sábado, 8 de dezembro de 2018

João Domingos: Tensão permanente

- O Estado de S.Paulo

Qualquer coisa que atinja os filhos do presidente respingará no governo

Pela composição da chapa presidencial, pelo resultado da eleição para a Câmara e para o Senado, e pela escolha de alguns ministros que tendem a se pautar pela ideologia ou mesmo pela fé religiosa, é bastante provável que o governo de Jair Bolsonaro venha a ter no mínimo três focos permanentes de tensão.

O principal deles, e desse não há como escapar, está na família do presidente eleito. Pela primeira vez na história recente do País, e é possível que em todo o período republicano, um presidente da República terá três filhos com mandato parlamentar: Eduardo, deputado, Flávio, senador, estes dois pelo PSL, e Carlos, vereador no Rio de Janeiro pelo PSC. Todos eles conselheiros do pai, ativos politicamente, e muito atuantes pelas redes sociais.

Qualquer opinião deles a respeito de seja lá o que for, qualquer articulação que fizerem, qualquer coisa que os atinja, respingará no governo e será notícia com destaque. Natural que seja assim, porque não há como desvincular o pai dos filhos sabendo-se que são tão unidos e que têm o pensamento praticamente igual.

Exemplos da grande repercussão de tudo o que envolve os filhos já há aos montes. Em abril o deputado Wadih Damous (PT-RJ) xingou o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, e disse que a solução para a Corte seria o seu fechamento, transformando-a em tribunal constitucional. O deputado Eduardo Bolsonaro disse em julho, numa palestra, no Paraná, que bastavam um cabo e um soldado para fechar o Supremo. O choque maior foi causado pela fala de Bolsonaro, pois ele vive a expectativa do poder. Damous já o perdeu.

Hélio Schwartsman: Um xerife no ministério

- Folha de S. Paulo

Sergio Moro pode agir como uma força moderadora sobre Jair Bolsonaro

A decisão de Sergio Moro de trocar a toga de juiz pela caneta de ministro não fez muito bem à sua imagem pessoal nem à do Judiciário, mas estamos falando mais de um arranhão do que de uma ferida mortal. Sem prejuízo de outros questionamentos, não penso que se possa argumentar seriamente que Moro condenou Lula, em julho de 2017, quando quase ninguém considerava a candidatura Bolsonaro viável, com o objetivo de obter um cargo no que viria a ser seu governo.

E, agora que o ex-magistrado está na equipe de Bolsonaro, creio que ele pode agir como uma força moderadora sobre o presidente eleito. Ainda que Moro possa ser descrito como linha dura em matéria penal, é bom que o núcleo do governo conte com alguém familiarizado com conceitos como direitos e garantias fundamentais, devido processo legal, impessoalidade da administração.

Se dava para defender que o candidato Bolsonaro, detentor de um discurso intolerante e antidemocrático, não deveria ser normalizado, agora que ele é presidente eleito precisa não só ser normalizado como institucionalizado (perdoe-se o duplo sentido). Moro pode ajudar nisso.

Julianna Sofia: É horrível ser trabalhador no Brasil

- Folha de S. Paulo

Com FAT e FGTS nas mãos, Guedes deve inovar no uso de dinheiro do trabalhador

O futuro governo de Jair Bolsonaro fatiará tal qual um salame o quase secular Ministério do Trabalho. As rodelas graúdas e cobiçadas ficarão sob a aba do poderoso Paulo Guedes (Economia), restando a Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) e Osmar Terra (Cidadania) administrar os nacos menos apetitosos — registro sindical e economia solidária, respectivamente.

A emissão das cartas sindicais virou caso de polícia e faz sentido remeter a tarefa à alçada de Moro.
O envolvimento de parlamentares, políticos e burocratas do Ministério do Trabalho em um esquema de propina para liberação de registros para sindicatos foi desvendado pela Operação Espúrio, que já mandou para o banco dos réus peixes grandes como o ex-deputado Roberto Jefferson.

Ainda está indefinido se o ex-juiz herdará também o combate ao trabalho escravo, tema controverso numa gestão em que a ascendência da bancada ruralista será inquestionável. Há chance de a fiscalização desse tipo de atrocidade ficar com Guedes.

Duas joias da coroa do reinado trabalhista, o FGTS e o FAT —donos de um patrimônio calculado em R$ 800 bilhões— foram estrategicamente capturadas pelo czar da economia bolsonarista. Não é de hoje que sucessivas equipes econômicas tentam inovar no uso desses fundos, que asseguram aos trabalhadores benefícios como seguro-desemprego e abono salarial, além de acesso a habitação popular e saneamento básico.

Demétrio Magnoli: A hora dos alunos

- Folha de S. Paulo

Como petistas, bolsonaristas tacham adversários de 'inimigos do povo'

As savanas, como o nosso cerrado, são ambientes sujeitos à combustão espontânea —mas a maior parte das queimadas "naturais" nascem de um foco de fogo humano, que pode ser um fósforo aceso ou a bituca de um cigarro.

Na política, quase nada é espontâneo. A ofensa lançada pelo advogado Cristiano de Acioli ao ministro do STF Ricardo Lewandowski no espaço restrito de uma aeronave não foi um gesto impulsivo de indignação, mas um ato inscrito numa estratégia política.

No episódio, de fortuito existiu apenas o encontro com o ministro num voo de carreira.

Não fosse aquele dia, seria outro. Não fosse Acioli, seria outro. A frase ofensiva circula há tempo, como mantra, nos blogues e redes sociais bolsonaristas. No dia seguinte ao episódio, ressurgiu como projeção de luz na fachada do edifício do STF, por obra do MBL.

Acioli agiu como militante, ativando previamente seu celular para registrar a cena, a fim de difundi-la nos territórios da "guerrilha da informação".

Para livrar-se de acusações legais, o militante bolsonarista alega que seu alvo era a corte suprema, não a pessoa de Lewandowski. Mas —com o perdão de Derrida— o texto nada significa sem o contexto.

A "vergonha de ser brasileiro" de Acioli relaciona-se aos votos e opiniões de Lewandowski, de Gilmar Mendes e de Toffoli, não aos de outros integrantes do STF. O problema dele —um advogado!— é a existência do habeas corpus e, de modo geral, do devido processo legal.

O governo Bolsonaro é, sob certo sentido, o fruto maduro da "era do lulismo". Da militância petista, os bolsonaristas aprenderam a demonizar a opinião divergente e a exibir seus adversários como "inimigos do povo".

Merval Pereira: Retrocesso no Rio

- O Globo

Com a decisão de extinguir a Secretaria de Segurança, Witzel vai desmontar o aparato de inteligência

Os militares que participam da intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro, que termina este mês, estão preocupados com os sinais trocados que o governador eleito Wilson Witzel tem enviado à população.

Ao mesmo tempo em que coloca a segurança pública como prioridade máxima, aventando até mesmo uma legislação que permita o abate de bandidos armados fora de confrontos, começa a atender pedidos políticos para nomear delegados e comandantes de batalhões, prática que havia sido abolida.

Operacionalmente, com a decisão de extinguir a Secretaria de Segurança, vai desmontar todo o aparato de inteligência conjunto das polícias Civil e Militar, que já vem demonstrando progressos.

Os militares insistem em que a substituição das ações pirotécnicas no campo pela ampliação do sistema de informação tem fornecido pistas para as investigações que propiciaram a redução de crimes. Mas advertem que informação é diferente de investigação, e juntar as duas tarefas prejudica o resultado final.

Houve também, no balanço feito pelos militares,uma maior interação com outras instituições que apoiam a segurança pública no Rio de Janeiro, como as Forças Armadas, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Federal.

Míriam Leitão: Ministério de alta voltagem

- O Globo

Almirante enfrentará mar agitado no Ministério de Minas e Energia, com urgências na Eletrobras, no mercado de gás natural e em Itaipu

É enorme a lista de urgências que chegará à mesa do novo ministro das Minas e Energia. A Amazonas Distribuidora, subsidiária da Eletrobras, pode ser liquidada e não se sabe quem forneceria energia para a região. A Eletrobras não tem dinheiro em caixa para quitar uma dívida de US$ 1 bilhão que vencerá em pouco tempo e um calote externo seria devastador para a estatal. O contrato de fornecimento de gás com a Bolívia vence em 2019, e a indústria teme a redução da oferta e o aumento de preços. Antes do fim do mandato terá que ser feita uma negociação com o Paraguai sobre Itaipu, cujo contrato termina em 2023.

Em entrevista à “Folha de S. Paulo” o almirante Bento Costa Lima Leite, futuro ministro das Minas e Energia, disse que a primeira prioridade será a governança do ministério. “Ele é enorme, cada vez que olho o organograma fico mais impressionado.” Pois é. Só da área de energia a lista do que fazer é gigante. O desafio será devolver a estabilidade do setor que enfrenta ainda os efeitos de uma intervenção desastrada no governo Dilma, que deixou uma série de passivos não totalmente resolvidos.

Na Justiça, as geradoras mantêm liminares para não pagar dívidas bilionárias que contraíram no mercado livre. Alegam que houve erro gerencial no despacho das hidrelétricas e querem dividir a conta com os consumidores.

Adriana Fernandes: Corte de R$ 30 bilhões nas renúncias

- O Estado de S.Paulo

Grande parte dos subsídios concedidos pelo governo é quase um cheque em branco

O Ministério da Fazenda deixou pronto para o novo ministro da Economia um plano de corte de R$ 30 bilhões em renúncias fiscais para ser adotado a partir de 2019. A proposta prevê uma tesourada, entre outros itens, nas isenções tributárias para artigos considerados de luxo que escandalosamente estão na cesta básica e também mudanças no Simples, o sistema simplificado de cobrança de tributos para micro e pequenas empresas.

É um começo. São ajustes nos gastos tributários que precisam ser feitos para dar mais folga às contas do governo e acabar com privilégio e as distorções na concessão das renúncias. Eles explodiram, nos últimos anos, à medida que o sistema tributário brasileiro ia ficando mais e mais complexo e pesado. Os gastos tributários representam os recursos que o governo abre mão e acabam reduzindo a arrecadação.

Inicialmente, a ideia era apresentar um plano de corte das renúncias e subsídios de 10% no ano que vem, como previa artigo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2019. Mas a proposta acabou não vingando, porque o artigo foi vetado. Mesmo assim, o governo resolveu entregar uma estratégia para a nova equipe.

Paulo Guedes já deu indicações que quer fazer cortes nesse tipo de gasto, tema caro na agenda liberal. É de se esperar, portanto, que essa pauta avance paralelamente à reforma da Previdência. Essa ajuste nas renúncias não pode esperar. Ainda mais num cenário em que se quer acelerar o processo de zeragem do déficit das contas do governo.

José Marcio Camargo: Guerra comercial e hegemonia

- O Estado de S.Paulo

A trégua de 90 dias dada pelos EUA à China sugere que algo importante foi negociado em Buenos Aires

O comunicado emitido após o encerramento da reunião do G-20 em Buenos Aires, no dia 1.º de dezembro, e o teor da nota para a imprensa divulgada pela Casa Branca após o jantar entre os presidentes Donald Trump e Xi Jinping sugerem que a reunião foi bastante produtiva e o jantar entre os dois presidentes, ainda que não decisivo, foi um passo importante no sentido de resolver as pendências entre os Estados Unidos e a China.

No comunicado de encerramento da reunião das 20 nações mais desenvolvidas do planeta, duas coisas ficaram claras. De um lado, a importância dada por estes países à questão das mudanças climáticas, ao declararem que o Acordo de Paris é irreversível. Ainda que tenha sido explicitada a saída dos Estados Unidos do acordo, o país se dispôs a colocar sua assinatura no documento, o que indica um ganho diplomático significativo.

De outro lado, ao mesmo tempo que afirmam a importância do sistema multilateral de comércio, os países do G-20 apoiaram explicitamente uma reforma da Organização Mundial do Comércio (OMC), uma demanda antiga do presidente Trump. Nos dois casos, em “linguagem diplomática”, o não veto significa muita coisa.

A trégua de 90 dias dada pelos Estados Unidos para o não aumento das tarifas de importação de 10% para 25% sobre US$ 200 bilhões de produtos exportados pela China sugere que algo importante foi negociado em troca. A promessa da China de aumentar as importações de produtos norte-americanos – sem especificar quais e quanto – não parece suficiente para justificar o adiamento da adoção das tarifas. Afinal, a imposição de tarifas sobre as importações chinesas é a principal arma utilizada pelo governo de Donald Trump com o objetivo de mudar o comportamento do governo chinês em questões estruturais importantes, que ultrapassam a questão comercial.

Gilles Lapouge: Os motins de Paris

- O Estado de S.Paulo

Pelas redes sociais, grupo espalha teoria conspiratória sobre Pacto de Marrakesh

Um texto inunda as redes sociais, especialmente o Facebook. Foi lido centenas de milhares de vezes, principalmente pelos “coletes amarelos”, que desafiavam o presidente e se preparavam para viver um dia de loucura e perigo hoje nas ruas de Paris. O que diz o texto? Ele denuncia o “Pacto de Marrakesh”, que Emmanuel Macron deve assinar na segunda-feira. Ao assinar o acordo, segundo explica o Facebook, “Macron venderá a França para a ONU”. “Você deve impedir Macron de fazer isso no dia 10 de dezembro”, diz o texto.

O Pacto de Marrakesh é realmente perturbador. Ele abre as portas do país de maneira massiva para os imigrantes. Segundo o texto do Facebook, ele “prepara a chegada à Europa dos 480 milhões de imigrantes que assegurarão o que é chamada de ‘a Grande Substituição’, ou seja, a substituição de franceses e europeus pelos imigrantes que vão se apoderar do Velho Continente”.

A artimanha dessas pessoas que conduzem essa operação pelas redes sociais é que a informação é correta e vem realmente da ONU. A diferença é que esse texto foi escrito pela ONU para enfrentar a grande ameaça dos imigrantes em 2015, durante a “crise migratória”. No entanto, de forma alguma o Pacto de Marrakesh obrigou os países europeus a renunciarem a sua política migratória nem a aceitarem uma “imigração em massa”.

Outra versão do boato é ainda mais barroca. Ela afirma que Macron, depois de supervisionar a “Grande Substituição”, renunciará para que a ONU assuma o controle da França. Desnecessário apontar o ridículo da operação. Por outro lado, vale a pena perguntar por que esse texto foi amplamente distribuído para meio milhão de “coletes amarelos” que mantiveram a França em suas garras por algumas semanas. Isso se explica porque os organizadores dessa ofensiva conhecem bem o perfil político dos manifestantes.

Em família: Editorial | Folha de S. Paulo

Movimentação financeira de ex-assessor de filho de Bolsonaro precisa ser esclarecida

Entre os meses de janeiro de 2016 e de 2017, o policial militar Fabrício José Carlos de Queiroz foi responsável por movimentações bancárias no valor de R$ 1,2 milhão, uma quantia aparentemente incompatível com sua realidade financeira.

Naquele período, Queiroz trabalhava como assessor parlamentar do deputado estadual Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) —que é filho do presidente eleito, Jair Bolsonaro, e conquistou cadeira no Senado para a próxima legislatura.

Segundo um relatório produzido pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), relativo à Operação Furna da Onça (um desdobramento da Lava Jato no estado), entre as transações de Queiroz estaria um cheque de R$ 24 mil destinado a Michelle Bolsonaro, futura primeira-dama do país.

Tais informações, originalmente divulgadas pelo jornal O Estado de S. Paulo, causam apreensão às vésperas de um novo ciclo presidencial cercado de promessas e expectativas de moralidade.

Se já provocava constrangimento o episódio de caixa 2 admitido pelo futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (ao qual se seguiram suspeitas de nova parcela supostamente paga pela empresa JBS), agora é o próprio núcleo familiar do presidente eleito que se vê diante da necessidade de prestar esclarecimentos à opinião pública.

Afinal, qual a origem do dinheiro à disposição do assessor parlamentar? Por que ele tinha valores a pagar à esposa do presidente eleito?

Clareza na articulação política: Editorial | O Estado de S. Paulo

O presidente eleito Jair Bolsonaro precisa definir o quanto antes como articulará seu governo com o Congresso. Do que emergiu até aqui em relação a esse aspecto crucial do próximo governo, as informações não inspiram otimismo, a começar pela indecisão manifestada pelo próprio Bolsonaro.

Questionado recentemente por jornalistas sobre com quem ficará a articulação política – se com o futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, ou com o futuro ministro da Secretaria de Governo, general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz –, Bolsonaro respondeu: “Fica com todo mundo”.

É fato que Bolsonaro se elegeu pretendendo revolucionar a relação do governo com o Congresso, mas suas quase três décadas de vida parlamentar certamente o ensinaram que há coisas na política que dificilmente mudam. Uma delas é que o sucesso de um governo no encaminhamento de suas pautas está em sua capacidade de transmitir segurança e determinação na negociação com deputados e senadores – e isso só é possível, para começar, com a escolha de um habilidoso articulador, cuja palavra seja tomada por deputados e senadores como se fosse a do presidente. Quando “todo mundo” exerce essa função, como sugeriu Bolsonaro, o governo emite um sinal de que ninguém a exerce, talvez nem mesmo o presidente.

Novo governo não pode relegar meio ambiente a segundo plano: Editorial | O Globo

Tema precisa ficar longe de ideologias, para se concentrar no bem-estar da população

Em junho de 1992, cerca de 180 chefes de Estado ou governo, entre eles os maiores PIBs do planeta, participaram, no Rio, da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-92). O histórico encontro abriu perspectivas de um destino menos sombrio para a humanidade. Entendia-se que não seria possível crescera qualquer custo, degradando o meio ambiente, esgotando os recursos naturais e ameaçando o bem-estar das futuras gerações. Duas décadas e meia depois, com o mundo alarmado pelos efeitos das mudanças climáticas, a agenda ambiental está ainda mais na ordem do dia. Não por proselitismo, mas por sobrevivência.

Os relatórios da ONU sobre os efeitos da ação do homem no meio ambiente são alarmantes. Um estudo da OMS apresenta doesta semana durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas( CO P -24), na Polônia, revela que nove em cada dez pessoas respiram ar contaminado. A poluição causa 7 milhões de mortes por ano em todo o mundo, resultando em gastos globais de US$ 5,11 trilhões. Os 15 países que mais emitem gases de efeito estufa consomem até 4% de seu PIB para tratar os impactos desse mal.

Sérgio Augusto: A volta do ‘Pasquim’

- O Estado de S. Paulo

Catarse coletiva de norte ao sul do País, fenômeno igual nunca se viu na imprensa brasileira

Pouco antes das eleições, o presidente eleito revelou que um dos objetivos de seu governo seria fazer o Brasil semelhante ao de 50 anos atrás. Fiz as contas, deu 1969.

Vivíamos em 1969 sob uma ditadura militar, que o ex-capitão e seu vice general negam com a mesma convicção dos que contestam o Holocausto, o aquecimento global, a esfericidade da Terra e a inexistência de Papai Noel.

Muita mais gente do que se imagina sente nostalgia por um tempo que não viveu. Tenho amigos que, a exemplo do protagonista daquela comédia de Woody Allen, lamentam não terem vivido na Paris dos anos 1920, quando os pais de alguns deles ou ainda eram bebês ou nem haviam nascido. Tal não é o caso do presidente eleito, que já era vivo em 1969. Mas tinha apenas 14 anos quando tudo aquilo aconteceu, sem ele se dar conta.

Desde dezembro do ano anterior enfrentávamos o tacão do AI-5 (epa! 50 anos redondos na próxima quinta-feira) e já testemunháramos a invasão do Teatro Ruth Escobar, na capital paulista, pelo Comando de Caça aos Comunistas, que depredou o cenário e espancou o elenco do musical Roda Viva, de Chico Buarque (pois é, já naquela época Chico incomodava os boçais).

Em vez de punir exemplarmente os celerados do CCC, o que fez a ditadura? Proibiu o espetáculo, “degradante e subversivo”, na tacanha avaliação do censor Mário F. Russomano.

Antes de saltar para 1969, outra deplorável lembrança: domingo passado também fez 50 anos que o Teatro Opinião, no Rio, sofreu um atentado à bomba, executado pelos mesmos espiroquetas do CCC. Se 1968 terminou nesse clima, como esperar um refresco no ano seguinte?

No último dia de agosto de 1969, uma junta militar provisória foi empossada no lugar do general Costa e Silva, que sucumbira a um derrame. Por que não empossaram o vice-presidente Pedro Aleixo? Justamente porque vivíamos numa ditadura e ele era um civil, um vice apenas pro forma, decorativo. Quatro dias depois, houve o sequestro do embaixador norte-americano, e uma nova Lei de Segurança Nacional foi promulgada antes de setembro chegar ao fim. Até que nos enfiaram goela abaixo outro general – o pior de todos: Emílio Garrastazu Médici.

AI-5 faz 50 anos em país polarizado; general Heleno defende decreto da linha-dura

Por Helena Celestino | Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

RIO DE JANEIRO - Traumas demoram a passar. Cinquenta anos depois daquela sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, ainda causam emoção e controvérsias os motivos que levaram o então presidente Arthur da Costa e Silva (1899-1969) a editar o Ato Institucional nº 5, o AI-5, marco do início dos anos de chumbo. Quando, numa tarde ensolarada, o marechal-presidente abriu a reunião com as 24 autoridades mais poderosas do país, em volta da mesa de jantar do Palácio das Laranjeiras no Rio, já estava tomada a decisão de armar o Estado de poderes extraordinários, libertando o regime, por tempo indeterminado, das já tênues amarras legais.

Durou dez anos, foi o período mais duro da mais longa ditadura brasileira (1964-1985) e, mais de três décadas após a redemocratização, muitas das ideias consagradas sobre a radicalização do regime foram derrubadas com a abertura de novos arquivos, profusão de livros, filmes e teses a revisitar o período. Mas a interpretação do passado ainda reflete a polarização política de ontem e de hoje.

"Assinei e, se as condições fossem as mesmas e o conhecimento fosse aquele que a gente tinha naquele instante, assinaria outra vez", diz Delfim Netto, o único sobrevivente da histórica reunião, da qual participou aos 40 anos como ministro da Fazenda ainda apagado, mas já com passagem bem-sucedida como secretário de São Paulo e autor de tese de doutorado sobre café, na época o produto que mais mexia com a economia brasileira. (Leia entrevista na página 12)

A fidelidade ao passado não impede Delfim de ridicularizar, duas décadas depois, o solene pronunciamento feito, em cadeia nacional de televisão, pelo então ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva (1913-1979) horas depois da decretação do AI-5. Em nome do governo, ele justificava o fechamento do Congresso, a cassação de mandatos, a prerrogativa de demitir funcionários públicos, a suspensão do habeas corpus, o cancelamento da liberdade de expressão e de reunião, pela necessidade de poderes extraordinários contra a ameaça comunista.

O perigo seria representado pelas manifestações estudantis, as ações armadas da esquerda e, como cereja no bolo da insubordinação, o discurso do deputado Marcio Moreira Alves (1936-2009) na tribuna da Câmara, em que se referia ao Exército como santuário de torturadores. "Naquela época do AI-5, havia muita tensão, mas, no fundo, era tudo teatro… Era teatro para levar ao ato", disse Delfim ao jornalista Elio Gaspari, autor de cinco livros com minuciosa reconstituição da ditadura.

Foi prosaico assim, concorda a maioria dos historiadores. "Os protestos estudantis acabaram em junho e nem havia ainda as ações armadas. O Estado brasileiro tinha todas as condições para cuidar de alguns assaltos e meia dúzia de protestos", afirma Carlos Fico, historiador, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e reconhecido como grande pesquisador do período.

O alvo principal do ato não era a esquerda armada, mas antigos aliados de 64, afirma o historiador Rodrigo Patto. O governo temia que o Congresso votasse uma Lei de Anistia, acusava os professores de estimular a revolta dos estudantes, via na imprensa simpatia com os protestos e, nos juízes, impedimento para a "justiça revolucionária" agir livremente. O AI-5, analisa, forneceu ao Estado meios para punir segmentos do seu campo, grupos de centro ou liberais flertando com a rebeldia.

A interpretação do professor é reforçada por enquete do então embaixador dos EUA John Tuthill (1910-1996), recuperada em um arquivo americano, em que ele expressa o desconforto da diplomacia de seu país com o fim das garantias institucionais no Brasil e ouve de políticos, intelectuais e empresários brasileiros previsões de tempos difíceis pela frente.

"A sensação era de que o novo Ato Institucional liberava as feras, que saíram à caça com mais vontade do que em 64", diz Patto, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "As Universidades e a Ditadura" (Zahar).

A partir daí, a ditadura tornou-se mais militar, mais autoritária, reduziu o espaço para atuação de aliados civis e botou os políticos em situação ainda mais subalterna. O "milagre econômico" já começara, mas a velha máxima "é a economia, estúpido" não ajudou a melhorar o clima político. Depois de um longo ajuste fiscal promovido pelo governo de Castello Branco (1897-1967), a liberação de crédito ao consumo estimulava a economia e já em 1968 o país cresceu 10%, iniciando um ciclo de taxas recordes de aumento do PIB até 1973. Só que a sensação de melhoria na qualidade de vida ainda não chegara à elite brasileira e, muito menos, aos mais pobres, dizem alguns especialistas.

"A crise foi estritamente política. O propósito que unificava os militares era transformar o Brasil em uma grande potência por meio de uma ação autoritária. O AI-5 não foi um fato episódico, foi a vitória da tendência saneadora, que achava necessário prender subversivos, corruptos e opositores para levar o projeto adiante", diz Fico, autor de livros importantes sobre o período.

Era a vitória da chamada linha-dura. A outra corrente, mais moderada, tinha uma dimensão pedagógica, acreditava na força da propaganda política para conquistar apoios e da censura para resguardar a moral conservadora. Ambas as tendências partiam do princípio de que a sociedade era despreparada, não sabia votar e cabia aos dirigentes o papel de "Messias". Os dois grupos se confrontaram ao longo da ditadura, às vezes ganhava força a corrente saneadora, outras, a pedagogia autoritária. "Eram dimensões distintas que expressam um propósito unificado, que chamo de utopia autoritária: tornar o Brasil um país rico ainda que a custo de direitos individuais, liberdade", afirma Fico.

Produção artística era vista como uma grande ameaça

Por Helena Celestino | Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

"Fecha esta exposição." Era 1969, a Petite Galerie expunha as obras de Carlos Vergara, já naquela época um nome importante nas artes visuais brasileiras. Em exibição estava "Berço Esplêndido", instalação de caixotes com um manequim como um corpo morto enrolado na bandeira dos Estados Unidos e do Brasil. Pelo chão da sala, uma palavra repetida muitas vezes: penso, penso, penso.

Um general morava perto da galeria, em Ipanema. Passou por ali, ficou irritado com o que viu e deu a ordem. "O general não disse nem o nome. Mandou fechar, simples assim, simples como um bom-dia", afirma Vergara, 50 anos depois. Franco Terranova (1923-2013), dono da Petite Galerie, ligou para o artista, contou a história, e os dois desmontaram a exposição.

"Nasci em 1941, vivi toda a época libertária juscelinista. Para quem teve um início assim, foi muito violento. Pensei em ir para a clandestinidade, mas achei que minha arte poderia ser mais útil. Com trabalhos que não fossem das musas, fossem mais perigosos, que contivessem dados do real, como os músicos faziam, o teatro fazia, todos tentando manifestar uma visão libertária do mundo", diz o artista.

Com um público mais reservado, as artes plásticas foram menos afetadas pelo Ato Institucional nº 5, o AI-5, do que a música, o cinema e o teatro, mas algumas manifestações criaram enormes polêmicas no país, como as trouxas ensanguentadas espalhadas pela cidade por Arthur Barrio, numa referência à violência da repressão. Ou a performance de Antonio Manuel nu, apresentando-se como obra de arte no Salão Nacional de Artes Plásticas, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio. Estava conectado com a "body art", um dos caminhos da arte no mundo. Mas aqui foi proibido, estávamos em 1970.

A relação entre arte, democracia e utopia

Por Helena Celestino | Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Todos estão em torno dos 70 anos, os cabelos são grisalhos, os corpos têm as marcas do tempo. São 12 ao redor de uma mesa, as vozes às vezes se quebram num choro contido. A plateia, uma maioria de companheiros de geração salpicada por muitos jovens, enxuga as lágrimas, em meio a sorrisos ternos provocados pelas lembranças. É uma leitura dramática, mas não como as outras que marcam o início de ensaios. "O Mutirão", nome provisório desse espetáculo, está sendo construído há dois anos em um trabalho de criação coletiva. É uma arqueologia sentimental do Tuca, grupo de teatro universitário da década de 60, entremeada com a memória dos 50 anos de vida dos então jovens atores amadores, trazendo junto meio século da história do Brasil.

As apresentações aos sábados de manhã, na UFRJ, e as sessões especiais para estudantes universitários comovem. Remexem num passado doloroso, revisitado também em documentários como "Torre das Donzelas", em que Susanna Lira retrata as presas políticas durante a ditadura militar no presídio Tiradentes, ou na transposição para o cinema de "Rasga Coração", peça-símbolo da luta contra a censura escrita por Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) e filmada agora por Jorge Furtado. O Teatro Oficina de José Celso Martinez Correa estreou nesta semana a remontagem de "Roda Viva" e mostras no Instituto Tomie Ohtake de São Paulo (encerrada no mês passado) ou no Museu de Arte do Rio (MAR) discutem, respectivamente, os custos da retirada dos direitos no imaginário cultural do país e a relação entre arte, democracia e utopia.

Lembrar para não repetir está no espírito de todas essas manifestações culturais. Talvez a mais despretenciosa, mas não menos poderosa, seja a memória do engajamento cultural contra a ditadura e a reflexão sobre o tempo político vivido, encenada pelos agora envelhecidos atores amadores, para comemorar os 50 anos do Tuca. "Ficamos atrevidos, achamos que nossa geração tem algo a dizer", reforça um deles para o público. "Estamos criando algo novo, tudo tem uma ressignificação", diz Amir Haddad, o diretor do passado e do presente, em mais um ensaio na semana passada.

Esse tempo revivido começa com a formação do grupo em 1966, tem o momento de glória com a montagem de "Coronel de Macambira" em 67 e a fase feliz acaba em dezembro de 68 com o AI-5. Foram dois anos que deixaram marcas na trajetória de cada um e na história do teatro. "Pouco mais do que um adolescente, fiquei encantado com a encenação. Ali, em plena ditadura, o Brasil era o boi, que afinal ressuscitava, e dele se ouvia o rumor dos passos", disse o deputado Chico Alencar (PSol), num depoimento ao "Globo" em 2016.

A vida brasileira desfilava na grande praça montada no palco, nesta adaptação de "Bumba Meu Boi", criada pelo poeta Joaquim Cardozo (1897-1978), o também famoso engenheiro dos projetos de Oscar Niemeyer (1907-2012). As músicas, compostas por Sérgio Ricardo, eram todas originais e jamais foram gravadas. Haddad, um homem de teatro já confirmado, largou tudo para, encantado, trabalhar com aquele bando de jovens: eles eram 36 no palco, revezando-se em 45 papéis, mas eram muito mais atrás das cortinas, ajudando, aplaudindo e discutindo, registrou Arthur Poerner, no "Correio da Manhã", em 1966: "O Tuca é fundamentalmente o movimento estudantil".

Carla Visi: Mineira

Carlos Drummond de Andrade: Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.