de promiscuidade entre interesses privados e órgãos estatais; de apropriação patrimonialista de recursos e agências públicas.

Bruno Boghossian – O centrão e os radicais

- Folha de S. Paulo

Presidente quer convencer apoiadores de que aliança no Congresso favorece agenda radical

A ansiedade de Jair Bolsonaro está em alta. Depois de tropeçar nas votações do Congresso ao longo de dois anos de mandato, o presidente conta com a vitória de aliados que possam garantir um caminho mais suave para seus planos nas chefias da Câmara e do Senado.

Bolsonaro começou a anunciar suas prioridades para o Legislativo em 2021. As propostas incluem a redução de punições para policiais que matam em serviço, a instalação do voto impresso e a mudança de regras de regularização de terras no país.

Em discursos nas últimas semanas, o presidente disse que terá chances de aprovar esses projetos a partir do ano que vem. A menção a essas pautas não foi acidente: Bolsonaro tenta encantar sua base fiel para neutralizar os danos causados pela aliança do governo com o centrão na disputa pelo comando do Congresso.

Gabriela Prioli - Os arroubos de Jair são propositais

- Folha de S. Paulo

Presidente ampliou seu poder na Abin, acusada agora de ajudar na defesa de Flávio Bolsonaro

Era abril desse perturbador 2020 quando o então ministro da Justiça Sergio Moro convocou uma coletiva para comunicar a sua saída do governo. Disse que não poderia mais continuar, pois teria ouvido expressamente do presidente da República que ele “queria ter uma pessoa do contato pessoal dele, que ele pudesse ligar, que ele pudesse colher informações, que ele pudesse colher relatórios de inteligência, seja diretor, seja superintendente”. Era a admissão da tentativa de aparelhar a Polícia Federal. Segundo Moro, Bolsonaro queria só uma das 27 superintendências da PF, a do Rio.

Moro saiu do governo rompido com Bolsonaro e sua acusação gerou o inquérito no âmbito do qual o STF decidiu pelo acesso ao vídeo da reunião ministerial ocorrida em 22 de abril.

Na ocasião, Bolsonaro reclamava da falta de informações e dizia querer trocar alguém da ponta da linha: “Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira”.

Mariliz Pereira Jorge – Pazuello, o tranquilão

- Folha de S. Paulo

Ministro da Saúde questionou angústia pela chegada da vacina contra Covid-19

O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que não entende xongas de saúde, não deve fazer ideia de que quatro em cada dez brasileiros tem experimentado algum nível de ansiedade por causa da pandemia. Entre 16 países, somos o que mais sofre, segundo pesquisa da Ipsos.

Talvez esses dados iluminem o titular da pasta que, ao ser questionado sobre detalhes do “plano de imunização” do governo, minimizou a complexidade de proteger 200 milhões de pessoas. “Para que essa ansiedade, essa angústia?” Segundo Pazuello, temos o maior programa de imunização do mundo e somos os maiores fabricantes de vacina da América Latina. Ok, conte agora uma novidade. Que dia começa a vacinação?

Vinicius Torres Freire – FMI e OCDE mais pessimista que Guedes

- Folha de S. Paulo

Previsões de PIB em geral estão erradas, mas pobreza vai longe em qualquer estimativa

Vai demorar até 2023 para que a economia do Brasil volte a produzir o que produzia em 2019, antes da epidemia. É o que preveem o FMI (Fundo Monetário Internacional) e a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), um clube de três dúzias de países em geral ricos e que inclui Chile, México e Turquia. Quer dizer, apenas em 2023 o PIB do Brasil voltaria ao nível de 2019. São as previsões de relatórios publicados agora em dezembro.

Para o governo e para o povo do mercado que envia previsões para o Banco Central, voltaríamos ao nível de 2019 em algum momento de 2022. Não muda grande coisa, no mundo real. Além do mais, ainda estaríamos na média mais pobres, pois a população terá crescido. Quer dizer, até 2022, o PIB per capita, por cabeça, ainda será bem menor do que em 2019 em qualquer dessas previsões. Aliás, dificilmente voltaremos ao PIB per capita de 2013 (sim, dois mil e treze) antes de 2026.

Para piorar, embora a renda média aumente um tico, a dos mais pobres deve ficar para trás pelo menos em 2021. O ano que vem ainda será de epidemia e de emprego difícil no setor de serviços, em particular o informal, onde pobres e miseráveis arrumam algum bico.

William Waack - Quem se cala...

- O Estado de S. Paulo

Profissionais não podem reclamar quando permitem que amadores mandem na política externa

O Brasil não é participante relevante de nenhum agudo conflito internacional, seja ele de fronteiras, geopolítico, étnico, religioso ou comercial (estamos ensaiando um na questão ambiental). Por um lado, não deixa de ser uma bênção: nenhuma família brasileira vai dormir preocupada se um integrante seu estará na linha de fogo de algum confronto internacional – a não ser que se considerem como “internacional” as balas perdidas em comunidades controladas pelo narcotráfico e milícias.

Por outro, é uma espécie de “maldição”. A nossa distância dos grandes conflitos ajuda a entender o estado de “anestesia” pelo qual a sociedade brasileira contempla confrontos internacionais. É uma espécie de mentalidade de “isolamento esplêndido”, dado nosso tamanho e posição geográfica, que nos tira o senso de urgência ou de “ameaça” de problemas vindos de fora. Política externa é um assunto para especialistas, e de escasso apelo ao grande público e só em circunstâncias excepcionais – não é parte relevante de campanhas eleitorais.

Foi preciso que no caso da vitória de Joe Biden a política externa brasileira, entregue por Jair Bolsonaro a uma desastrosa mescla de diletantes amadores e profissionais ideologizados, produzisse uma incomparável vergonha internacional para que o Senado humilhasse o Itamaraty e declarasse que o rei está nu. E que assim pelado fosse “para o inferno”, conforme as palavras do senador Major Olímpio dirigidas ao chanceler Ernesto Araujo.

Eugênio Bucci* - Seu desaforista!

- O Estado de S. Paulo

O novo Odorico leva o povo para o altar do sacrifício. Que morram muitos mais. E daí?

Em 1973 não havia liberdade de expressão no Brasil. A ditadura militar torturava dissidentes, exterminava guerrilheiros no Araguaia e tolhia a imprensa. Nas redações dos jornais, censores cortavam reportagens inteiras poucas horas antes de os cadernos começarem a ser impressos nas rotativas. Preencher os vazios abertos pela tesoura da repressão política era um tormento. Este jornal, O Estado de S. Paulo, encontrou uma solução heterodoxa: no lugar do material censurado, passou a publicar trechos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. Entre 2 de agosto de 1973 e 3 de janeiro de 1975, foram 655 inserções do épico lusitano nas páginas do Estado, conforme levantamento feito pelo jornalista José Maria Mayrink.

Pois no mesmo ano 1973, em meio a tantas trevas, entrou no ar uma criação primorosa do dramaturgo brasileiro Dias Gomes: O Bem-Amado. Sob a vigência da mordaça absoluta, O Bem-Amado estreou com a força de uma apoteose libertária e satírica. Era um contrassenso: como podia haver espaço na televisão para tamanha exuberância criativa, e tão crítica, sob uma tirania tão estupidamente violenta?

Dias Gomes era um autor de esquerda, com ligações históricas com o Partido Comunista, e dono de um talento assombroso. O protagonista que ele inventou para O Bem-Amado, Odorico Paraguaçu (interpretado pelo ator Paulo Gracindo), comandava com mão de ferro, sem nenhum constrangimento de ordem moral, a prefeitura da fictícia Sucupira. Odorico era um canalha corrupto e truculento que, sob o gênio de Dias Gomes, ganhava ares despudoradamente cômicos. Nisso residia seu carisma. Falastrão semianalfabeto, posava de orador erudito à custa de expressões incultas, mas empoladas, que proclamava em tons triunfais. Gostava de xingar os adversários de “desaforistas” e quando queria humilhar os subordinados dizia que eram “desapetrechados de inteligência”.

Zeina Latif - O alvo é outro

- O Estado de S. Paulo

O atraso na agenda de reformas também é reflexo da pobreza do debate econômico

De tempos em tempos, a discussão sobre o comportamento da taxa de câmbio volta à tona. Alguns economistas recomendam maior intervenção do Banco Central no mercado para depreciar o câmbio e, assim, supostamente, estimular a indústria e o crescimento. As intervenções não deveriam se limitar a conter a volatilidade da cotação do dólar, como faz o BC usualmente. Seria muito bom se essa recomendação funcionasse. A realidade é bem mais dura.

O conceito relevante a ser utilizado nessa análise é o de taxa de câmbio real, que desconta o nível de preços. Isso porque a alta do dólar tem impacto inflacionário que acaba “corroendo” a depreciação ocorrida. Quando salários e preços sobem muito, reduz-se o efeito final do dólar mais alto na competitividade externa dos produtos domésticos.

Indo além, se um banco central insistir na estratégia, haverá conflito com o objetivo de cumprir a meta de inflação. Os juros terão de subir e, como consequência, a moeda poderá valorizar ainda mais, desta vez pela entrada de dólares no país. Por aqui, já dá para perceber que o câmbio real é uma variável de difícil controle.

Cláudio Gonçalves Couto* - O governo dos invertidos

- Valor Econômico

A lógica do governo sabota as suas próprias políticas

Num dos episódios do ótimo podcast produzido pela Revista Piauí, “Retrato Narrado”, sobre a vida de Jair Bolsonaro, um dos amigos de juventude do atual presidente da República revela a forma como era conhecido quando garoto pelos amigos do Vale do Ribeira: invertido. O apelido se devia ao peculiar raciocínio do jovem Jair, na percepção dos conterrâneos.

Pode-se dizer que essa lógica invertida o acompanhou ao longo da vida e, sem dúvida, caracteriza seu governo. E, se há uma área em que tal inversão se revela de forma cabal, é a política de saúde, ao lidar com a Covid-19.

Preocupado com os efeitos da doença sobre a economia, o presidente instou os brasileiros a não esmorecer, como fariam “maricas”. Em vez disso, conclamou todos a enfrentarem de peito aberto a “gripezinha”, continuando a trabalhar e sair de casa normalmente. Para dar o exemplo, compareceu a diversas aglomerações sem usar máscara - para ele, coisa de “viado”, embora não tenha se constrangido de, vez ou outra, usá-la em público.

Ribamar Oliveira - O grande teste para o teto será em 2021

- Valor Econômico

Salário mínimo deve ficar em torno de R$ 1.095 no próximo ano

O valor da despesa total da União em 2021, que consta em anexo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), aprovada ontem pelo Congresso Nacional, está subestimado. A principal razão é que, em seu cálculo, o Ministério da Economia considerou um INPC de apenas 4,1% neste ano.

Com isso, chegou a um valor para o salário mínimo inferior ao que será efetivamente pago a partir de janeiro. O mais provável é que o piso salarial do Brasil fique próximo de R$ 1.095,00, e não do R$ 1.088,00 divulgado nesta semana pelo governo.

O valor de R$ 1.095,00 foi obtido com a aplicação de um INPC de 4,8% neste ano. No acumulado de janeiro a novembro, ele está em 3,93%. Os analistas de mercado esperam que o INPC em dezembro fique em 0,88%, de acordo com as estimativas coletadas pelo Banco Central e disponíveis em sua página na internet. Como os preços estão em alta, ele poderá ser ainda maior.

O INPC é de fundamental importância para a estimativa da despesa da União porque ele corrige o salário mínimo, que é o piso dos benefícios previdenciários e assistenciais, e reajusta também os benefícios de quem ganha acima do piso. A variação de 0,1 ponto percentual no INPC gera um acréscimo de despesa de R$ 768,3 milhões, de acordo com estimativa feita pela Secretaria do Tesouro Nacional, em seu último relatório de riscos fiscais, divulgado em novembro.

Se o índice for de 4,8%, ele ficará 0,7 ponto percentual acima daquele projetado pelo governo no anexo da LDO. Esse 0,7 p.p. resultará em uma despesa adicional para os cofres públicos de R$ 5,378 bilhões (sete vezes R$ 768,3 milhões), acima da previsão feita pelo governo.

Pedro Cavalcanti Ferreira / Renato Fragelli* - Meio mandato, poucos resultados

- Valor Econômico

O Teto de Gastos e as reservas internacionais são as únicas amarras que contêm a crise de confiança

O governo Bolsonaro está prestes a atingir metade do mandato, com muito pouco a apresentar. Pelo andar da carruagem, a segunda metade será uma reedição piorada da primeira.

No primeiro ano do atual governo, a despeito da falta de maioria no Congresso, para surpresa de muitos analistas, o saldo de reformas econômicas foi positivo. Com o decisivo apoio de Rodrigo Maia na Câmara e Davi Alcolumbre no Senado, aprovou-se uma importantíssima reforma que vinha sendo adiada há um quarto de século, a da previdência. Desde FHC, cada governo avançou incrementalmente nessa área, mas somente a reforma de 2019 extinguiu na prática a aposentadoria por tempo de contribuição, embora professores do ensino básico e militares tenham preservado o direito à aposentadoria precoce. Bolsonaro enviou a reforma ao Congresso, mas atuou nos bastidores para enfraquecê-la, retirando de seu escopo a sua clientela eleitoral mais fiel. Graças ao Congresso, e apesar de Bolsonaro, aprovou-se uma boa reforma da previdência que desviou o país de uma trajetória de endividamento explosiva, bem como reduziu desigualdades.

No início de 2020, já tendo o governo enviado ao Congresso as importantes PECs do Pacto Federativo, Emergencial e Administrativa, havia esperança de novo avanço na pauta de ajuste fiscal estrutural. Sem essas mudanças constitucionais, administradores públicos nos três níveis de governo não têm instrumentos jurídicos para conter o crescimento vegetativo de gastos correntes, mesmo que estejam dispostos a enfrentar o desgaste político decorrente desse tipo de medida. Acreditava-se que o mesmo Congresso que havia aprovado a reforma da previdência também aprovaria as PECs, ou uma versão negociada delas.

Governo federal agora prevê vacina chinesa e aplicação em fevereiro

Inclusão da Coronavac, fabricada pelo Butantã, marca mudança de tom de Bolsonaro

Mateus Vargas / O Estado de S. Paulo

O ministro Eduardo Pazuello (Saúde) informou que o governo deverá começar a vacinação contra a covid-19 no Brasil em “meados de fevereiro”, apesar de o País ainda não ter produtos registrados. No lançamento do plano nacional de imunização, ontem, a União passou a incluir a Coronavac entre as vacinas que devem ser adquiridas. O imunizante foi desenvolvido pela chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantã, órgão ligado ao governo de SP. O instituto disse que consegue entregar doses em janeiro. A cerimônia marcou uma mudança de tom do presidente Jair Bolsonaro em relação ao tema.

Após meses de embate com governadores sobre o enfrentamento da pandemia, Bolsonaro pregou “união” com as autoridades estaduais pelo “bem comum” e minimizou “exageros” ocorridos. O governo sofre pressão para apresentar soluções após países como Reino Unido e EUA começarem a vacinar a população. O Brasil ainda não tem imunizantes registrados. Ontem, pela segunda vez consecutiva, superou 900 registros em 24 horas.

 BRASÍLIA - Considerando pela primeira vez o uso da vacina chinesa Coronovac, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, estimou ontem que o governo deve começar a imunização contra a covid-19 no País em “meados de fevereiro”. A nova previsão, que depende do registro e da compra dos imunizantes, foi anunciada em entrevista após o lançamento do plano nacional de imunização, em evento no Palácio do Planalto que marcou mudança de tom do presidente Jair Bolsonaro sobre o tema.

Após meses de embate com governadores sobre o enfrentamento da pandemia, Bolsonaro pregou “união” com autoridades estaduais pelo “bem comum” e minimizou “exageros” ocorridos. O governo tem sido pressionado a apresentar soluções, após Reino Unido e Estados Unidos começarem a vacinar. Por outro lado, o Brasil assiste a uma escalada de mortes – ontem, pela segunda vez consecutiva, o País superou 900 registros em 24 horas, segundo dados do consórcio de imprensa coletados com as secretarias de saúde.

No plano apresentado ontem, incluiu a Coronavac, desenvolvido pelo laboratório chinês Sinovac e do Instituto Butantã, ligado ao governo de São Paulo, comandado por João Doria (PSDB), rival de Bolsonaro.

A gestão Helder Barbalho (MDB), do Pará, disse que técnicos do ministério afirmaram, em reunião com governadores, que a pasta prevê fechar esta semana contrato com o Butantã para comprar 45 milhões de doses. Segundo o governo paraense, a previsão informada pelo Butantã seria de 20 milhões de doses até 30 de janeiro. O governador do Piauí, Wellington Dias (PT), também citou que o ministério espera ter doses disponíveis já no mês que vem.

Em nota, o Butantã disse que enviou proposta ao ministério para fornecer doses em janeiro, mas não citou datas ou quantidades. Caso a União confirme a compra, prossegue o instituto, o envio do produto ocorrerá tão logo haja registro da Anvisa. Indagado sobre as falas dos governadores, o ministério voltou a dizer que “não há data definida para início da vacinação” e afirmou que o calendário depende de registro na Anvisa.

Ameaça à saúde: Reação de Bolsonaro à vacina pode frear controle da Covid

Ações de Bolsonaro ameaçam imunidade coletiva contra Covid-19, dizem especialistas

Avaliação é que o Brasil se vê na contramão do restante do mundo, cujos governantes manifestam apoio explícito à vacinação; ao declarar que não vai se imunizar, presidente deixa evidente sua falta de respaldo às vacinas

Ana Lucia Azevedo / O Globo

RIO — Medidas e declarações do presidente Jair Bolsonaro ameaçam dificultar que o Brasil alcance a imunidade coletiva contra o coronavírus, fazendo com que a pandemia se perpetue no país. O país se vê na contramão do restante do mundo, cujos governantes manifestam apoio explícito à vacinação. Apesar da coletiva de tom mais moderado no lançamento do Plano Nacional de Vacinação, ao declarar que não se vacinará, por exemplo, Bolsonaro deixa evidente sua falta de apoio a uma vacina contra o coronavírus, alertam especialistas.

Num caso único no mundo, o governo de Bolsonaro também exige que as pessoas assinem um termo de responsabilidade, quando receberem vacinas aprovadas em caráter emergencial pela Anvisa.

Todas as vacinas aprovadas até agora no mundo foram em caráter emergencial, mas nenhum governo exigiu termo semelhante. Vacina aprovada em caráter emergencial não é teste nem a população vacinada é voluntária, explicam cientistas e especialistas em saúde pública. 

Se a Anvisa aprova, mesmo que em caráter emergencial, ela chancela a vacina. Eventuais riscos estarão na bula do imunizante, e o cidadão deve ser orientado, observa o infectologista Julio Croda, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e da Escola de Saúde Pública de Yale. Croda, como outros especialistas, diz que a exigência não tem cabimento e funciona como um desestímulo, empurra para o cidadão a responsabilidade do governo.

— Esse tipo de atitude semeia dúvidas desnecessárias e abala a confiança da população. O brasileiro historicamente aderia à vacinação. A urgência e a necessidade de imunizantes são consenso entre cientistas. Também há uma clara mensagem de negação da ciência. Isso é tudo o que não precisamos, num momento em que os casos e mortes só aumentam. Do presidente aos prefeitos, todas as autoridades precisam demonstrar clara e explicitamente seu apoio à vacinação. É isso que trará a adesão à vacinação e nos livrará da pandemia — afirma a epidemiologista Carla Domingues, que por oito anos (2011 a 2019) esteve à frente do Programa Nacional de Imunizações (PNI).

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

O demolidor da República e seus cúmplices – Opinião | O Estado de S. Paulo

Na sua empreitada para arruinar a República, Bolsonaro conta com comerciantes da Ceagesp, policiais, militares e o Centrão

Desde sua posse, mas especialmente em meio à pandemia de covid-19, o presidente Jair Bolsonaro não se comportou em nenhum momento como se soubesse o que fazer com o poder que os eleitores lamentavelmente lhe conferiram em 2018. Bolsonaro não preside a República; depreda-a – e nisso é coadjuvado não somente pelos fanáticos camisas pardas bolsonaristas, mas por muitos brasileiros comuns que, por ignorância do que vem a ser uma República, respaldam a vandalização da Presidência e, por extensão, da própria democracia.

Já não é mais possível saber qual dos atentados de Bolsonaro foi o mais grave nos dois anos de seu tenebroso governo, mas a terça-feira passada é forte candidata a entrar para a história como o dia em que o presidente declarou guerra a seus governados. Jamais houve nada parecido com isso em tempos democráticos.

Bolsonaro deu declarações em que explicitamente desencorajou seus compatriotas de tomar a vacina contra a covid-19, fazendo terrorismo acerca de eventuais efeitos colaterais. No dia anterior, Bolsonaro havia informado que, diante das ressalvas dos laboratórios, exigirá de quem queira tomar a vacina a assinatura de um “termo de responsabilidade”. Ele mesmo anunciou que não tomará a vacina, “e ponto final”.

Música | Brincante 2020 - Ninguém solta a mão, ninguém (Antonio Nóbrega)

 

Poesia | Antonio Machado - Cantares

Tudo passa e tudo fica
porém o nosso é passar,
passar fazendo caminhos
caminhos sobre o mar

Nunca persegui a glória
nem deixar na memória
dos homens minha canção
eu amo os mundos sutis
leves e gentis,
como bolhas de sabão

Gosto de ver-los pintar-se
de sol e graná voar
abaixo o céu azul, tremer
subitamente e quebrar-se...

Nunca persegui a glória

Caminhante, são tuas pegadas
o caminho e nada mais;
caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar

Ao andar se faz caminho
e ao voltar a vista atrás
se vê a senda que nunca
se há de voltar a pisar

Caminhante não há caminho
senão há marcas no mar...

Faz algum tempo neste lugar
onde hoje os bosques se vestem de espinhos
se ouviu a voz de um poeta gritar
"Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar"...

Golpe a golpe, verso a verso...

Morreu o poeta longe do lar
cobre-lhe o pó de um país vizinho.
Ao afastar-se lhe vieram chorar
"Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar..."

Golpe a golpe, verso a verso...

Quando o pintassilgo não pode cantar.
Quando o poeta é um peregrino.
Quando de nada nos serve rezar.
"Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar..."

Golpe a golpe, verso a verso.