Alfredo Reichlin
Novembro 2008
Fonte: Gramsci e o Brasil
Novembro 2008
Fonte: Gramsci e o Brasil
Tradução: Josimar Teixeira
Confesso que minha recordação de Claudio Napoleoni está dominada por uma grande nostalgia. Nostalgia do homem extraordinário que ele era, mas também daquela Itália, daquele mundo político e moral em que a política podia ser pensada como história em ato, e a esquerda como função do destino da nação, como o instrumento da dialética entre “escravo e senhor”, a tese e a antítese hegeliana, sobre a qual os jovens da Rivista Trimestrale construíram sua confiança na existência de um sujeito revolucionário. Tal mundo não existe mais. E eu (não só eu, creio) vejo-me atormentado pela sensação de que chegamos a uma passagem crucial, a qual coloca em questão todo o modo de ser, de pensar a si mesmo e de ser percebido, do conjunto de forças, idéias e legados que chamamos de esquerda. E no entanto, justamente em face desta mudança radical do quadro histórico, desta autêntica cesura, parece-me que a figura de Claudio Napoleoni assume um significado quase profético.
Não falo dele como filósofo nem da relação complexa e difícil, mas muito profunda, que tinha com a religiosidade e com a Igreja. Falo do refinado intelectual que dizia de si: “O lugar em que tento estar, como posso, e do qual tento falar, como posso, é a política, é a dimensão política. Na minha vida, jamais enfrentaria uma questão teórica se não fosse levado a fazê-lo por um interesse político. Mas o que posso dizer, ou melhor, arrisco-me a dizer, é que o significado da política, como lugar em que se está e do qual se fala, eu o deduzo do fato de que a política seja concebida como o instrumento de uma libertação”.
No fundo, esta foi sua visão. Napoleoni sabia muito bem que a política se nutre de concretude e a ela cabe definir num tempo determinado, e num contexto determinado, as relações entre os homens, igualmente determinados, mas tudo isso ocorria no contexto de uma visão mais geral do caminho do homem. A política, em substância, concebida laicamente como instrumento da luta que o homem há séculos trava por sua progressiva emancipação de todas as servidões, as crenças, os temores mais ancestrais que acompanharam sua história. Inclusive, como ele diria, a luta pela emancipação do trabalho, que se organizara com base na concepção da história como história da divisão entre as classes. E aí compreendido — ele acrescentava, e eu quero sublinhar — o risco de que a Igreja exclua de si não só os “infiéis” e os “pagãos”, tal como nos séculos medievais, mas os próprios cristãos, entendendo-se a palavra “cristão” como sinônimo da liberdade da resposta humana à messagem evangélica.
No fundo, sua idéia era a de um novo humanismo. E ele viveu a política, assim concebida, com extrema dramaticidade. A dramaticidade da dúvida, quando não da certeza (e nisso ele me parece hoje profético: falava há 25 anos), de que havíamos chegado a uma espécie de “crise histórica” por causa do advento de uma forma inédita de supercapitalismo, a ponto de mudar a própria condição humana. A inaudita potência dos mercados mundializados, o dinheiro como a única medida de uma riqueza abstrata, pela qual o capitalista e o operário, ainda que na persistência do conflito, tornam-se figuras ou máscaras de uma mesma alienação. Previa, em síntese, a novidade e as conseqüências da virada que ocorreu nos anos 1970 e que infelizmente, com muitas incertezas e atrasos, nós, dirigentes do PCI, entendemos pouco. Uma virada que depois se configurou como algo mais do que uma mudança do paradigma da economia: como o advento de uma autêntica revolução econômica e política, ainda que conservadora. E da qual hoje vemos o resultado desastroso.
Terminava o chamado compromisso entre democracia e capitalismo, ou seja, desaparecia a base mesma daquela formulação reformista que havia conseguido moderar os desequilíbrios do mercado com a função redistribuidora do Estado social. Tratava-se, pois, de uma virada, e a tal ponto que punha em questão muitas coisas. E, relendo os escritos de então, fico muito surpreso com o fato de que, muito antes e muito mais agudamente do que outros, Napoleoni compreendeu que estava mudando todo o curso histórico. Por esta razão, a esquerda terminou por se ver diante de uma encruzilhada que ele — e relê-lo causa impacto — representava mais ou menos nestes termos: ou se dá um passo para trás, privilegiando as lógicas do mercado e do novo capitalismo, em detrimento das razões da democracia, ou se vai adiante. E ir adiante — acrescentava — não significa chegar ao reformismo, mas superar os próprios termos daquele compromisso. Com quais implicações? A sua resposta (recordo uma polêmica comigo, na condição de relator de um seminário econômico) era muito radical, no sentido de que colocava o problema de uma superação do mecanismo dado, rumo a ordenamentos que ele, no entanto, reconhecia como indefiníveis, mas, em todo caso — dizia —, implicariam a necessidade de repensar as forças em campo, seu modo de disposição, o papel da política, a função do Estado.
Este é o problema dramático que apresentava ao partido comunista, mas, na realidade, apresentava a si mesmo. É impressionante a radicalidade das questões que dirige ao Congresso de Florença do PCI (1986). “Vocês — dizia — declararam esgotado o impulso propulsor do experimento soviético e consideram que desapareceu, como objetivo possível, a idéia, de resto jamais precisada, mas idealmente caracterizadora, da superação do capitalismo? Bem. Se for assim, cabe-lhes indicar os seus novos objetivos, uma vez que é em torno de motivações e fins que se funda o consenso e é em função deles que as pessoas se movem, participam, lutam, empunham as bandeiras. E é em torno disso que se decide o desenvolvimento ou o declínio, até rápido, a perda ou não de significado para a sociedade italiana de um partido como o de vocês”. Por isso, dizia-se desconcertado por não se discutir isso abertamente, sem excluir que se colocasse em questão até mesmo o nome. E estamos — observem — bem antes da virada de Occhetto [a transformação do PCI em PDS, entre 1989-1991]. Mas atenção. Não confundamos Napoleoni com Bertinotti ou Ferrero [adeptos da “refundação comunista”]. Inteiramente diferente era a sua cultura e completamente diversa era a leitura das coisas que sustentava sua polêmica e o levava até a provocação.
No fim das contas, sua questão verdadeira era a seguinte. Dado que a velha perspectiva do comunismo não é mais historicamente adequada para exprimir a instância de libertação que o inspirava, que outra perspectiva pode representar não um recuo e uma renúncia a valores e fins, mas um avanço e um desenvolvimento que recupere e cumpra sua própria verdade interna? Na realidade, buscava a resposta a esta questão numa revisão radical do pensamento econômico-social inspirado no marxismo. O que é preciso — dizia — é libertarmo-nos da idéia demasiado limitada da exploração entendida como domínio de classe exercido mediante a apropriação de trabalho não pago. É a teoria do valor-trabalho que não funciona e, portanto, a exploração deve ser fundamentada de modo diferente. Esta era a idéia de fundo. Ela nascia da consciência de uma cesura com a história precedente, a qual consistia na confluência de todas as classes para uma condição de subordinação ao mecanismo econômico. Não era só — e nem tanto — a redescoberta do tema marxiano da alienação. Napoleoni, que foi também um grande revisionista, começava a pensar que todo o curso da história realizava um salto, e isto porque a mundialização atribuía ao capitalismo, sobretudo financeiro, uma potência capaz de submeter toda a realidade a uma lógica que se chocava de modo radical com a subjetividade e a autonomia do homem.
O que dava ao seu pensamento uma extraordinária tensão e dramaticidade era a sensação de que se estava atingindo um limite insuperável do ponto de vista da política. E, se as coisas eram assim, estava em discussão toda a perspectiva do grupo que se reunia em torno de Franco Rodano e da Rivista Trimestrale. Abria-se um problema crucial, que ele assim define: “Posto que a história contemporânea culmina numa ‘sociedade’ dominada por um desenvolvimento novo do capitalismo que, para o homem, tem um caráter destrutivo, é possível uma superação de tal sociedade por via puramente política? Entendo por ‘puramente política’ uma via em que não se dêem outras razões para a operação política a não ser aquelas internas à própria política, não sustentadas por nada além da referência a uma moral estritamente natural, que evidencie os valores da igualdade e da liberdade. Em resumo, uma via ‘laica’, pela qual não é necessária nenhuma referência a valores religiosos nem a qualquer filosofia da história, incluindo o marxismo”.
Esta é a grande dúvida que o assediava e que dominou a última parte da sua vida. Até a dramática questão final sobre se, chegados a esta “crise histórica”, se deveria proclamar com Heidegger o esgotamento da filosofia e de qualquer outra reflexão e ação humana, de modo que se concluísse que “agora só um Deus nos pode salvar”. A sua dúvida, mas também a sua exortação aos amigos e a nós: “continuem a procurar”.
E não posso deixar de me perguntar se e em que medida, depois da sua morte, continuamos a procurar e a quais conclusões chegamos.
O balanço não é animador. Mas, se encararmos bem de frente a realidade e nos perguntarmos por que não conseguimos incidir além de um certo ponto sobre os processos reais, as respostas podem ser muitas, mas a verdade, no fundo, é que em conseqüência do fenômeno grandioso que chamamos globalização, não mudaram só os poderes, as necessidades e as expectativas, mas desapareceram os velhos instrumentos da ação política da esquerda: a moeda nacional, as funções redistributivas do Estado, a economia pública, a fronteira nacional que, só ela, havia garantido ao cidadão a representação pública e o sistema de deveres e direitos. Se não se partir daqui, não adiantarão muito o arrependimento, a flagelação, o pedido de desculpas contínuo, para em seguida não mudar nada. Contam certamente nossos erros e nossas divisões, mas conta sobretudo o fato de que não conseguimos situar nossa ação no nível daquela que é a grande injustiça, mas também a grande contradição do nosso tempo: por um lado, a potência da economia, que aniquila o poder da política como liberdade igual e interesse geral, mas, por outro, o fato de que a sociedade não pode ser reduzida a sociedade de mercado, sem criar problemas insolúveis de governabilidade e efeitos catastróficos até mesmo morais, de perda de identidade. Tenhamos cuidado, porque, se a esquerda não ocupar este terreno, e não verbalmente (debates, seminários), mas liberando forças, mobilizando interesses, mundos, demandas, movimentos reais, ela se condena a um papel subalterno: o hospital que cura na medida do possível os excessos de crueldade da direita.
Gostaria de lembrar a este nosso mundo político, que agora só representa os restos daquela grande organização autônoma em face do poder dominante que foi a velha esquerda, o enorme poder de condicionamento que está implícito na explosão das comunicações e no seu caráter difuso. Desencadeou-se uma força inaudita e, portanto, um poder capaz de “colonizar” os mundos vitais, as identidades dos indivíduos e dos lugares que até agora fizeram a diversidade do mundo. Uma força que alcança diretamente e quase sem mediações a experiência da vida cotidiana. As pessoas requerem novos bens não só materiais, os quais dêem sentido e significado às suas vidas, mas a resposta (verdadeiramente insensata) é a avalanche do consumo supérfluo. E a televisão se encarrega de confundir o verdadeiro e o verossímil.
Só um Deus poderá nos salvar? Para mim, não crente, este Deus é a capacidade de conquistar um pensamento autônomo em face daquele de direita, entendendo por direita — repito — não só Berlusconi, mas o conjunto de forças reais e de culturas (se for demasiado dizer “pensamento único”, digamos espírito do tempo) que governou o mundo nas últimas décadas. A começar pela idéia imponente segundo a qual o colapso do comunismo assinalava uma espécie de “fim da história”, isto é, dos grandes conflitos e das alternativas que podiam ser pensadas.
Como se vê particularmente nestes dias com a crise que está abalando a finança mundial, a missão do homem não pode consistir na criação de um mercado global em que capital, recursos naturais, países diversos, trabalho humano não sejam nada além de fatores de produção destinados à conquista de lucro e produtividade cada vez maiores. É essencial que emerja neste ponto uma outra dimensão da política. Não basta a luta de classes nem se vai longe com as receitas de tipo keynesiano. Quando a substância das contradições atinge a fronteira extrema da salvaguarda da espécie humana e da biosfera, então as contradições exigem respostas que não podem se esgotar num ato, num voto, numa providência legislativa. Devem ter o sentido da construção de um processo em que o compromisso político deve encontrar-se gramscianamente com a ética, deve fazer-se reforma intelectual e moral. Reconstrói-se a hegemonia da esquerda colocando no centro a pessoa humana e sua libertação. Não sei se há necessidade de um Deus para nos salvar. Sei que são necessários novos partidos mais “sociais” e, ao mesmo tempo, mais políticos, menos nomenclatura do econômico-corporativo. Porque é verdade que estamos em presença de sociedades que são, muito mais do que antes, sociedades de indivíduos, mas, uma vez que o capital que alimenta o desenvolvimento não é mais tão constituído por recursos físicos, é do conjunto das relações pessoais e dos modos de vida que decorre a capacidade de criar os novos bens e de metabolizar as inovações técnicas e científicas. Em resumo, a politização das sociedades não diminuiu, antes cresceu, quando menos pelo fato de que surgem em cena problemas sempre novos que dizem respeito ao destino da coletividade humana.
Eis por que uma nova esquerda se torna essencial na era global. Trata-se de redefinir os bens comuns e as linhas de evolução da sociedade diante de fatos grandiosos, cuja novidade consiste exatamente em colocar em questão bem mais do que os governos: a própria evolução da sociedade humana e o seu destino. Trata-se, pois, de redefinir os princípios éticos com base nos quais estamos juntos e as novas responsabilidades para com a comunidade. Se não for assim, em que bases pensamos construir uma nova esquerda? Sobre um acordo entre fragmentos de camada política?
Na minha imaginação, esta é a pergunta que nos dirigiria Claudio Napoleoni. E eu, não crente, responder-lhe-ia com estas palavras de Enrico Berlinguer:
“Estamos convencidos de que o mundo, mesmo este intrincado mundo de hoje, pode ser conhecido, interpretado, transformado e colocado a serviço do homem, do seu bem-estar, da sua felicidade. A luta por este objetivo é uma experiência que pode preencher dignamente uma vida. Não queremos impor um destino à história. O assalto ao céu — esta belíssima imagem de Marx — não é, para nós, um projeto irracional de escalada ao absoluto. Ao contrário, empregaremos todas as energias de que somos e seremos capazes no sentido de tornar concreto e efetivo o que está maduro dentro da história”.
Alfredo Reichlin foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recentemente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da “Carta de valores” do PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe — Centro Studi di Politica Economica, em Roma. Este texto foi apresentado em seminário sobre Claudio Napoleoni realizado em outubro de 2008 pela Fundação Biella Domani.
Confesso que minha recordação de Claudio Napoleoni está dominada por uma grande nostalgia. Nostalgia do homem extraordinário que ele era, mas também daquela Itália, daquele mundo político e moral em que a política podia ser pensada como história em ato, e a esquerda como função do destino da nação, como o instrumento da dialética entre “escravo e senhor”, a tese e a antítese hegeliana, sobre a qual os jovens da Rivista Trimestrale construíram sua confiança na existência de um sujeito revolucionário. Tal mundo não existe mais. E eu (não só eu, creio) vejo-me atormentado pela sensação de que chegamos a uma passagem crucial, a qual coloca em questão todo o modo de ser, de pensar a si mesmo e de ser percebido, do conjunto de forças, idéias e legados que chamamos de esquerda. E no entanto, justamente em face desta mudança radical do quadro histórico, desta autêntica cesura, parece-me que a figura de Claudio Napoleoni assume um significado quase profético.
Não falo dele como filósofo nem da relação complexa e difícil, mas muito profunda, que tinha com a religiosidade e com a Igreja. Falo do refinado intelectual que dizia de si: “O lugar em que tento estar, como posso, e do qual tento falar, como posso, é a política, é a dimensão política. Na minha vida, jamais enfrentaria uma questão teórica se não fosse levado a fazê-lo por um interesse político. Mas o que posso dizer, ou melhor, arrisco-me a dizer, é que o significado da política, como lugar em que se está e do qual se fala, eu o deduzo do fato de que a política seja concebida como o instrumento de uma libertação”.
No fundo, esta foi sua visão. Napoleoni sabia muito bem que a política se nutre de concretude e a ela cabe definir num tempo determinado, e num contexto determinado, as relações entre os homens, igualmente determinados, mas tudo isso ocorria no contexto de uma visão mais geral do caminho do homem. A política, em substância, concebida laicamente como instrumento da luta que o homem há séculos trava por sua progressiva emancipação de todas as servidões, as crenças, os temores mais ancestrais que acompanharam sua história. Inclusive, como ele diria, a luta pela emancipação do trabalho, que se organizara com base na concepção da história como história da divisão entre as classes. E aí compreendido — ele acrescentava, e eu quero sublinhar — o risco de que a Igreja exclua de si não só os “infiéis” e os “pagãos”, tal como nos séculos medievais, mas os próprios cristãos, entendendo-se a palavra “cristão” como sinônimo da liberdade da resposta humana à messagem evangélica.
No fundo, sua idéia era a de um novo humanismo. E ele viveu a política, assim concebida, com extrema dramaticidade. A dramaticidade da dúvida, quando não da certeza (e nisso ele me parece hoje profético: falava há 25 anos), de que havíamos chegado a uma espécie de “crise histórica” por causa do advento de uma forma inédita de supercapitalismo, a ponto de mudar a própria condição humana. A inaudita potência dos mercados mundializados, o dinheiro como a única medida de uma riqueza abstrata, pela qual o capitalista e o operário, ainda que na persistência do conflito, tornam-se figuras ou máscaras de uma mesma alienação. Previa, em síntese, a novidade e as conseqüências da virada que ocorreu nos anos 1970 e que infelizmente, com muitas incertezas e atrasos, nós, dirigentes do PCI, entendemos pouco. Uma virada que depois se configurou como algo mais do que uma mudança do paradigma da economia: como o advento de uma autêntica revolução econômica e política, ainda que conservadora. E da qual hoje vemos o resultado desastroso.
Terminava o chamado compromisso entre democracia e capitalismo, ou seja, desaparecia a base mesma daquela formulação reformista que havia conseguido moderar os desequilíbrios do mercado com a função redistribuidora do Estado social. Tratava-se, pois, de uma virada, e a tal ponto que punha em questão muitas coisas. E, relendo os escritos de então, fico muito surpreso com o fato de que, muito antes e muito mais agudamente do que outros, Napoleoni compreendeu que estava mudando todo o curso histórico. Por esta razão, a esquerda terminou por se ver diante de uma encruzilhada que ele — e relê-lo causa impacto — representava mais ou menos nestes termos: ou se dá um passo para trás, privilegiando as lógicas do mercado e do novo capitalismo, em detrimento das razões da democracia, ou se vai adiante. E ir adiante — acrescentava — não significa chegar ao reformismo, mas superar os próprios termos daquele compromisso. Com quais implicações? A sua resposta (recordo uma polêmica comigo, na condição de relator de um seminário econômico) era muito radical, no sentido de que colocava o problema de uma superação do mecanismo dado, rumo a ordenamentos que ele, no entanto, reconhecia como indefiníveis, mas, em todo caso — dizia —, implicariam a necessidade de repensar as forças em campo, seu modo de disposição, o papel da política, a função do Estado.
Este é o problema dramático que apresentava ao partido comunista, mas, na realidade, apresentava a si mesmo. É impressionante a radicalidade das questões que dirige ao Congresso de Florença do PCI (1986). “Vocês — dizia — declararam esgotado o impulso propulsor do experimento soviético e consideram que desapareceu, como objetivo possível, a idéia, de resto jamais precisada, mas idealmente caracterizadora, da superação do capitalismo? Bem. Se for assim, cabe-lhes indicar os seus novos objetivos, uma vez que é em torno de motivações e fins que se funda o consenso e é em função deles que as pessoas se movem, participam, lutam, empunham as bandeiras. E é em torno disso que se decide o desenvolvimento ou o declínio, até rápido, a perda ou não de significado para a sociedade italiana de um partido como o de vocês”. Por isso, dizia-se desconcertado por não se discutir isso abertamente, sem excluir que se colocasse em questão até mesmo o nome. E estamos — observem — bem antes da virada de Occhetto [a transformação do PCI em PDS, entre 1989-1991]. Mas atenção. Não confundamos Napoleoni com Bertinotti ou Ferrero [adeptos da “refundação comunista”]. Inteiramente diferente era a sua cultura e completamente diversa era a leitura das coisas que sustentava sua polêmica e o levava até a provocação.
No fim das contas, sua questão verdadeira era a seguinte. Dado que a velha perspectiva do comunismo não é mais historicamente adequada para exprimir a instância de libertação que o inspirava, que outra perspectiva pode representar não um recuo e uma renúncia a valores e fins, mas um avanço e um desenvolvimento que recupere e cumpra sua própria verdade interna? Na realidade, buscava a resposta a esta questão numa revisão radical do pensamento econômico-social inspirado no marxismo. O que é preciso — dizia — é libertarmo-nos da idéia demasiado limitada da exploração entendida como domínio de classe exercido mediante a apropriação de trabalho não pago. É a teoria do valor-trabalho que não funciona e, portanto, a exploração deve ser fundamentada de modo diferente. Esta era a idéia de fundo. Ela nascia da consciência de uma cesura com a história precedente, a qual consistia na confluência de todas as classes para uma condição de subordinação ao mecanismo econômico. Não era só — e nem tanto — a redescoberta do tema marxiano da alienação. Napoleoni, que foi também um grande revisionista, começava a pensar que todo o curso da história realizava um salto, e isto porque a mundialização atribuía ao capitalismo, sobretudo financeiro, uma potência capaz de submeter toda a realidade a uma lógica que se chocava de modo radical com a subjetividade e a autonomia do homem.
O que dava ao seu pensamento uma extraordinária tensão e dramaticidade era a sensação de que se estava atingindo um limite insuperável do ponto de vista da política. E, se as coisas eram assim, estava em discussão toda a perspectiva do grupo que se reunia em torno de Franco Rodano e da Rivista Trimestrale. Abria-se um problema crucial, que ele assim define: “Posto que a história contemporânea culmina numa ‘sociedade’ dominada por um desenvolvimento novo do capitalismo que, para o homem, tem um caráter destrutivo, é possível uma superação de tal sociedade por via puramente política? Entendo por ‘puramente política’ uma via em que não se dêem outras razões para a operação política a não ser aquelas internas à própria política, não sustentadas por nada além da referência a uma moral estritamente natural, que evidencie os valores da igualdade e da liberdade. Em resumo, uma via ‘laica’, pela qual não é necessária nenhuma referência a valores religiosos nem a qualquer filosofia da história, incluindo o marxismo”.
Esta é a grande dúvida que o assediava e que dominou a última parte da sua vida. Até a dramática questão final sobre se, chegados a esta “crise histórica”, se deveria proclamar com Heidegger o esgotamento da filosofia e de qualquer outra reflexão e ação humana, de modo que se concluísse que “agora só um Deus nos pode salvar”. A sua dúvida, mas também a sua exortação aos amigos e a nós: “continuem a procurar”.
E não posso deixar de me perguntar se e em que medida, depois da sua morte, continuamos a procurar e a quais conclusões chegamos.
O balanço não é animador. Mas, se encararmos bem de frente a realidade e nos perguntarmos por que não conseguimos incidir além de um certo ponto sobre os processos reais, as respostas podem ser muitas, mas a verdade, no fundo, é que em conseqüência do fenômeno grandioso que chamamos globalização, não mudaram só os poderes, as necessidades e as expectativas, mas desapareceram os velhos instrumentos da ação política da esquerda: a moeda nacional, as funções redistributivas do Estado, a economia pública, a fronteira nacional que, só ela, havia garantido ao cidadão a representação pública e o sistema de deveres e direitos. Se não se partir daqui, não adiantarão muito o arrependimento, a flagelação, o pedido de desculpas contínuo, para em seguida não mudar nada. Contam certamente nossos erros e nossas divisões, mas conta sobretudo o fato de que não conseguimos situar nossa ação no nível daquela que é a grande injustiça, mas também a grande contradição do nosso tempo: por um lado, a potência da economia, que aniquila o poder da política como liberdade igual e interesse geral, mas, por outro, o fato de que a sociedade não pode ser reduzida a sociedade de mercado, sem criar problemas insolúveis de governabilidade e efeitos catastróficos até mesmo morais, de perda de identidade. Tenhamos cuidado, porque, se a esquerda não ocupar este terreno, e não verbalmente (debates, seminários), mas liberando forças, mobilizando interesses, mundos, demandas, movimentos reais, ela se condena a um papel subalterno: o hospital que cura na medida do possível os excessos de crueldade da direita.
Gostaria de lembrar a este nosso mundo político, que agora só representa os restos daquela grande organização autônoma em face do poder dominante que foi a velha esquerda, o enorme poder de condicionamento que está implícito na explosão das comunicações e no seu caráter difuso. Desencadeou-se uma força inaudita e, portanto, um poder capaz de “colonizar” os mundos vitais, as identidades dos indivíduos e dos lugares que até agora fizeram a diversidade do mundo. Uma força que alcança diretamente e quase sem mediações a experiência da vida cotidiana. As pessoas requerem novos bens não só materiais, os quais dêem sentido e significado às suas vidas, mas a resposta (verdadeiramente insensata) é a avalanche do consumo supérfluo. E a televisão se encarrega de confundir o verdadeiro e o verossímil.
Só um Deus poderá nos salvar? Para mim, não crente, este Deus é a capacidade de conquistar um pensamento autônomo em face daquele de direita, entendendo por direita — repito — não só Berlusconi, mas o conjunto de forças reais e de culturas (se for demasiado dizer “pensamento único”, digamos espírito do tempo) que governou o mundo nas últimas décadas. A começar pela idéia imponente segundo a qual o colapso do comunismo assinalava uma espécie de “fim da história”, isto é, dos grandes conflitos e das alternativas que podiam ser pensadas.
Como se vê particularmente nestes dias com a crise que está abalando a finança mundial, a missão do homem não pode consistir na criação de um mercado global em que capital, recursos naturais, países diversos, trabalho humano não sejam nada além de fatores de produção destinados à conquista de lucro e produtividade cada vez maiores. É essencial que emerja neste ponto uma outra dimensão da política. Não basta a luta de classes nem se vai longe com as receitas de tipo keynesiano. Quando a substância das contradições atinge a fronteira extrema da salvaguarda da espécie humana e da biosfera, então as contradições exigem respostas que não podem se esgotar num ato, num voto, numa providência legislativa. Devem ter o sentido da construção de um processo em que o compromisso político deve encontrar-se gramscianamente com a ética, deve fazer-se reforma intelectual e moral. Reconstrói-se a hegemonia da esquerda colocando no centro a pessoa humana e sua libertação. Não sei se há necessidade de um Deus para nos salvar. Sei que são necessários novos partidos mais “sociais” e, ao mesmo tempo, mais políticos, menos nomenclatura do econômico-corporativo. Porque é verdade que estamos em presença de sociedades que são, muito mais do que antes, sociedades de indivíduos, mas, uma vez que o capital que alimenta o desenvolvimento não é mais tão constituído por recursos físicos, é do conjunto das relações pessoais e dos modos de vida que decorre a capacidade de criar os novos bens e de metabolizar as inovações técnicas e científicas. Em resumo, a politização das sociedades não diminuiu, antes cresceu, quando menos pelo fato de que surgem em cena problemas sempre novos que dizem respeito ao destino da coletividade humana.
Eis por que uma nova esquerda se torna essencial na era global. Trata-se de redefinir os bens comuns e as linhas de evolução da sociedade diante de fatos grandiosos, cuja novidade consiste exatamente em colocar em questão bem mais do que os governos: a própria evolução da sociedade humana e o seu destino. Trata-se, pois, de redefinir os princípios éticos com base nos quais estamos juntos e as novas responsabilidades para com a comunidade. Se não for assim, em que bases pensamos construir uma nova esquerda? Sobre um acordo entre fragmentos de camada política?
Na minha imaginação, esta é a pergunta que nos dirigiria Claudio Napoleoni. E eu, não crente, responder-lhe-ia com estas palavras de Enrico Berlinguer:
“Estamos convencidos de que o mundo, mesmo este intrincado mundo de hoje, pode ser conhecido, interpretado, transformado e colocado a serviço do homem, do seu bem-estar, da sua felicidade. A luta por este objetivo é uma experiência que pode preencher dignamente uma vida. Não queremos impor um destino à história. O assalto ao céu — esta belíssima imagem de Marx — não é, para nós, um projeto irracional de escalada ao absoluto. Ao contrário, empregaremos todas as energias de que somos e seremos capazes no sentido de tornar concreto e efetivo o que está maduro dentro da história”.
Alfredo Reichlin foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recentemente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da “Carta de valores” do PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe — Centro Studi di Politica Economica, em Roma. Este texto foi apresentado em seminário sobre Claudio Napoleoni realizado em outubro de 2008 pela Fundação Biella Domani.