Considero que o artigo em questão, pela sua forma e pelo seu conteúdo, não representa bem a consistente reflexão do seu autor sobre questões raciais e suas conexões (de caráter conceitual, ou contextual) com sociedade, cultura e política. Isso mesmo levando em conta que se trata de um texto publicístico e não de um livro ou de um artigo acadêmico. Ao fazer afirmação tão ousada para um quase leigo, aviso que não pretendo ignorar o conselho de pisar em chão tão movediço, a não ser devagarinho. Reivindico, porém, que minha afirmação afoita seja enquadrada, por Risério e pelos seus antagonistas, dentro dos limites do entendimento que seja possível esperar de um não especialista no “campo” e de um não proprietário de “lugar de fala” previamente legitimado por seus zelosos guardiães, que Risério costuma fustigar. Se me permitirem essa licença digo que achei o texto um ponto meio fora da curva ascendente de coisas que já li do autor, as quais, aliás, apesar da relação pessoal que temos, não cobrem a contento o seu grande elenco de obras. Vi que ele focou no problema enunciado no título, que é digno de atenção, mas fez isso isolando-o de questões sociais conexas tanto ao problema geral do racismo como ao tema dos movimentos identitários. Sobre esse último assunto Risério já escreveu bastante, com bem mais profundidade e precisão, mesmo quando assumiu posições fortes e controversas.
Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
domingo, 23 de janeiro de 2022
Paulo Fábio Dantas Neto*: Antirracismo sem corrimão
Eliane Cantanhêde: A menininha
O Estado de S. Paulo
Para Bolsonaro, Queiroga e Damares, parada cardíaca de criança vacinada seria troféu
De todo o show de horrores da pandemia,
poucos conseguem ser piores do que a tentativa de usar uma menininha que teve
parada cardíaca em Lençóis Paulista como troféu na campanha contra a vacinação
de crianças. É vil, indigno, imoral.
Sempre indiferente, o presidente Jair
Bolsonaro telefonou diligentemente para os pais da menina, que teve a parada
horas após receber a vacina contra a covid-19. Logo ele, que nunca deu uma
palavra de consolo para as famílias dos mais de 620 mil adultos e de 1.400
crianças mortos pela doença – o que ele acha pouco.
Quando o Brasil atingiu 10 mil mortos, Bolsonaro foi passear de jet ski no Lago Paranoá, em Brasília. Com mais alguns milhares, deu de ombros: “E daí? Todo mundo vai morrer”. E, depois de trabalhar contra a vacinação de adultos, faz campanha aberta contra a de crianças. Não se vacinou nem vacina a filha.
Rolf Kuntz: Inflação versus crescimento
O Estado de S. Paulo
Com erosão salarial, desemprego e juros altos, o consumo familiar dificilmente contribuirá para a animação da economia
Enquanto os Poderes brigam, negociam
tréguas e se unem na gastança e no gozo de mordomias pagas pelo contribuinte, a
inflação cresce, a economia emperra e um poder muito importante para o dia a
dia das famílias, o poder de compra, se contrai a cada semana. Principal motor
da produção industrial e dos serviços, o consumo dificilmente puxará a economia
em 2022, porque o dinheiro do trabalhador, tudo indica, vai continuar curto,
com grande aumento de preços, pouco emprego e juros muito elevados. No ano
passado, os ajustes de salários ficaram abaixo da inflação em quase metade,
47,7%, dos acordos no setor privado, segundo o Dieese, o Departamento
Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos. A alta de preços foi
compensada em 36,6% das negociações e superada em 15,8%. O setor mais
prejudicado foi o de serviços, com 60,4% de acertos inferiores à alta do Índice
Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), o mais utilizado como referência.
Lamentada pela maior parte das famílias, a inflação prejudica mais cruelmente as mais pobres, as mais afetadas, também, pelas péssimas condições do mercado de trabalho. Os efeitos desiguais da alta de preços são bem claros nas seis faixas de renda consideradas na análise do Ipea, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Nos últimos dois anos, os preços pagos pelos consumidores mais desprovidos acumularam alta de 16,93% (taxa composta). Para o grupo imediatamente superior o aumento em 2020-2021 chegou a 16,07%. Para a faixa mais alta a variação ficou em 12,54%. Para a segunda mais alta, em 13,35%.
Luiz Carlos Azedo: O dragão da inflação está engolindo a reeleição de Bolsonaro
Correio Braziliense / Estado de Minas
Bateu uma paúra no Palácio do
Planalto por causa das projeções do mercado para a alta do petróleo neste ano,
que deve chegar a US$ 100 o barril
Há quatro variáveis negativas que podem
inviabilizar a reeleição do presidente Jair Bolsonaro, que está no telhado
desde a anulação da condenação do ex-presidente Luiz Inácio lula da Silva — o
líder nas pesquisas de opinião sobre as eleições presidenciais deste ano — pelo
Supremo Tribunal Federal (STF): a disseminação da ideia de que realmente tem
ambições ditatoriais; seu negativismo e desempenho na crise sanitária; a perda
da bandeira da ética por causa do escândalo das rachadinhas e da hegemonia do
Centrão no seu governo; e o fracasso de sua política econômica, principalmente devido
à inflação e ao desemprego em massa. Dessas variáveis, porém, somente uma
ameaça sua presença no segundo turno das eleições: o fracasso econômico.
As demais estão precificadas e têm alguma forma de compensação, pois há setores reacionários na sociedade que têm saudades do regime militar; o Centrão, que garante governabilidade, é a expressão do velho patronato político brasileiro, sobrevive e se renova eleitoralmente na política regional; a crise sanitária acaba sendo mitigada pela atuação do SUS, dos governadores e prefeitos. Vem daí a sobrevivência eleitoral de Bolsonaro, além do poder centrípeto que o governo federal exerce na vida da sociedade. Entretanto, bateu uma paúra no Palácio do Planalto por causa das projeções do mercado para a alta do petróleo neste ano, que deve chegar a US$ 100 o barril. Com isso, o preço do litro da gasolina saltaria para R$ 8. E ainda haveria uma grande desvalorização do real frente ao dólar, obrigando o Banco Central a manter os juros altos e a vender muitas reservas.
Elio Gaspari: Lula expôs uma plataforma, à sua maneira
O Globo
Sua entrevista na quarta-feira foi uma sucessão de
pequenos discursos; Há algo de “Lulinha, paz e amor” na promessa
Na quarta-feira, Lula deu uma entrevista de três horas a
jornalistas. Não foi exatamente uma entrevista, mas uma sucessão de pequenos
discursos. Afora uma introdução, um deles durou mais de dez minutos. O
jornalista perguntava sobre a amplitude de suas alianças políticas e, no meio
da resposta, ele dizia que Jair Bolsonaro não sabe comer camarão. Esse é seu
estilo, à vontade no palanque, travado ou parabólico diante de perguntas
diretas.
Mesmo assim, Lula foi revelador. Sua primeira frase teve um jeito
de bordão: é preciso, em primeiro lugar, “colocar o pobre no Orçamento e, em
segundo lugar, colocar o rico no Imposto de Renda”. Num outro momento, defendeu
a isenção para quem ganha até cinco salários mínimos.
A maioria das perguntas se relacionava à possibilidade de ele vir
a ter como companheiro de chapa o ex-governador paulista Geraldo Alckmin, e
numa das respostas Lula também foi revelador. Prevendo um Brasil melhor,
reconstruído. A ideia seria essa, senão, “pede a conta e vai embora, deixa a
Gleisi (presidente do PT) ‘livre para indicar outro’”:
“É para fazer esse país que eu preciso construir uma relação
política mais ampla que o PT, e não mais à esquerda, mas ao centro e, se for o
caso, até com setores, sabe, de centro-direita. (...) Eu sei a diferença entre
falar e fazer”.
A entrevista estava no final quando Lula mostrou a nova carta: “Eu
não vou fazer com eles o que fizeram comigo.” Chamou Sergio Moro de “canalha”,
mas deixa para lá.
“Este país precisa de muita solidariedade, muito carinho, muita alegria. (...) Vou fazer uma campanha leve, uma campanha simpática. (...) Não vou ficar respondendo mentira do Bolsonaro.”
Bernardo Mello Franco: Brizola, 100
O Globo
Leonel Brizola era um grande contador de
histórias, mas fugia de depoimentos formais para a posteridade. “Na verdade,
vivo muito mais preocupado com o futuro, com os projetos, do que com o
passado”, justificava-se. Em abril de 1996, ele abriu uma exceção em sua cidade
natal. Falou por mais de quatro horas a pesquisadores de Carazinho (RS), onde
nasceu há cem anos, em 22 de janeiro de 1922.
Inédita até hoje, a conversa tratou da
infância e da juventude do político, que perdeu o pai com 1 ano de idade. O
camponês José Brizola foi morto num dos embates sangrentos entre chimangos e
maragatos. “Eu me criei sob o signo desse fato, a morte do velho”, desabafou.
A mãe, Oniva, convenceu os cinco filhos a não buscarem vingança. “Não sei sinceramente se ele foi fuzilado, naquela época davam um tiro na testa ou na nuca. Ou se foi degolado”, disse Brizola. “Sempre me recusei a encarar esse assunto. Nunca quis que o povo riograndense imaginasse que eu estava querendo me vingar”, explicou.
Bruno Boghossian: O gabinete paralelo na Esplanada
Folha de S. Paulo
Ministro empresta jaleco à causa antivacina
e acoberta comportamento criminoso de Bolsonaro
No ano passado, a CPI da Covid radiografou
a rede de médicos e palpiteiros que aconselhavam
Jair Bolsonaro na pandemia. Sem cargo oficial, o gabinete paralelo elaborou
um programa de propagação do coronavírus, distribuição de medicamentos
ineficazes e disseminação de suspeitas falsas sobre vacinas.
Esse método deixou de funcionar de maneira
informal e se instalou oficialmente na Esplanada dos Ministérios. O médico
Marcelo Queiroga passou a exercer com desenvoltura crescente o papel de
avalista e executor da disparatada política presidencial para a pandemia.
O ministro da Saúde assumiu um destacado protagonismo nos esforços do governo para desestimular a vacinação contra a Covid. Na última semana, Queiroga relatou a ocorrência de 4 mil mortes em que há "uma comprovação" de relação com os imunizantes. Era mentira: o ministério só reconheceu essa ligação em 13 casos dos mais de 162 milhões de brasileiros vacinados.
Hélio Schwartsman: Uma história do futuro
Folha de S. Paulo
A boa notícia é que a vida não está
ameaçada
Epidemias virais como a de Covid-19 dependem
um pouco do acaso para começar. É preciso que a mutação certa apareça na hora e
local certos. As de bactérias são mais previsíveis. Graças ao fenômeno da resistência,
há, neste exato momento, bactérias trocando plasmídeos no corpo de algum
paciente e assim forjando uma linhagem de patógenos capazes de debelar nossas
defesas farmacológicas. Plasmídeos são moléculas "soltas" de DNA, que
podem codificar resistência a agentes antimicrobianos e se transmitem mesmo
entre bactérias não aparentadas.
Se uma linhagem de E. coli desenvolveu resistência à ciprofloxacina, por
exemplo, pode passar essa característica a uma cepa de, digamos, S. aureus.
Médicos já precisam lidar todos os dias com essas variantes resistentes. Um
estudo do governo britânico estima que, em escala global, elas já causem 700
mil mortes por ano e, se nada for feito, em 2050, responderão por 10 milhões de
óbitos anuais.
Janio de Freitas: Preto no branco
Folha de S. Paulo
Reações ao texto de Risério trouxeram os
raríssimos ares de debate público
Viva a turbulência causada pelo antropólogo
Antonio Risério ao defender, na Folha, a existência de racismo de
negros contra os brancos. As reações trouxeram os raríssimos ares de
debate público. Ainda que desequilibrado nas partes divergentes, feito mais de
acusações do que argumentos e com um desvio temático não menos trovejante.
Os negros do Brasil têm todo o direito,
ainda por hoje e não pelos antepassados, aos piores sentimentos em sua
avaliação dos brancos. Tal como os negros dos Estados Unidos e da África, além
de numerosas comunidades menores. Por isso, creio, no quesito
racismo negro seria necessário, antes de tudo,
definir-lhe com nitidez a
essência. Ficar no "neorracismo
identitário" é genérico demais, fluido demais para
sustentar uma caracterização moral e cultural tão pesada.
O ressentimento e a raiva, por exemplo,
induzidos pela discriminação e por tantas formas de opressão humilhantes, não são
necessariamente racismo. Não seria raro nem difícil reconhecer-lhes
até uma defesa instintual e humanamente sadia. Ao passo que o racismo teria
componentes mais elaborados na formação e na manifestação.
O debate reativo a Risério mostra mais uma vez quanto o racismo brasileiro, que não se limita ao negro, é tema incendiário. E também mostra o avanço negro, instigado pela Constituição de 88, em muitos espaços e sonoridades. Para a "elite" negra, a desigualdade adquiriu características próprias, em nada compartilhadas pelos demais. A estes milhões, eventuais apoios são de pioneiros, a exemplo de Luiza Trajano e seu magazine.
Vinicius Torres Freire: Gasolina demagógica dá dinheiro a rico
Folha de S. Paulo
Governo vai fazer dívida e pagar juros a
ricos para tentar baratear combustíveis
Jair
Bolsonaro pretende aumentar a dívida do governo a fim de diminuir
os preços de gasolina e diesel.
Quer zerar a cobrança de PIS/Cofins. Como não deve compensar esse benefício com
cobrança maior de outros impostos, perderia uns R$ 52 bilhões por ano de
receita.
Se toma empréstimo, paga juros: uns R$ 6
bilhões no primeiro ano. É parte do dinheiro que os ricos, que têm reservas
financeiras, vão levar com a demagogia. Apenas parte. Caso os preços caiam,
ricos e remediados vão se beneficiar também da redução de impostos sobre
gasolina e diesel.
No final do ano, o Auxílio Brasil terá
perdido poder de compra, por causa da inflação. Suponha-se que o valor
do auxílio seja mesmo de uns R$ 430 por mês, na média. Em dezembro, a
inflação terá comido valor suficiente para comprar um saco de 5 kg de arroz e
mais uns trocados. Supõe-se aqui que a variação do IPCA seja de 5% em 2022; até
junho, deve rodar na casa anual de 9%.
Por falar em pobres, note-se que gás de cozinha não paga PIS/Cofins. Até novembro, o consumo desse produto, GLP, era menor do que em 2020. Mas o consumo de gasolina aumentava quase 10% (o aumento médio do preço foi de 49%). Quem parece estar sofrendo mais?
Ruy Castro: As muitas sobrevidas de Elza
Folha de S. Paulo
Um dia, ela disse: Agora eu posso morrer.
Tinha 43 anos. Mas não morreu. Chegaria, invicta, aos 91
Na noite de 19 de dezembro de 1973, Elza Soares chegou
ao último andar do Maracanã e viu lá de cima o anel do estádio tomado. Eram
131.555 pessoas. Suspirou e disse para um amigo: "Agora eu posso
morrer". Ali se realizava seu sonho: um jogo de despedida para Garrincha,
o homem que ela amava e a quem o Brasil devia duas Copas do Mundo e um milhão
de alegrias —o Jogo da Gratidão, entre a seleção de 1970 (com o já simbólico
Garrincha no ataque) e um combinado de craques estrangeiros. Nunca um jogador
recebera tal homenagem no Brasil.
Fora dela a ideia e, graças à sua luta, reunindo ex-jogadores, jornalistas, cartolas e políticos, ele iria acontecer. Fora dela também a exigência de que parte da renda se destinasse a comprar um apartamento e abrir uma poupança para cada uma das oito filhas de Garrincha —até para que cessasse a perseguição a eles. Foi sua primeira vitória sobre a intolerância, o moralismo e a hipocrisia. Daí ela achar que já "podia morrer".
Dorrit Harazim: Ficamos nós
O Globo
Já se passaram 75 anos desde que W.H.Auden
escreveu o ambicioso poema “A era da ansiedade”, obra com dimensão de livro
(200 e tantas páginas, dependendo da edição) que lhe rendeu o que talvez seja,
até hoje, o Prêmio Pulitzer mais citado e menos lido da história. A obra em
seis partes transcorre num bar nova-iorquino onde quatro desconhecidos
discorrem sobre a vida, suas tormentas, perdas e sonhos. Descrito assim, soa a
leitura fácil. Na verdade, excetuando estudiosos e privilegiados, a maioria de
quem nela mergulha abandona a empreitada já na primeira parte (a signatária
inclusive) — e vai procurar versos menos barrocos, menos alegóricos do poeta.
Talvez, numa nova tentativa...
Mas foi justo com essa obra mamute de 1947,
que versa sobre a teimosia humana em se entender como gente depois da Segunda
Guerra, que Auden cunhou o que nos define hoje. Vivemos uma era da ansiedade
continuada, pandêmica, agarrados ao que éramos sem saber se resta tempo para
mudar. Num dos versos mais cativantes do poema, o personagem Quant diz que o
mundo também precisaria de um bom banho , além de uma semana de descanso, para
se recuperar do que fazemos com ele.
Vivemos aos sobressaltos, alternando espasmos de assombro com as catástrofes da hora. Sequer temos tempo para digerir as várias dores, coletivas ou privadas, que a todo momento disputam nossa atenção. A ansiedade surda, pesada e pegajosa que dá poucos sinais de se dissolver sozinha ora nos coloca em alerta máximo à espera de um Godot, ora nos prostra em estado de sonambulismo cívico para poder digerir o que passou. Isso não é viver, convenhamos.
Ana Lucia Azevedo*: Desastres não naturais
O Globo
Entre os mitos que a pandemia sepultou,
está aquele segundo o qual, no Brasil, o ano só começa após o carnaval. Janeiro
e fevereiro são meses de férias apenas para afortunados. A exemplo de 2021,
2022 confirma que janeiro dá à luz tormentas. O país virou usina de tempestades
perfeitas.
Há uma conjunção nada cósmica de pandemia
com desastres e uma inércia enraizada de só se mexer com a tragédia consumada.
Os desastres são também onde o desmonte ambiental e a negligência na saúde se
encontram, com danos amplificados.
As mais de 850 mil pessoas afetadas pelo
dilúvio na Bahia não têm como se proteger do avanço da variante Ômicron.
Tampouco os moradores das 380 cidades de Minas Gerais que decretaram situação
de emergência devido às chuvas.
Estas vieram com sanha de destruição por
uma combinação de motivos, dentre eles uma La Niña poderosa como a que em 2011
criou as condições que culminaram na tragédia da Serra Fluminense.
Mas uma La Niña sozinha não gera os
desastres de verão. Eles compartilham a marca da ação humana. Ela está nas
supertempestades, cujo aumento de intensidade e frequência se enquadra à
perfeição nos extremos climáticos previstos há três décadas e repetidos à
exaustão pela ciência. Pelo mesmo motivo, a ação humana está nas secas e ondas
de calor no Sul do país.
Combinados a danos ambientais, como desmatamento, ocupação de encostas e margens de rios, os extremos climáticos produzem tragédias nada naturais. Não é da natureza a culpa por gente morrer em cânions que não deveriam estar abertos ao público em dias de chuva intensa, como em Capitólio (MG).
Cristovam Buarque: Opção pelo conformismo
Blog do Noblat / Metrópoles
A sociedade brasileira optou pelo
conformismo, que mantém as perversidades tão toleradas que nem são percebidas
como imorais.
Neste ano em que o Brasil completa seu
bicentenário, Darcy Ribeiro completaria 100 anos de idade. É dele a frase: “Ou
nos indignamos, ou nos conformamos”. Durante nossa história, nos conformamos
com a escravidão, com a corrupção, com a desigualdade, com o desflorestamento,
a deseducação, com a persistência da pobreza. Nos conformamos com estas tristes
características da economia e da sociedade, e não construímos um país com
eficiência, justiça e sustentabilidade. Por 350 anos, a escravidão das pessoas
era tão aceita que o fato não era percebido como uma anormalidade moral.
Agora, no nosso bicentenário, vemos como normal a realidade que nos transmite a televisão: lado a lado a fome que maltrata e mata 20 milhões de pessoas famintas, e notícias de que somos o celeiro do mundo, o maior exportador de alimentos; ao lado também de farta propaganda de alimentos para convencer quem já come a comer mais; e também programas de culinária,novelas e reality shows onde os personagens passam parte do tempo esbanjando comida, ao redor de mesas ou em frente de geladeiras e fogões.
O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões
EDITORIAIS
Números da ômicron
Folha de S. Paulo
Recordes de casos com variante expõem falta
de testes e imperativo da vacinação
Faz mais de 50 dias, o Brasil confirmava
seus primeiros caso de Covid-19 causados pela variante ômicron. Por cerca de
metade desse tempo, o país não dispôs de dados bastantes para avaliar a
evolução da epidemia. Atacados por terroristas digitais e pela incapacidade do
governo, os sites do Ministério da Saúde ficaram fora do ar.
Mas a falta de informação não foi o motivo
do novo surto de inoperância oficial. Mesmo diante de recordes
diários de contaminações, do aumento do número de internações em
UTIs e de uma quantidade de mortes que não se via desde meados de novembro
(mais de 250 por dia), não houve mobilização nacional para conter a doença.
Ao contrário, ouviu-se mais propaganda
contra a vacinação, de crianças em particular. Jair Bolsonaro chegou a dizer
que a variante era "bem-vinda" —ideia sempre infundada, orientada
pela tese da "imunidade de rebanho".
Especialistas especulam que o pico dessa
nova onda de infecções poderia ocorrer em meados de fevereiro, baseados na
evolução da doença em outros países. Entretanto o ritmo da contaminação por
aqui é desconhecido, pois até o fim da primeira semana de janeiro não havia
números confiáveis.
A julgar pelas internações em UTIs, há
indícios de que o impacto mais intenso da ômicron começou depois das festas de
fim de ano.
Em São Paulo, mais de 3.000 pessoas estavam internadas nos leitos de cuidados intensivos na semana que passou. Na média móvel de 7 dias, era o maior número de internações desta natureza desde meados de setembro de 2021.
Poesia | Carlos Drummond de Andrade: Os ombros suportam o mundo
Em vão mulheres
batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa
venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.