domingo, 6 de setembro de 2020

Fernando Henrique Cardoso* - Reeleição e crises

- O Globo / O Estado de S. Paulo

É ingenuidade imaginar que os presidentes não farão o impossível para se reelegerem

Recordo-me da visita que André Malraux, na ocasião ministro da Cultura de De Gaulle, fez ao Brasil. Esteve na USP, na Rua Maria Antônia, onde funcionava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, e expôs no “grande auditório” (que comportava não mais que umas cem pessoas) sua visão de Brasília, obra de Juscelino Kubitschek. Malraux estava extasiado, comparava o plano diretor da cidade não a um pássaro (coisa habitual na época), mas a uma cruz. Com sua verve inigualável, dizia em francês o que não estávamos acostumados a ouvir em português: fazia o elogio da obra.

Esse não era, contudo, o sentimento predominante, pois víamos Brasília mais como desperdício, que induzia à inflação, do que como um “sonho”, um símbolo.

A visão dominante era negativa, principalmente no Rio de Janeiro (que perderia a condição de capital da República), em São Paulo e daqui para o sul. O gasto era grande e os recursos, minguados.
Eu compartilhava esse sentimento negativo, e olha que um de meus bisavôs fizera parte, no Império, da “missão Cruls”, que demarcara o território da futura capital do Brasil... Brasília foi construída onde desde aquela época se previa fazer a capital do País.

Não é que Malraux tinha razão? Não que a obra deixasse de ser custosa ou mesmo impulsionadora da inflação. Mas um país também se constrói com projetos, sonhos e, quem sabe, alguns devaneios...

Juscelino fez muitas coisas, algumas más, mas não é por elas que é lembrado. Brasília, sim, ficou como sua marca.

Não o conheci. Vi-o pessoalmente uma vez, sentado, solitário, num banco no aeroporto de “sua” cidade. Aproximei-me e o saudei; pouca conversa, mas muita admiração. Ele já havia sido “cassado”. Passa o tempo e fica na memória das pessoas sua “obra”, Brasília.

Não estou recomendando que Bolsonaro faça algo semelhante. Não sou ingênuo para pretender que minhas palavras cheguem ao presidente e, se chegarem, sejam ouvidas... Como estive no Planalto, às vezes me ponho no lugar de quem ocupa aquela cadeira espinhosa: é normal a obsessão por fazer algo, para o povo e para o País. Como o presidente será julgado são outros quinhentos. Maquiavel já notava que os chefes de Estado (os grandes homens... na linguagem dele) dependem não só de astúcia, mas da fortuna (da sorte).

O governo atual não teve sorte. São de desanimar os fatores contrários: a pandemia, logo depois de uma crise econômica que vem de antes, com o produto interno bruto (PIB) crescendo pouco (se é que...), e uma “base política” que depende, como sempre, mais do “dá lá toma cá” do que da adesão popular a algo grandioso. Ganhou e levou; mas mais pelo negativo (o não ao PT e aos desatinos financeiros praticados) do que pelo sim a uma agenda positiva.

Merval Pereira - O futuro de volta

- O Globo

André Urani fez parte de uma geração de economistas "cariocas" que começou a se debruçar sobre os caminhos e descaminhos da sua própria cidade. Nascido na Itália, escolheu o Rio para viver e trabalhar. Morto há nove anos, muito jovem, passou seus últimos anos a pensar o futuro da região metropolitana do Rio de Janeiro unida à de São Paulo (e vice-versa).

A conurbação imaginada por André Urani abrangeria cidades dos três estados mais importantes do país, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, em direção a Campos, no Rio de Janeiro, a Campinas, em São Paulo, e a Juiz de Fora, em Minas Gerais. Formariam a "Megalópole Brasileira". Para Urani, o que estava em jogo era, simultaneamente, o revocacionamento de nossas duas principais metrópoles para o Século XXI, e o próprio papel do Brasil no mundo.

Essa e muitas outras idéias surgiram no OsteRio, reunião para debater as principais questões do desenvolvimento do Rio, que se realizou às noites de segunda-feira no restaurante Osteria Dell’ Angolo, em Ipanema. Hoje, o Rio de Janeiro volta a estar às voltas com uma decadência moral, política e econômica.

Já não temos nem a Osteria Dell´Angolo, que fechou com a crise, nem André Urani. Para tentar compensar essas perdas e retomar o debate sobre o futuro do Rio, será lançado em outubro o livro “Maravilhosa para todos” que reúne propostas para o debate sobre o futuro do Rio, dedicado a André Urani, o economista que dedicou sua curta vida a pensar e apostar no Rio.

Luiz Carlos Azedo - Os donos do poder

- Correio Braziliense

“É impressionante como a política de parentela, cujas origens são o mandonismo e o patrimonialismo, se reproduz como modelo, dando origem a novos clãs políticos”

Tomo emprestado o título da coluna da obra já sexagenária de Raymundo Faoro (1925-2013), jurista, cientista político e sociólogo, considerado um dos grandes intérpretes do Brasil, autor de Os Donos do Poder: Formação do patronato político brasileiro (1958), uma leitura weberiana da nossa realidade. Seu olhar amplo e profundo sobre a nossa formação como nação desnuda as origens e a essência do mandonismo e do patrimonialismo, raízes do autoritarismo brasileiro, associando-o às elites que dominaram o país desde o período colonial, “organizando o poder político de forma análoga ao poder doméstico”. Isso resultou num Estado mais forte do que a sociedade, “em que o poder centrípeto do rei, no período colonial, e do imperador, ao longo do século XIX, ou do Executivo, no período republicano, criou forte aparelho burocrático alicerçado no sentimento de fidelidade pessoal”.

Remeto-me a Faoro em razão do projeto de reforma administrativa encaminhado pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso, que não vai atingir os atuais servidores, somente os que ingressarem no serviço público após a aprovação da reforma. Mas, não essencialmente por essa razão, mas, sim, pelo fato de que o chamado “poder instalado” não será atingido pela reforma nem agora nem depois: com o fim do regime único, parlamentares, magistrados (juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores), promotores e procuradores e militares, a elite do serviço público, terão regras diferentes dos servidores comuns. O velho barnabé, cujas agruras e revolta Oduvaldo Vianna Filho resumiu na figura do Manguari Pistolão, o anti-herói de Rasga Coração, é que pagará a conta da reforma, quando muito mais poderia ser feito se a austeridade e a transparência valessem realmente para todos.

Ao analisar a relação entre as oligarquias regionais e o poder central, que se reproduziu nos diversos períodos republicanos, Faoro destaca que “o estamento burocrático, fundado no sistema patrimonial do capitalismo politicamente orientado, adquiriu o conteúdo aristocrático, da nobreza da toga e do título. A pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou, nem diluiu, nem desfez o patronato político sobre a nação”. A proposta de reforma parece confirmar o diagnóstico. Alguns acusam Faoro de não reconhecer o papel modernizador de nossa elite burocrática, principalmente nos períodos pombalino, no Segundo Império e no primeiro governo Vargas, períodos que a obra analisa, e que viria a se repedir durante o regime militar. Não foi mero acaso a grande repercussão que teve a reedição da obra nos anos 1970, seu diagnóstico se confirmou no regime militar e ainda nos parece atual.

Eliane Cantanhêde - De retrocesso em retrocesso

- O Estado de S.Paulo

Sem Lava Jato e com ‘fiscais do Messias’, logo chegaremos a 1980. Viva o Centrão!

Além da pandemia, que parece arrefecer, mas já matou mais de 125 mil brasileiros, o Brasil convive neste momento com ameaças a vários alvos bem definidos: Lava Jato, reforma administrativa, ministro Paulo Guedes e liberalismo do governo, vacinação em massa contra a covid-19 e preços de alimentos. Pairando sobre tudo isso, um mesmo fantasma que insiste em rondar o País: retrocesso.

O cerco à Lava Jato une a esquerda de Lula à direita de Bolsonaro, PGR, ministros do Supremo, cúpula e líderes do Congresso e parte da mídia, com tudo caminhando para um gran finale de efeitos explosivos: o julgamento sobre a suspeição do ex-ministro Sérgio Moro nas condenações do ex-presidente Lula, que passaria de réu a vítima e de preso a candidato.

O aperitivo foi quando a Segunda Turma do STF, por empate, que é pró-réu, anulou as condenações do Banestado e depois sustou ação penal contra o ministro do TCU Vital do Rêgo. A sobremesa, em cascata, será quando os advogados entrarem aos montes com recursos (que já devem estar prontos) pedindo “isonomia” para os seus presos e condenados.

“Se estava tudo tão errado assim na Lava Jato, vamos ter de soltar o Sérgio Cabral e devolver o dinheiro, mansões, lanchas, joias e diamantes do Sérgio Cabral?”, adverte um ministro do próprio Supremo, refletindo um temor que cresce na opinião pública na mesma rapidez com que caem os instrumentos e agentes da Lava Jato.

Vera Magalhães - Patriotismo de fancaria

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro transforma discurso de amor à Pátria em culto à personalidade

“Patriotismo significa apoiar o País. Não significa apoiar o presidente.” Diferentemente de outras frases citadas com frequência e falsamente atribuídas a pensadores, esta foi de fato escrita por Theodore Roosevelt, 26º presidente norte-americano (republicano), num ensaio de 1918 em que falava sobre Abraham Lincoln e a liberdade de expressão.

Trago a citação a este texto na véspera do Sete de Setembro, feriado nacional que será desculpa para mais um show de uso de fancaria do termo por parte de Jair Bolsonaro e seus seguidores, num truque comum a regimes de corte nacional-populista e do qual o presidente brasileiro lança mão desde que deixou o Exército pela porta dos fundos para entrar na política pela mesma via.

O sequestro do patriotismo permite ao “capitão” desde desqualificar qualquer opositor como sendo inimigo do Brasil até cunhar frases absurdas como a de que donos de supermercados deveriam demonstrar seu amor à Pátria baixando o preço dos produtos.

É essa apropriação indébita que faz com que o discurso propagandista vendido pela Secom, transformada por Bolsonaro num Ministério da Propaganda, eleja aproveitadores como “heróis” e venda uma narrativa parcial como sendo a História do Brasil.

“Nosso presente está repleto de passado”, disse a historiadora e antropóloga Lília Moritz Schwarcz ao ser questionada por mim sobre o uso torpe do patriotismo como muleta por governantes durante o Roda Viva especial da Independência do Brasil que será exibido nesta segunda-feira.

Janio de Freitas – Nada é o que deveria

- Folha de S. Paulo

Autoritarismo, aqui e ali, já avançou muito mais do que notamos

O autoritarismo que ataca no varejo, aqui e ali, até formar a massa de truculência que é um Poder incontrastável, já avançou muito mais do que notamos. Os atos vistos como abusivos ou extravagantes, e logo deslocados em nosso espanto por outros semelhantes, já configuram uma situação de anormalidade em que nenhuma instituição é o que deveria ser.

O incentivo que Bolsonaro já propaga para recusas a vacinar-se amplia a descrença que difundiu na contaminação e, sem dúvida, responde por um número alto e incalculável de mortes. Só a vacinação impedirá aqui, se chegar em tempo, o repique que alarma a Espanha, repõe os rigores na Nova Zelândia, abala cidades mundo afora. Nada concede a Bolsonaro a liberdade para as suas pregações homicidas.

Se, no início da pandemia, a atitude de Bolsonaro causou pasmo e indignação, a de agora, apesar de mais grave, é recebida como mais extravagância amalucada e eleitoralmente interesseira. E não como arbitrariedade que se inscreve no Código Penal.

A proibição de Paulo Guedes aos seus assessores, altos escalões do Ministério da Economia, de conversar com Rodrigo Maia, parece uma bobice que nem fica mal no atônito ministro. É, porém, uma atitude só identificável com regimes de prepotência. Os assessores não discutiam com Rodrigo Maia, mas com o presidente da Câmara. Sobre projetos a serem votados e cuja forma influirá na vida nacional, por isso mesmo sujeitos a discordâncias parlamentares.

Elio Gaspari - O miliciano Marcelo Crivella

- O Globo | Folha de S. Paulo

Prefeito do Rio contratou funcionários para constranger cidadãos que reclamam da má qualidade do serviço de saúde do município

Deve-se à paciência e ao destemor dos repórteres Chinima Campos, André Maciel, Diego Alaniz, Sabrina Oliveira e Paulo Renato Soares a exposição da milícia contratada pelo prefeito Marcelo Crivella para constranger cidadãos que reclamam da má qualidade do serviço de saúde do município.

Quando Crivella diz que seus Guardiões estavam nas portas dos hospitais para ajudar quem precisava do serviço de saúde, sabe que está mentindo. Caso raro de pessoa capaz de mentir diante de vídeos.

As milícias políticas já apareceram nas cercanias do Planalto, constrangendo enfermeiros, e em Goiás policiais militares intimidaram pessoas que faziam faixas contra Bolsonaro. Crivella foi exposto na sua magnitude. Seus milicianos, Marcão da Ilha, Dentinho, Jogador, bem como os outros nove comparsas custavam à prefeitura R$ 79.594 por mês. Isso num governo que teve a luz cortada pela Light por falta de pagamento.

As milícias de Crivella e de todos os seus similares têm suas raízes na História da violência política, mas foram os “squadristi” de Benito Mussolini que a transformaram numa força relevante. Adolfo, aquele aquarelista austríaco, adaptou o modelo. (Uma vez no poder, Hitler passou nas armas a liderança de seus camisas-pardas. Na Itália, o líder da milícia, tonitroante e larápio, foi fuzilado em 1945.)

Pela vontade popular, o Rio teve a infelicidade de passar por cinco governadores encarcerados. O sexto, Wilson Witzel, está a caminho do impedimento e, provavelmente, da cadeia.

A distribuição de “boquinhas” para milicianos e até mesmo para maganos fascina beneficiários e amantes de soluções autoritárias. Começam hostilizando quem reclama da política e acabam usando milicianos para inibir quem reclama de falta de atendimento num hospital. Começam contratando o fiel ex-PM Fabrício Queiroz e acabam contratando a mãe do ex-capitão-miliciano Adriano da Nóbrega chefe do Escritório do Crime.

Mussolini tinha uma milícia e algumas ideias. No Brasil e sobretudo no Rio de Janeiro há milícias e todas estão ligadas a uma forma de crime. Ideias, nem ruins.

Bernardo Mello Franco - Só Toffoli não viu

– O Globo

Existem figuras que não veem e figuras que não querem ver. Quando chamou o golpe militar de “movimento de 1964”, o ministro Dias Toffoli não padecia de cegueira histórica. Estava distorcendo os fatos para agradar Jair Bolsonaro, então favorito na eleição presidencial.

Toffoli deixa o comando do Supremo Tribunal Federal na próxima quinta-feira. Em sua gestão, o governo atacou e ameaçou a Corte de forma inédita desde o fim da ditadura. O ministro fingiu não perceber o que ocorria. Calou-se diante das ofensas e se comportou como um aliado do capitão.

A Constituição afirma que os Poderes devem funcionar de forma independente e harmônica. Toffoli ignorou a independência e radicalizou na harmonia. Chegou a se outorgar um certo “papel moderador”, a pretexto de “oferecer soluções em momentos de crise”. A oferta só serviu à família presidencial, que encontrou proteção jurídica nas horas de aperto.

No início do mandato de Bolsonaro, o presidente do Supremo anunciou um “pacto” entre Poderes. Ele se voluntariou a favor de reformas que poderiam ter sua legalidade questionada no tribunal. Um despropósito que irritou ministros mais preocupados com a autonomia da Corte.

Bruno Boghossian - Toffoli absolveu Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Só faltou oferecer um troféu ao presidente por ainda não ter dado um golpe de Estado

Na última semana, Jair Bolsonaro e Dias Toffoli fizeram uma dobradinha. Questionado sobre críticas feitas por ministros do STF a seus ataques à democracia, o presidente protestou. “Eu queria que essas pessoas apontassem um ato meu, uma ação antidemocrática. Só isso, mais nada”, disse, na quinta-feira (3).

“Quando é que eu tentei censurar a mídia?”, emendou Bolsonaro. Ele deve se lembrar do dia em que disse ter vontade de encher de porrada a boca de um repórter que perguntou o motivo dos depósitos de R$ 89 mil na conta da primeira-dama, mas essa é outra história.

Horas depois, Toffoli decidiu absolver o colega do Planalto. Ao fazer um balanço de sua gestão, na manhã seguinte, o presidente do Supremo disse nunca ter visto “nenhuma atitude contra a democracia” partindo de Bolsonaro e seus ministros.

Dorrit Harazim - Ontem e hoje

- O Globo

Coube aos russos, sempre eles, estragar o calendário da Casa Branca, ao receber aprovação da revista ‘Lancet’ à sua vacina

Mais de meio século atrás, quando a ONU batizou 1957 de Ano Internacional da Geofísica, os Estados Unidos informaram ao mundo que seriam o primeiro país a lançar um satélite da Terra. Segundo a propaganda absorvida piamente, os bolcheviques de Moscou não representavam qualquer ameaça. Além de bárbaros, ateus e ignorantes, engatinhavam em tecnologia. O governo e os próprios serviços de inteligência dos EUA acabaram acreditando na propaganda criada. “Os primitivos cossacos não conseguem fazer nada que nós não podemos”, avaliou o chefe da CIA, Allen Dulles, quando confrontado com imagens de instalações de foguetes na Sibéria, produzidas por aviões de espionagem.

Também os analistas de inteligência da União Soviética trabalhavam sob uma ótica equivocada, mas diametralmente inversa — estavam convencidos da superioridade americana. Por isso, interromperam um projeto de satélite avançado e decidiram disparar logo o que tinham à mão: uma simples esfera de metal com quatro antenas, dotada de um radiotransmissor potente e primitivo. Foi o bastante.

Quando o Sputnik 1 rompeu os céus e entrou em órbita, na manhã de 4 de outubro de 1957, a autoconfiança dos americanos ficou prostrada. “Este é um golpe devastador no prestígio científico, industrial e tecnológico dos Estados Unidos”, resumiu à época o senador Henry Jackson. A humilhação maior foi que o raio do artefato russo emitia sons captáveis por qualquer radiorreceptor que seguisse instruções divulgadas por Moscou. Pior: o traçado do satélite, acoplado a um pedaço de foguete que pesava nove toneladas, era visível por qualquer bípede da Terra que tivesse um binóculo. De uma hora para outra, os soviéticos pareciam dominar o desconhecido naquele início da corrida espacial.

Hélio Schwartsman - Cidades ficarão vazias?

- Folha de S. Paulo

Germes muito mais letais não mataram as cidades, e não será a Covid-19 que o fará

A pandemia pôs os ricos para correr das grandes cidades. A procura por propriedades mais espaçosas nas imediações de megalópoles aumentou em vários lugares. Em Nova York, registraram-se até filas para visitar casas à venda nos subúrbios. Os preços, é claro, acompanharam. Quem tem os meios não resiste à tentação de, de uma só vez, obter mais conforto e segurança para a família. Já há até quem prognostique o esvaziamento das megalópoles.

Sou cético em relação à ideia de que a Covid-19 provocará profundas e duradouras mudanças comportamentais. No caso das grandes cidades, estou até disposto a apostar algum dinheiro na tese de que elas conservarão seus atrativos e sua pujança.

Quem mata a charada é Bryan Caplan, quando observa que até misantropos preferem morar numa cidade apinhada de gente como Nova York, com 8 milhões de habitantes, a habitar um lugarejo como Hays, Kansas, com 20 mil viventes. E não é uma preferência casual. O misantropo, que, por definição, odeia pessoas, paga vários milhares de dólares a mais para estar na superpovoada Manhattan do que gastaria fixando-se na erma Hays. Por quê?

Vinicius Torres Freire - Pobres devem perder o trem da despiora

- Folha de S. Paulo

Epidemia longa, retomada parcial e fim de auxílios massacram a vida miúda das cidades

Em julho do ano passado, quase 36 milhões de pessoas pagaram bilhetes nos trens da CPTM, empresa que atende a região metropolitana de São Paulo. No mês de julho deste ano de calamidade, os pagantes eram apenas 20,5 milhões, queda de 43%.

No Metrô estatal paulista, a baixa do número de passageiros nos dias úteis era de 60%. Ainda não saíram os dados de agosto, mas dá para ter uma ideia do tamanho da desgraça, que já foi pior, mas continua desgraça.

Muitas pessoas assustadas com o vírus ou com o futuro deixam de gastar na lojinha de rua, no quilo, na lanchonete, no café com bolo da calçada, no pastel, no dogão, no ambulante. Não vai à manicure, ao barbeiro. A economia se recupera, na verdade apenas despiora, dizem os grandes números.

Mas a vida miúda dos pequenos negócios que são o sustento de tanta gente ainda é duríssima. Vai depender do que será dos auxílios e do espalhamento do vírus, como explica qualquer estudioso capaz, economista ou epidemiologista, psicólogo ou sociólogo.

Pelos grandes números, o segundo trimestre teria sido o pior. O PIB caiu 9,7% em relação ao primeiro trimestre do ano. No terceiro, estima-se que haveria crescimento de 6%. Há sinais disso. O consumo de energia elétrica de julho e agosto foi praticamente o mesmo desses meses no ano passado.

A produção das fábricas até cresceu mais do que o esperado em julho (mas a indústria de transformação ainda está mais de 10% abaixo do baixo nível de 2019).

Essa escalada a partir do fundão do poço obviamente é e será desigual. Os dados de faturamento no cartão, da Cielo, mostram que o varejo no fim de agosto ainda vendia 11% menos que em fevereiro. Mas o setor de bens não duráveis vendia cerca de 2,5% mais, e o de duráveis, 4,4% menos. O de serviços, brutais 43% menos.

Míriam Leitão - Caminho certo no chão da Amazônia

- O Globo

A terra e o ouro subiram de preço. Isso é um poderoso incentivo econômico à grilagem e ao garimpo na Amazônia. O Brasil tem vantagens competitivas no agronegócio, setor que está ligado, como nenhum outro, às cadeias internacionais, mas o desmatamento leva os grandes fundos de investimento e os consumidores externos a fazerem exigência ao país. Querem ter certeza de que o nosso produto está livre do crime de destruir a maior floresta tropical do planeta. No chão da Amazônia vicejam produtos preciosos, açaí, cacau, castanha, mas não há cadeias produtivas que sustentem a geração de riqueza para quem mora lá.

Esse é o quadro no qual três bancos privados, competidores —mas não adversários, como se definem —decidem se unir. Se vão contribuir para mudar essa realidade, o tempo dirá. O que eles querem? Estimular as cadeias locais de produtos da floresta com a ambição de que haja escala, ter incentivos econômicos à preservação, buscar informação sobre as grandes cadeias produtivas para quebrar a ligação entre o legal e o ilegal. Saber para quem estão emprestando.

Na sexta-feira, durante uma hora e meia, entrevistei os presidentes do Bradesco, Octávio de Lazari, do Itaú-Unibanco, Cândido Bracher, do Santander, Sergio Rial. A ideia era saber como passarão dos bons propósitos que anunciaram recentemente para a prática. Eles fizeram afirmações interessantes, que o jornal de ontem trouxe no texto de Glauce Cavalcanti e Carolina Nalin. O que me impressionou positivamente é que admitem, logo de início, que estão num processo de aprendizagem. Amazônia é um assunto denso como a floresta, que se abre em muitas vertentes como os igapós, e diante de sua dimensão o risco maior é se perder. A Amazônia pede de nós humildade.

José Roberto Mendonça de Barros* - Implicações do PIB do segundo trimestre

- O Estado de S. Paulo

Definitivamente, o País não estava “voando”

Os resultados da evolução do PIB foram muito variados, mas o pior de tudo é que o índice do produto voltou dez (isto mesmo: 10) anos atrás. É melancólico.

Outra surpresa que se observou foi que o período de janeiro a março foi revisado para baixo: ao invés de uma queda de 1,5%, o que se viu foi um encolhimento de 2,5%. Definitivamente, o País não estava “voando” no começo do ano, como tantas vezes mencionou o ministro da Economia.

Será muito difícil conseguirmos repetir uma queda de tal magnitude (-9,7%), decorrente de uma causa totalmente inesperada vinda da área da saúde, que provocou uma parada súbita no sistema econômico.

Os segmentos que mais sofreram foram aqueles dependentes de aglomerações, tais como restaurantes, viagens e serviços correlatos (a chamada cadeia da hospitalidade, que inclui os serviços criativos), que caiu mais de 40%, e, de outro lado, os segmentos industriais que foram obrigados a fechar as fábricas, como automotivo, máquinas e equipamentos.

O tombo da indústria de transformação reforça a crescente fragilidade do setor, o que torna mais longe ainda a possibilidade de que ele volte a liderar o crescimento. Chama a atenção a elevação da assimetria entre empresas, em que uma nata de companhias ajustadas e capitalizadas segue avançando e aproveitando a desvalorização cambial para reforçar sua competitividade, enquanto a maioria das empresas vê seus balanços piorarem e seus produtos envelhecerem, sem fôlego para competir com a importação, mesmo descontando-se a perda de valor da moeda brasileira.

Ricardo Noblat - Ministério da Saúde inunda o país com hidroxicloroquina

- Blog do Noblat | Veja

Bolsonaro, o garoto propaganda da droga, agradece

Jamais se viu e dificilmente se verá algo que supere o absurdo protagonizado pelo presidente Jair Bolsonaro e os que o ajudam a governar ou a desgovernar o país. Verdade que ele seguiu os passos de Donald Trump a quem imita por falta de referência que mais o agrade. Verdade também que Trump recuou ao ver a enrascada em que se metera. Bolsonaro segue em frente como um celerado.

Em questão, o uso da hidroxicloroquina no combate a Covid-19. O mal começou a preocupar o mundo quando fez suas primeiras vítimas na China ainda em novembro do ano passado. Oito meses depois, não surgiu um único estudo científico que tenha comprovado a eficácia da droga contra a doença que ganhou status de pandemia. Nem por isso Bolsonaro desistiu dela.

A Organização Mundial de Saúde, em junho último, interrompeu os testes com o remédio para tratamento do coronavírus após revisão de estudos não atestar efeitos positivos. Um mês depois, a Sociedade Brasileira de Infectologia divulgou um comunicado em que propõe que as medicações com a hidroxicloquina sejam abandonadas “no tratamento de qualquer fase” da doença. E daí?

O presidente tem toda a razão – Editorial | O Estado de S. Paulo

Não é mesmo fácil ser presidente da República. É um fardo que só líderes políticos muito preparados, intelectual e emocionalmente, são aptos a carregar

Em um evento recente no Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro desabafou: “Só Deus sabe o que já passei e passo dentro desta sala, não queiram a minha cadeira”. A sala em questão é o gabinete da Presidência, e a cadeira, aquela que lhe cabe ocupar como o vitorioso da eleição de 2018. “Com todo o respeito, não sou super-homem, mas não é para qualquer um.”

De fato, Jair Bolsonaro tem toda a razão: a Presidência da República não é para qualquer um. Para exercê-la é preciso uma série de qualidades que separam os estadistas dos aventureiros e oportunistas.

A primeiríssima dessas qualidades é ter um projeto claro de País – isto é, um conjunto de propósitos e compromissos públicos de longo prazo em torno dos quais o presidente deve se esforçar para construir maioria ou consenso político. Sem esse projeto e sem esse consenso, como convencer a sociedade a fazer sacrifícios em nome do bem-estar de todos, agora e no futuro? A destruição do legado de governos passados, por pior que esse legado tenha sido, não pode ser o único objetivo de um presidente, nem mesmo o principal. É preciso ter, isso sim, aptidão para construir.

Outra qualidade fundamental é a capacidade de compreender o que é o poder e como exercê-lo numa sociedade democrática. A eleição presidencial não dá a seu vencedor a prerrogativa de exercer o poder fora dos limites inscritos com clareza meridiana na Constituição. O presidente da República não pode nem deve esperar que os demais Poderes se submetam a seu tacão, pois todos são igualmente legítimos. Deve ter a grandeza de reconhecer igualmente que seu poder não existe em si. É, antes, expressão da vontade coletiva, construída por meio de amplo debate público, a partir da qual se extrai a base de uma governança genuinamente democrática. Isso é bem diferente do poder exercido de maneira arbitrária, em confronto aberto e permanente com a parte da sociedade que se recusa a ver legitimidade nas decisões de governo justamente porque, intimidada pela violência, que muitas vezes não é só retórica, não consegue ter voz no debate sobre a administração do País.

Defender o teto – Editorial | Folha de S. Paulo

Mecanismo permitiu estabilizar dívida pública e mantém juros historicamente baixos

Nem tanto por mérito próprio, e certamente não pelas realizações até aqui do presidente Jair Bolsonaro, o Brasil faz parte hoje de um grupo de economias que exibem as menores taxas de juro da história.

Em um movimento agora acentuado pela pandemia da Covid-19, muitos países já vinham adotando ações excepcionais para sustentar suas economias desde a crise financeira global de uma década atrás.

Nas nações ricas, os bancos centrais injetaram valores trilionários no mercado e mantiveram no chão os juros que remuneram investidores e oneram empréstimos ao setor produtivo. O duplo objetivo vinha sendo estimular poupadores a gastar e as empresas, a investir.

Enquanto esse movimento percorreu, nesta década, quase todos os países relevantes, o Brasil tomou a direção oposta: o Banco Central iniciou, em 2013, uma escalada em sua taxa básica de juros.

Naquele momento, não só a inflação ganhava ímpeto, obrigando a um esfriamento da economia, como a dívida pública nacional saía do controle. Era a conta que chegava após um período de gastos excessivos sem lastro na arrecadação, agravando uma tendência que já se verificava havia muitos anos.

Entre 2013 e 2016, a dívida pública saltaria quase 20 pontos, atingindo 70% como proporção do PIB (Produto Interno Bruto); e a inflação alcançaria dois dígitos em 2015.

Governo deveria criar estratégia para vacinação – Editorial | O Globo

É um atraso questionar a vacina obrigatória. Para controlar a pandemia, ela é fundamental

Após o presidente Jair Bolsonaro declarar, na segunda-feira, que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”, o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, tentou consertar. Disse que uma futura vacina contra a Covid-19 “não é obrigatória”, mas que o governo incentivará a imunização “como um grande instrumento” para a volta à normalidade. A afirmação preocupa mais que tranquiliza.

Primeiro, porque, ao contrário do que dizem ambos, a vacinação é obrigatória. O presidente deveria saber disso, já que, em fevereiro, sancionou a Lei 13.979, que, entre outras medidas, autoriza a imunização compulsória contra a doença. Ainda que não existisse tal lei, o artigo 268 do Código Penal estabelece detenção de um mês a um ano, além de multa, para quem “infringir determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. Não só a vacina é obrigatória, como recusar-se a tomá-la pode dar cadeia.

O que mais aflige, porém, é a postura leniente. O governo fez bem ao firmar um acordo com a farmacêutica AstraZeneca — que desenvolve uma vacina com a Universidade de Oxford —, para transferir tecnologia e produzi-la no Brasil. Mas ainda não há garantia de que essa vacina dê certo. E de pouco adiantará ter o imunizante sem uma estratégia — que leve em conta os desafios de logística e distribuição — para proteger a população.

Música | Maria Bethânia e Adriana Calcanhotto - Depois de ter você

Poesia | Thiago de Mello - A boca da noite

O que não fiz ficou vivo
pelo avesso. O que não tive
pertence à dor do meu canto.
A estrela que mais amei
acende o meu desencanto.
Vinagre? Sombra de vinho?
De noite, a vida engoliu
(é doce a boca da noite)
as dores do meu caminho.
O meu voo se apazigua
quando a tormenta me abraça.
O que tenho se enriquece
de tudo que não retive.
Diamante? Flor de carvão.