domingo, 9 de agosto de 2020

Luiz Werneck Vianna* - A hora e vez da esquerda democrática

Somos testemunhas ainda nessas primeiras décadas do século de uma grande transformação apesar de não a sentirmos, tal como no movimento da terra em suas rotações, expressão de Joaquim Nabuco, e já iniciamos, embora ainda tateantes e inconscientes o começo de uma nova era. Contudo, dos anos 1980, de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, retomados por Donald Trump no nosso século, foram feitas vigorosas tentativas no sentido de parar a roda da história e fazê-la girar para trás, tanto nos esforços de nos devolver aos nacionalismos outrora semeados pelos estados-nação como em preservar a ideologia produtivista do neoliberalismo. Esse foi um tempo de desmonte de instituições e de direitos, de esvaziamento de organizações internacionais, como a ONU, de tentativas de invalidar a União Europeia (caso do brexit inglês) de depreciação da democracia e de suas formas de representação política, com a ressurgência anacrônica do populismo, inclusive em alguns casos na sua versão fascista. 

Vários marcadores denunciam que tais esforços não têm logrado os resultados que deles se esperavam, quer por que se defrontam com obstáculos derivados das suas próprias ações na medida em que edificaram uma sociedade de risco, não só com a proliferação dos artefatos de guerra nuclear como também pela depredação do meio ambiente expondo a sociedade humana a uma sucessão de epidemias letais, quer por que têm encontrado resistência política por parte de partidos, movimentos sociais, especialmente entre os jovens, governos e religiões, como no caso forte da igreja católica. 

De outra parte, as desigualdades sociais que se extremam no período neoliberal, expostas na monumental pesquisa do economista Thomas Piketty, esgarçam ainda mais os laços de solidariedade social, numa polarização aberta entre as classes dominantes e os seres subalternos, produzindo conflitos sociais agudos e cada vez mais intensos, particularmente agravados pela questão racial, exemplar na cena atual pelas ruas das grandes cidades americanas e não poucas europeias. E também por aí, numa chave branda de interpretação ao estilo do velho e estimado Durkheim, se infiltram as convicções de que o capitalismo nessa versão vitoriana não reúne mais condições de reprodução – sem base de sustentação em recursos que induzam a solidariedade social as sociedades derruem. 

A sociologia e as demais ciências sociais não têm o condão de mudar o curso das coisas no mundo, apenas explicam com diferentes capacidades de persuasão o que se passa nele. O meio idôneo para transformá-lo, como se sabe, pertence ao reino da política que se encontra, no momento atual, diante da oportunidade de romper caminho para uma trajetória alternativa na sucessão presidencial dos EUA ao alcance das mãos em apenas três meses, quando poderá abalar ou mesmo por abaixo este derradeiro pilar neoliberal com a derrota eleitoral de Donald Trump. Na pior hipótese, caso ele triunfe, dadas as expressivas forças que ora se opõem a ele, que seja por meio de uma vitória de Pirro. 

Sem a escora da política de Trump, garantia até aqui da reprodução da modelagem neoliberal, o teatro de operações na cena mundial terá diante de si uma bifurcação, categoria a gosto de Piketty, abrindo-se a possibilidade para a imposição de rumos entrevistos no curso das lutas contra a atual pandemia, em particular na valorização das políticas públicas de saúde, claramente percebidas no Reino Unido e no Brasil, dos mecanismos de cooperação internacional e os diversificados movimentos de ação solidária saídos do ventre da sociedade civil, inclusive os originários dos seus setores subalternos, e, muito especialmente, no papel do Estado como lugar de articulação dos esforços em defesa da vida, em que foram exemplares a Nova Zelândia e tantos outros casos nacionais. Tudo isso levado em conta afirmam tendências que importam em viradas de páginas e na percepção de que um novo tempo faz parte do campo das possibilidades em presença. 

Sem tal escora ou com seu enfraquecimento, políticas que nela se arrimam, como notoriamente a brasileira, devem experimentar inflexões benévolas no seu curso, a serem exploradas pelas correntes políticas democráticas, a começar pelas sucessões municipais que se investem de um papel estratégico, inclusive em razão do seu desenlace prefigurar o cenário da próxima sucessão presidencial. Nesse sentido, a hora dos partidos é esta, e o que cabe, na contracorrente de uma bibliografia irresponsável que medra por aí, é valorizá-los e procurar influir na composição de suas alianças sem sectarismos e em torno de ideais democráticos. Quanto às candidaturas é essencial conceder representação privilegiada àqueles que se destacaram nas lutas pela defesa da vida da população, como os profissionais da saúde e dos que organizaram os sistemas de cooperação solidária no mundo popular. Além, é claro, de selecionar políticos com credenciais que os identifiquem com a democracia e com os temas relevantes para o mundo popular. 

 A catástrofe da pandemia que nos assola pôs a nu o caráter patológico da modelagem de sociedades sob hegemonias da ideologia neoliberal, e não por acaso EUA e Brasil lideram o ranking macabro de óbitos, ocupando os dois primeiros lugares. Obviamente que as candidaturas em suas campanhas eleitorais devem estar centradas nos temas que digam respeito às concepções de sociedade e de justiça, traduzidas no plano concreto por enunciados por políticas distributivas e de promoção social. Essa hora tem a cara da esquerda democrática a ressurgir nas ruas e no voto. 

 *Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, Puc-Rio

Merval Pereira - Cada morto importa

- O Globo

Não é apenas um número chocante. Não é apenas uma barreira tristemente quebrada. São mais de cem mil pessoas mortas, exatas 100.240 até ontem, na maior tragédia da história brasileira. Para casos como esse, não é possível fazer-se o uso frio dos números, cada morto importa.  
Dizer que o país está bem nas estatísticas, porque temos 471 mortes por milhão de habitantes, enquanto países como a Espanha têm 610, ou Reino Unido tem 623, é somente a demonstração de que com estatísticas é possível fazer qualquer coisa, torturando os números. Se fosse esse o caso de comparação, a Argentina tem 98 mortes por milhão de habitantes. A Rússia tem 102, e a China apenas 3 mortes por milhão de habitantes.

A triste realidade é que o Brasil é o segundo país que tem mais mortes no mundo por milhão de habitantes, 471, contra 497 nos Estados Unidos, o país que tem o maior número de mortes, 164.577.  
Essa triste competição que estamos ganhando tem na raiz a mesma razão da crise dos Estados Unidos, governos negacionistas que se empenharam em vender a cloroquina como remédio milagroso contra a Covid-19, quando deveriam ter liderado um movimento a favor do distanciamento social, do uso de máscaras, da quarentena e, nos casos mais graves, do lockdown.

Donald Trump, com uma possível derrota nas eleições se aproximando, tenta se recuperar usando máscara, depois de meses preciosos sem usá-la, e já cunhou um bordão patético a essa altura: “Patriota usa máscara”. Bolsonaro, nem depois de pegar a Covid-19, se anima a fazer uma campanha nesse sentido.

O máximo de empatia que conseguiu exprimir foi uma frase abominável: “A gente lamenta todas as mortes, está chegando ao número 100 mil… mas vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”. Para quem tem a culpa maior por essa tragédia brasileira, dizer isso ao lado de um ministro interino da Saúde há mais de dois meses, enquanto a mortandade só fez crescer, é sinal de sociopatia, que, aliás, vem demonstrando em vários momentos.  
Sua empatia é seletiva, foi ao Rio para o velório de um paraquedista que morreu, mas fez um passeio de jetski quando o número de mortos chegou a 10 mil. A disputa que o presidente Bolsonaro estimulou com os governadores foi uma das principais causas do desacerto do combate à Covid-19.

Essa briga de poder aconteceu porque Bolsonaro queria impor suas idéias, como o uso de cloroquina e a abertura das cidades para não prejudicar a economia. O mais inacreditável foi a briga de Bolsonaro com os ministros da Saúde, Luiz Mandetta e Nelson Teich, querendo impor suas vontades contra a orientação cientifica internacional.  
A crise pessoal de Bolsonaro só acabou quando resolveu colocar o General da ativa Eduardo Pazuello na interinidade permanente à frente da Saúde. Como cultor da hierarquia e jejuno em medicina, o General aceitou tornar a cloroquina um medicamente oficial do SUS para combater a Covid-19, o que nenhum dos antecessores, médicos que tinham uma reputação a zelar, aceitou. 

O Brasil passou vários dias com uma média de mil mortes, já temos proporcionalmente mais mortos que os Estados Unidos, e não é improvável que em algum momento passemos a ser o país com mais mortes do mundo, em números absolutos. Se é que já não passamos. A estimativa de vários estudos é de que a subnotificação dos infectados por Covid-19, hoje perto de 3 milhões de pessoas, pode chegar a 14 vezes mais.

O número de mortes que hoje nos assombra pode ser 27% maior que os 100.240 oficiais, isso porque as mortes por síndrome respiratória aguda grave (Srag) não apenas aumentaram muito em relação à média, como muitos casos não tiveram o agente causador identificado, o que leva as autoridades médicas a crerem que teriam sido provocadas pela Covid-19.

Sem falar nas periferias e favelas das grandes cidades, e no Brasil profundo, que não têm atendimento médico devido. Um dos maiores problemas brasileiros no combate à Covid-19 foi a falta de testagem, sem o que não se pode ter uma idéia exata de como está a evolução da doença. Este é um problema que a maioria dos países europeus e os Estados Unidos não têm.    

Bernardo Mello Franco - Nenhuma Vida Importa

- O Globo

Nos Estados Unidos, nada será como antes do Vidas Negras Importam. O movimento chacoalhou o país com protestos contra a violência da polícia e a discriminação racial. O lema nasceu em 2013, mas ganhou força inédita neste ano. Depois do assassinato de George Floyd, já levou ao menos 15 milhões de americanos para as ruas.

No Brasil, o governo lançou o programa Nenhuma Vida Importa. O slogan não aparece na propaganda oficial, mas está por trás das ações e omissões de Jair Bolsonaro. Ele deu as costas para a maior pandemia em um século, que ultrapassou ontem a marca de cem mil vítimas no país.  O presidente se recusou a coordenar o combate ao coronavírus. Mais do que isso, fez questão de ostentar indiferença em relação às mortes. Chamou a doença de “gripezinha”, sabotou as medidas de isolamento, incentivou seguidores a invadirem hospitais.

Em alguns momentos, pareceu se divertir com o sofrimento alheio. “Não sou coveiro, tá certo?”, debochou, em abril. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, gracejou, na semana seguinte.

No dia em que o Brasil chegou aos dez mil mortos, Bolsonaro saiu para passear de jet-ski. Na marca dos 90 mil, vestiu um chapéu de vaqueiro e cumpriu agenda de candidato no sertão nordestino.

Na quinta-feira, ele disse lamentar “todas as mortes”. “Já tá chegando ao número de cem mil talvez hoje, não é isso?”, perguntou, em transmissão pelas redes sociais. Ao ouvir que o número seria atingido no fim de semana, produziu mais uma pérola de insensibilidade. “Vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”, afirmou.

Na cabeça do presidente, o problema não é a doença. Ele quer se safar de outros aborrecimentos, como o risco de um processo no Tribunal Penal Internacional. Por aqui, as instituições já se conformaram com sua negligência. A elite política deixou de falar em impeachment, e o Judiciário voltou a operar na lógica do conchavo.

Sem apoio federal, prefeitos e governadores se curvaram às pressões para reabrir a economia a qualquer custo. A flexibilização apressada vai manter o vírus em circulação por mais tempo. “Estamos com a consciência tranquila”, disse Bolsonaro na quinta. Os 100 mil mortos não estão mais aqui para responder.

Depois de cinco meses, a sociedade também parece anestesiada pelo morticínio. A perda de mais de mil brasileiros por dia deixou de dominar o debate público. A militarização do Ministério da Saúde, sem titular há 86 dias, não é mais motivo de espanto. O presidente insiste em receitar remédio milagroso, e as entidades médicas reagem com resignação. Ele exibe sua caixinha de cloroquina para uma ema, e a cena é recebida com bocejos de tédio.

Num país que normalizou a apologia da tortura, a negação da ciência também virou fato corriqueiro. A cada dia que passa, o programa Nenhuma Vida Importa ganha novos adeptos. Bolsonaro está vencendo pelo cansaço.

Míriam Leitão - Abandonar mitos e entender a história

 - O Globo

Vera Magalhães - Tocar a vida?

- O Estado de S.Paulo

Única forma de seguir o conselho de Bolsonaro é punir responsáveis por nossa tragédia

“Tá chegando em 100 mil (talvez hoje). Mas vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar disso daí.” A frase, já inscrita na Enciclopédia Geral da Infâmia que Jair Bolsonaro resolveu compor durante a pandemia do novo coronavírus, foi dita por um presidente serelepe ao lado de um ministro interino da Saúde bonachão na última quinta-feira, numa das lives que ele insiste em impingir a um País traumatizado.

O número que ele previu como quem joga no bicho, depois de com a mesma sem-cerimônia dizer, lá no início da pandemia, que os mortos não chegariam a 800, não chegou naquele dia, mas o vaticínio nefasto se cumpriu neste fim de semana.

A única maneira aceitável de “tocar a vida” para que o Brasil não saia dessa tragédia ainda mais dilacerado em todas as suas dimensões é apontar as omissões, as ações criminosas, os ardis políticos e autoritários e o cinismo que nos jogaram nesse buraco, e apontar e punir em todos os fóruns cabíveis os responsáveis por ela.

A começar por esse presidente que insiste em cuspir na cara daqueles que deveria governar perdigotos de imbecilidade com relação a uma situação que não faz a menor ideia de como ao menos tentar mitigar. Ele olha para a cara de uma Nação em que mais de 3 milhões foram oficialmente infectados e 100 mil perderam a vida e dá de ombros, como se esses números num intervalo de menos de seis meses fossem toleráveis.

Nenhum governante do Brasil, dos mais nocivos que já passaram por aquela cadeira eleitos ou usurpando-a, teve em relação aos problemas que enfrentou ou provocou a desídia de Bolsonaro. Ele nem sequer finge que está tomando qualquer providência.

Jair Messias Bolsonaro mente diariamente ao dizer que o Supremo Tribunal Federal impede o governo federal de coordenar a resposta à pandemia. Deveria ser advertido ou punido pelo próprio STF por isso, pois esta não foi a decisão da Corte. Em um País sério um presidente jamais repetiria essa empulhação sem que fosse admoestado, sequer.

Jair Messias Bolsonaro mente diariamente ao dizer que cloroquina e hidroxicloroquina têm efeito para tratar covid-19. Ele atenta contra a saúde pública ao impor ao Ministério da Saúde acéfalo um protocolo sem nenhum amparo científico indicando esses remédios para casos leves e moderados. Ninguém responsabiliza o presidente e o ministro, o Conselho Federal de Medicina não vai à Justiça, e o tal protocolo anticientífico está em vigor há mais de 3 meses. O STF, o Ministério Público e o Congresso apenas assistem.

Jair Messias Bolsonaro promoveu aglomerações, cumprimentou pessoas depois de tossir e assoar o nariz com a mão, anunciou que estava coronado diante de repórteres e câmeras e tirou a máscara para isso, cumprimentou garis sem máscara já doente. Ele comete essas nojeiras diante de um País enlutado, traumatizado, desamparado. É aplaudido por um grupo de celerados e não é impedido por algum dos muitos encarregados pela Constituição de contê-lo e lembrá-lo de que ele tem de governar, e não mostrar cloroquina para a ema.

Jair Messias Bolsonaro não decretou luto oficial quando os mortos foram mil, cinco mil, dez mil, vinte mil, cinquenta mil, cem mil. Ele assiste a esse número de vítimas, pessoas que tinham vidas, sonhos, famílias e planos como quem acompanha entediado uma partida de futebol comezinha com uma daquelas camisas de time falsificadas que adora envergar.

Jair Messias Bolsonaro condena o Brasil a ser um dos piores países do mundo na chaga da covid-19 e se fia na conta cínica de que os pobres coitados socorridos com auxílio emergencial vão lhe reeleger em 2022, sua única preocupação genuína. E quem deveria responsabilizá-lo assiste a todas essas atrocidades com cara de paisagem.

Eliane Cantanhêde - Cem mil brasileiros

 

- O Estado de S.Paulo

É torcer para as vacinas, e que Bolsonaro não tente reescrever história e recriar personagem

Com mais de 100 mil brasileiros mortos e de três milhões de contaminados, é impossível não lembrar que o Brasil é vice-campeão da covid-19 e apontado no mundo inteiro como o campeão de erros na condução da pandemia. O presidente Jair Bolsonaro entra para a história como o turrão que não liderou o País na hora decisiva, fez tudo errado e se aliou ao vírus, em vez de combatê-lo.

Entre a ciência e o que Bolsonaro acha, ele ficou com o que ele acha. Entre seguir as orientações de organizações médicas do mundo inteiro e os cochichos de amigos e aliados, ele optou pelos cochichos. Entre admitir os erros gritantes e dobrar a aposta, ele dobrou. Entre se solidarizar com as vítimas e lavar as mãos, ele lavou as mãos, produzindo frases que entram não para o anedotário da história, mas para a memória internacional da falta de empatia.

“Histeria da mídia”, “gripezinha”, “e daí?”, “todos nós vamos morrer um dia”, “não podemos entrar numa neurose”, “não acredito nesses números”, “o vírus está indo embora”, “eu não sou coveiro, tá?” “quer que eu faça o quê?”, “eu sou Messias, mas não faço milagres”. Já pertinho da marca de 100 mil brasileiros mortos, Bolsonaro continuou sendo Bolsonaro e entre sorrisos, ao lado do eterno interino ministro da Saúde, deu de ombros: “Vamos tocar a vida”.

O que os amores, pais, mães, filhos, irmãos, amigos e colegas dos 100 mil brasileiros mortos acham disso? Tocar a vida? Como assim? E o presidente foi adiante: “Tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”. Buscar uma maneira só a esta altura da desgraça? Maneira de “se safar”? Desse “problema”? Uma frase, quatro absurdos.

São falas que não condizem com um presidente no auge de uma pandemia assassina que destrói vidas, famílias, empresas, empregos, renda e a economia do País. No mundo democrático, presidentes e primeiros ministros, com poucas exceções, falam – e agem – como líderes, respeitam a ciência e os cientistas, dão rumos, apresentam soluções, admitem erros. Conferem a devida solenidade, demonstram preocupação, dor, compaixão.

No Brasil, vice-campeão da covid-19, o presidente aparece sorrindo, provocando, ironizando a desgraça. Pior: dando mau exemplo, tomando decisões absurdas. E atrapalha muito ao desestruturar o Ministério da Saúde, rasgar protocolos internacionais, jogar no lixo a única vacina possível – o isolamento social – e virar, alegremente, ridiculamente, perigosamente, garoto-propaganda de um remédio sem nenhuma comprovação, de nenhum órgão sério, de nenhum país.

Sem coordenação central, com Bolsonaro só ligado em política, guerreando contra governadores e prefeitos, viu-se o caos. A covid-19 dá um banho em cientistas, cheia de armadilhas cruéis, manhas assassinas, surpresas a cada hora. Não bastasse, ela aqui encontra o ambiente perfeito para destruição e dor.

A única bala de prata que resta para vencer uma guerra já perdida são as vacinas, que chegam ao Brasil pelos acordos entre o governo federal e Oxford e entre o governo de São Paulo e a China. É torcer e rezar, contando com uma expertise comprovada brasileira: as vacinações em massa. Se os testes forem um sucesso, se o Brasil cuidar adequadamente da logística e da compra e produção de insumos, há luz no fim do túnel. Antes tarde do que nunca.

Bolsonaro está sorrindo, confrontando, agredindo a população com expressões muito além de impróprias. Que não venha depois, com boa parcela da população vacinada e os números em queda, tentar reescrever a história e reinventar seu personagem numa das maiores tragédias do planeta. Todo mundo sabe que a culpa é de um vírus ardiloso, cheio de mistérios, que encontrou no presidente do Brasil um grande aliado.

*Bolívar Lamounier - A luta do nosso bravo Jair contra os moinhos de vento

- O Estado de S.Paulo

Tão inútil quanto combater a esquerda marxista, a esta altura do campeonato

Na última terça-feira, 4/8, o presidente Jair Bolsonaro declarou que seu sonho é livrar o Brasil da esquerda. Minha primeira reação foi tentar saber o que ele entende por esquerda. 

Nas redes sociais, a resposta mais comum, quase única, foi a de que esquerdistas são os adeptos do marxismo. Ora, se é isso, o presidente não terá muito trabalho. Comecemos com uma distinção: os marxistas que pegaram em armas e os que vêm os escritos de Karl Marx como uma filosofia, uma teoria da História ou mesmo uma teoria econômica rigorosa. No Brasil, grupos comunistas pegaram em armas duas vezes, evidenciando em ambas uma patética fragilidade. Nos anos 1930, quando o Partido Comunista era dirigido por Luís Carlos Prestes, o levante que se tornou conhecido como a Intentona, anterior à implantação da ditadura getulista, facilmente desbaratado pelo governo da época. Depois de 1964, a luta armada encetada contra o regime militar por Lamarca e Marighella, principalmente. Teve consequências mais profundas, levando os militares a arrochar ainda mais o regime, notadamente no período que ficou conhecido como os “anos de chumbo”. 

Atualmente, nada faz crer que existam grupos comunistas inclinados a pegar em armas. Lula e alguns satélites de seu PT, o melhor exemplo sendo João Pedro Stédile, recorreram ocasionalmente a uma retórica beligerante, apresentaram-se como admiradores do chavismo e do regime cubano, mas não foram além disso. Aliás, definir o lulismo não é tarefa para principiantes. Para mim, Lula é uma variante do nosso velho populismo, uma cepa de políticos que acreditam mais no gogó social, prometendo paraísos terrestres (e de vez em quando metendo a mão em algum, que ninguém é de ferro), do que em aprimorar a economia e a administração pública. Aprimorar a economia, nem pensar; o próprio Lula declarou diversas vezes (talvez invocando Noel Rosa) que bons governos nascem é do coração. Esse singelo aparato é suficiente para enganar os incautos – acenando-lhes com um “socialismo por construir” – que proliferam nas universidades, no clero e até certo ponto na imprensa e nos corpos legislativos. 

Voltar um pouco no tempo pode tornar mais proveitosa esta nossa inquirição. Jair Bolsonaro estaria empenhado em “livrar o Brasil da esquerda” quando alguns dos maiores símbolos dela desfrutavam imenso prestígio nacional. Oscar Niemeyer, por exemplo, morreu aos 103 anos sem jamais abdicar de sua devoção ao tirano russo Joseph Stalin. Foi, como todos sabemos, o arquiteto de Brasília e quem lhe conferiu tal encargo foi o mineiríssimo e conservadoríssimo presidente Juscelino Kubitschek. Bolsonaro incluiria JK em sua lista dos que, ao ver dele, precisam ser afastados? E Jorge Amado, o grande escritor baiano, consagrado e cultuado em todo o mundo como um de nossos maiores romancistas?

Os casos citados devem ser suficientes para evidenciar que combater a esquerda marxista, a esta altura do campeonato, é uma atividade quase tão inútil quanto arremessar o bravo corcel do Estado contra algum moinho de vento. O enredo melhora bastante se, em vez de circunscrever o conceito de esquerda ao marxismo, fizermos dele uma base mais ampla para um reexame sério dos programas de crescimento econômico que pusemos em prática desde a 2.ª Guerra Mundial. Aqui estaremos falando do nacional-desenvolvimentismo, do horror à economia de mercado, da burocracia pública e da inflação como demiurgos do progresso, da resistência ao investimento estrangeiro, e por aí afora. Ou seja, estaremos nos referindo ao modelo que se tornou conhecido como ISI – de industrialização por substituição de importações –, que de fato acelerou o crescimento enquanto era fácil fazê-lo e depois nos legou a prolongada estagnação de que, salvo melhor juízo, tão cedo não nos conseguiremos livrar. Livrar o Brasil dessa linha de esquerda seria uma excelente ideia, mas salta aos olhos que o presidente Bolsonaro dificilmente conseguirá fazê-lo. Embora se tenha afastado do Exército no posto de capitão, Jair Bolsonaro deve ter ciência de que o modelo a que me refiro sempre contou com ampla simpatia no meio militar. No vídeo da reunião ministerial realizada no Planalto em 22 de abril, vimos o ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, sugerindo um retorno ao nacional-estatismo, no que foi prontamente contestado pelo ministro da Fazenda, que parece ser no atual governo o único consciente da arapuca em que a ISI nos meteu.

A visão do futuro brasileiro corporificada no nacional-desenvolvimentismo remonta, como sabemos, ao debate de 1944 entre o economista Eugênio Gudin, favorável a uma economia balanceada, com maior atenção à agricultura, e o historiador Roberto Simonsen, adepto da industrialização a qualquer preço. Decorridos três quartos de século, o panorama é meridianamente claro: temos uma agricultura moderna, pujante, internacionalmente competitiva, e um setor industrial em escombros, não obstante todas as “bondades” de que se beneficiou durante quase todo esse período.

*Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

*Rolf Kuntz - A reeleição e a arte de tocar a vida sobre a morte

- O Estado de S.Paulo

Mortos não votam. Resta a Bolsonaro cultivar a gratidão dos eleitores vivos

 “Vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”, disse o presidente Jair Bolsonaro, depois de mencionar as quase 100 mil mortes confirmadas até a noite de quinta-feira. Além de agredir o idioma com aquele pronome “se”, ele voltou a exibir uma caixinha de cloroquina e culpou governadores e prefeitos pelo aumento do desemprego. Não especulou sobre quantas pessoas mais teriam morrido se tivesse havido menor empenho no distanciamento social. Disse lamentar as mortes e talvez alguém tenha acreditado nisso. “Tocar a vida”, no caso de Bolsonaro, significa retomar a atividade sem levar em conta o risco sanitário. Durante mais de um ano ele havia ignorado o mau estado da economia, deixando o assunto para seu “posto Ipiranga”. Terá havido uma súbita iluminação, talvez causada por algum vírus ainda desconhecido?

Cuidar da vida significa também cuidar da reeleição. Mortos são excluídos do colégio eleitoral, pelo menos quando a lei prevalece. “Não sou coveiro”, respondeu o presidente ao ser confrontado, numa entrevista, com a mortandade causada pela pandemia. “Empatia”, palavra muito repetida nos últimos meses, parece continuar fora do vocabulário presidencial. Não faltou atenção, no entanto, a negócios e votos.

Políticas emergenciais foram implantadas em dezenas de países, nos últimos meses, para atenuar os efeitos da pandemia. Centenas de bilhões de dólares foram rapidamente canalizados no mundo rico para ações de saúde, apoio às empresas, defesa do emprego e socorro aos pobres. Planos mais modestos foram adotados nas economias emergentes e em desenvolvimento.

Nem os países mais pobres ficaram sem proteção. O Fundo Monetário Internacional (FMI) mobilizou cerca de 1 trilhão de dólares para ajuda. Em pouco tempo foram aprovados desembolsos para cerca de uma centena de países. Parte desses empréstimos provavelmente nunca será quitada, mas isso é parte do jogo. Em todos os casos a ajuda foi vinculada a ações de saúde e de sustentação econômica.

As medidas aplicadas no Brasil são parecidas, em pontos essenciais, com aquelas encontradas em muitos outros países. De modo geral, houve estímulos ao crédito e aumento do gasto público. Esse aumento foi combinado, em alguns casos, com alívio temporário de impostos. Um levantamento dessas políticas foi divulgado há semanas pela OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

A maioria das pessoas, no Brasil e provavelmente em muitos outros países, desconhece esses fatos. Ignora, da mesma forma, o sentido econômico do auxílio emergencial. Essa ajuda é vital para as famílias, obviamente, mas é também muito importante para as empresas, pequenas, médias e grandes, produtoras e distribuidoras de bens essenciais.

A estratégia econômica torna-se interpretável por milhões de pessoas como ato de bondade. Isso facilita faturar politicamente, como se fosse um gesto humanitário, um ato explicável pela mais prosaica racionalidade econômica. Repetido por alguns meses, um auxílio de R$ 600 pode converter-se em fonte de gratidão e de votos. Erros cometidos no combate à doença – e até agravados pelo desprezo à vida de milhares – tornam-se irrelevantes ou invisíveis. Lucra, portanto, quem se ocupa prioritariamente da reeleição em 2022.

Muitos talvez nem tenham percebido os erros e as falhas de liderança, embora possam ter ocasionado a morte de pessoas próximas. Nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, onde os programas de ajuda emergencial foram muito amplos, erros no combate à pandemia saíram menos baratos para os chefes de governo. Serão menos dotados de gratidão os europeus e americanos?

Especialmente notável, no caso brasileiro, é o repentino interesse do presidente pela economia e pela sorte dos trabalhadores. Esse interesse, nunca manifestado nos primeiros 14 ou 15 meses de mandato, só apareceu depois de reconhecida a presença do novo coronavírus.

Em 2019 a economia cresceu 1,1%, menos que em qualquer dos dois anos anteriores, mas o assunto jamais pareceu preocupar o presidente da República. No trimestre móvel encerrado em fevereiro os desempregados eram 11,6% da força de trabalho, mais que o dobro da média da OCDE, e a aparente indiferença permaneceu. Ainda em fevereiro, a produção industrial, embora 0,5% maior que a do mês anterior, continuou 0,4% inferior à de um ano antes e 16,6% abaixo do recorde de maio de 2011, no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff.

A crise industrial vem de longe e se agravou nos últimos oito anos, mas permanece invisível na agenda presidencial e na da equipe econômica. Não se resolverá esta crise com a mera redução de encargos sobre a folha de salários e com a eliminação de direitos trabalhistas, bandeiras do ministro da Economia. Sem cuidar de temas essenciais para a prosperidade do País, o presidente, centrado em objetivos pessoais, pressiona pela retomada imediata dos negócios, mesmo com o risco de mais mortes. Na sua contabilidade, esse deve ser um preço razoável pela reeleição. O lema é tocar a vida sobre os mortos.

*Jornalista

 

Bruno Boghossian – Bolsonaro quer tocar a vida

- Folha de S. Paulo

Presidente só está preocupado em se livrar dos custos políticos do desastre do governo

A conta ainda supera a média de 1.000 mortes por dia, mas Jair Bolsonaro quer “tocar a vida”. Na semana em que o país bateu as 100 mil vítimas do coronavírus, o presidente ainda estava preocupado em se livrar dos custos políticos de sua própria gestão catastrófica da crise.

Ao lado do general que escalou para ocupar a cadeira vazia do Ministério da Saúde, o chefe do Executivo não deu muita bola para a marca que seria atingida dias depois.

“A gente lamenta todas as mortes. Já está chegando ao número de 100 mil. Mas vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”, disse Bolsonaro em sua transmissão nas redes, na quinta (6).

O presidente fez de tudo para atrapalhar o combate à pandemia, mas continua tentando “se safar” das consequências dessa sabotagem. No vídeo, ele quis convencer seus seguidores de que a cifra mórbida era culpa de todos, menos de seu governo.

Bolsonaro mentiu de novo ao dizer que o STF “decidiu que as medidas restritivas eram de competência exclusiva de governadores e prefeitos”. A ideia era jogar na conta desses políticos o desemprego provocado pela paralisação da economia.

Ele só não quis dizer que o tribunal apenas definiu a competência de estados e municípios, apontando que o governo federal também deveria participar desse trabalho —o que o presidente se recusou a fazer.

Em busca de imunidade, Bolsonaro também apelou para a cloroquina. Afirmou que seus adversários “têm que responder” pelos alertas sobre o medicamento, que não tem eficácia comprovada. Ele mesmo, porém, busca absolvição. “Pode ser também que, mais tarde, não se comprove que isso aqui tenha sido tão eficaz assim, ou até ineficaz. Paciência, acontece”, declarou.

O presidente minimizou os riscos da doença, incentivou um boicote ao isolamento, explorou sua rivalidade com governadores, mandou maquiar dados da pandemia e deixou o país sem ministro por 87 dias. Bolsonaro pode tentar se safar, mas não conseguirá apagar o que fez.

Hélio Schwartsman - Liberdade para fracassar

- Folha de S. Paulo

Embora muitos pensem que a ciência gera tecnologia, no geral ocorre o contrário

É muito bom o último livro de Matt Ridley, “How Innovation Works” (como funciona a inovação).

Poucos, à esquerda ou à direita, discordarão de que a capacidade de inovar é o que diferenciou membros do gênero Homo de outros primatas e nos assegura a era de conforto e prosperidade material sem precedentes em que vivemos. Ainda assim, a inovação está longe de ser um fenômeno bem compreendido.

O autor começa o livro contando histórias sobre inovações. Há desde as bem conhecidas, como a da lâmpada elétrica e a da máquina a vapor, até as quase ignoradas, como a da infusão de café, que, por alguma razão, diferentes países tentaram proibir. Há desde as imemoriais, como a utilização do fogo e dos cachorros, até as mais modernas, como a turbina e a energia nuclear.

Ridley sabe contar histórias, e só isso já tornaria “How Innovation Works” uma obra interessante. Mas ele vai além e extrai desse conjunto de anedotas uma série de padrões. Alguns são conhecidos. A inovação é muito mais o resultado de esforços coletivos do que obra de gênios isolados. Outros, menos conhecidos.

Embora muitos pensem que a ciência gera tecnologia, no geral ocorre o contrário. São as inovações que abrem novas searas para o desenvolvimento científico.

O livro se torna provocativo quando o autor afirma que vivemos uma época de risco para o espírito empreendedor e se põe a apontar elementos que hoje impedem as inovações de surgir. Aí sobra para todo mundo —do sistema de patentes às grandes empresas, com especial destaque para as autoridades regulatórias da Europa. Ridley oferece argumentos bem convincentes para defender suas teses.

A profissão de fé liberal do autor também se faz presente. Para Ridley, a inovação é fruto da liberdade: liberdade para pensar, experimentar, investir, trocar, consumir e, principalmente, liberdade para fracassar. Sem essas liberdades, a inovação não vai muito longe.

Janio de Freitas – Um ministério de socorro a Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Presidente transformou a Seopi, criada para intermediar ações das polícias, em serviço de informação interna

O lento caminhar dos inquéritos sobre as relações sigilosas dos Bolsonaro e Fabrício Queiroz tem um mérito preliminar: baseia-se em investigações, trabalho de promotores e polícia do Rio, e não em chantagistas delações bem premiadas, tipo Lava Jato curitibana.

Outro mérito do gênero, não assola o sensacionalismo que tira imprensa e TV do jornalismo para os interesses políticos e econômicos. Mas estende com perigo, sob o cerco de atingidos descontrolados, uma situação com implicações importantes na ordem institucional. Por mais grave que seja, o já revelado está longe do que pode alcançar.

Bolsonaro sabe o que esconde e se preparou desde a campanha para montar um sistema protetor. O caso ainda em curso do dossiê sobre antifascistas, montado no Ministério da Justiça, é um exemplo que independente do documento, aliás, existente mesmo. Foi feito na Seopi, Secretaria de Operações Integradas, como revelado no UOL pelo repórter Rubens Valente.

Um serviço criado no ministério para intermediar ações conjuntas de polícias federal e estaduais. Nada a ver com espionagem política, judicial ou qualquer outra.

Até 1º de janeiro de 2019. No dia mesmo da posse, Bolsonaro decreta, encoberta pelos acontecimentos públicos, a transformação da Seopi em serviço de informação interna. Medida, claro, articulada com Sérgio Moro, que assumia o ministério e viria a conduzir a alteração. Dela foi incumbido o coronel Gilson Mendes Libório, demitido pelo atual ministro André Mendonça quando revelado o dossiê.

A Seopi de espionagem teve uma citação pública, pelo próprio Bolsonaro, embora continuasse desconhecida. Durante a reunião de botequineiros no Planalto em 22 de abril, e antes que Abraham Weintraub satisfizesse Bolsonaro com o ataque aos ministros do Supremo, o assunto relevante foram os serviços de informação.

Bolsonaro atacou todos, por omissão das informações que lhe interessavam, até berrar uma ressalva: “Menos o meu, particular”. Seguiu-se orgulhoso elogio.

Desde então, muitos se perguntaram que serviço particular seria aquele. A Seopi. Recriada para as necessidades de Bolsonaro & família. Com serviços como o dossiê sobre 579 policiais e três professores antifascistas, quer dizer, democratas perigosos. Datado de junho, pode ser o mais recente, mas não é imaginável que seja o único em 18 meses de “serviço particular” de informação espiã para Bolsonaro.

Com a revelação que prejudica a continuidade da espionagem bolsanara pela Seopi, reaparece, às pressas, a criação de um Ministério da Segurança Pública. Um ministério para a segurança dos Bolsonaro. O nome, com máscara de público, é irrelevante, seu cinismo não precisa de exame.

Por ora, mais interessante será verificar, por exemplo, se os 27 depósitos com R$ 87 mil, feitos por Fabrício Queiroz e Márcia Aguiar em conta de Michelle Bolsonaro, foram para a destinatária ou não.

O primeiro depósito descoberto, de R$ 24 mil, nunca motivou nela uma só palavra que fugisse ao seu modo discreto e elegante. Nem mesmo por uma notinha, salvo seja. E nisso há algum significado, até por ser ela muito mais habilitada a pensar e falar do que Bolsonaro, inventor da patetice de empréstimo de R$ 40 mil a Queiroz.

Aprofundado, o comprometimento do nome de Michelle sujeita-a a efeitos judiciais comuns. O que seria uma vergonha a mais, mas não um sismo institucional.

Este é previsível com o avanço, se houver, dos inquéritos no Rio sobre os Bolsonaro. Os inquéritos atuais, que dos possíveis e justific —cala-te boca.

NO CORAÇÃO

Ex-secretário da Receita Federal, de comprovada competência, Everardo Maciel diz, a um só tempo, o mínimo e tudo sobre a “reforma” tributária projetada por Paulo Guedes: “Aumentam a carga tributária da escola e diminuem a do carro de luxo”.

Imitando-o: criam imposto sobre o livro e conservam a dispensa de R$ 300 bilhões de impostos, quase todos de graúdos.

LEIA LIVROS

A paciência com o confinamento se esvai. Ocasião propícia para a leitura de “O Retalho” (Ed. Todavia).

O relato de um sobrevivente do ataque de terroristas islâmicos ao sério-humorístico “Charlie Hebdo”, que comoveu o mundo, é uma segunda comoção causada pelo crime. Philippe Lançon , atingido por uma bala no rosto, volta ao mundo pela comunhão indissolúvel que cria entre sabedoria e paciência.
Duas carências nossas.

 

Vinicius Torres Freire - Militares, mensalão, Michelle e milícias

- Folha de S. Paulo

Entre o cinismo terminal e o desvario, Brasil se acomoda à companhia de milicianos

Um agregado das milícias, se não ele mesmo miliciano, pagava contas dos Bolsonaros e punha ainda mais dinheiro na conta de Michelle Bolsonaro, como mostrou a revista Crusoé nesta sexta-feira (7).

O senador Flávio, o filho 01, enrola-se a cada vez que fala do seu caso com Fabrício Queiroz, motorista, segurança e contato da família com pistoleiros e milicianos, elogiados em público e condecorados pelos Bolsonaros.

Parece tudo tão velho e sabido desde pelo menos 2018. Portanto, é cada vez mais impressionante que o país se acomode a uma família presidencial relacionada com o crime organizado e acusada de fazer seu pé de meia com o furto de dinheiro público à boca pequena, pois sempre foi marginal na política, sem acesso à roubança em grande escala.

Acomodar-se é a palavra a que se deve prestar atenção.

A ameaça hoje mais direta à sobrevivência política de Jair Bolsonaro vem do Supremo Tribunal Federal. Mas no conjunto do Judiciário há um jogo de morde e assopra, de sufoco e alívio. Manipula-se um cabresto para manter o presidente na raia que fica entre o golpe e o impeachment.

Os generais, por sua vez, não têm pudor algum de apoiar uma família presidencial associada a agregados da milícia, no mínimo, além de se juntarem às ameaças golpistas do presidente e lançarem manifestos subversivos oficiais.

Negociam eles mesmos o arreglo de Bolsonaro pai com presidiários do centrão, de que faziam troça ainda na campanha de 2018.

Agora mais abertamente do que qualquer casta da alta burocracia, buscam salários maiores, prebendas, aposentadorias gordas, boquinhas para amigos e parentes ou verbas para suas armas. Buscam também reconhecimento, iniciativa que morre mesmo antes mesmo de sair da lama das trincheiras, dados o desastre administrativo, vide o caso do almoxarifado da Saúde, e a apologia de ignorância ou de barbaridades como a tortura.

Parece agora claro que não se pode ter ilusão alguma a respeito do governo militar, do sentido do que fazem os generais do Exército e seus comandados.

Seja pela popularidade restante de Bolsonaro, seja pela possibilidade de cavar rendas, verbas e cargos, “business as usual”, o Congresso acomoda-se ao governo. A cabeça dos lava-jatistas é servida como acompanhamento desse acordão.

Causa cada vez menos escândalo a intervenção de Bolsonaro nos órgãos de controle, que começou no falecido Coaf, passou pela Polícia Federal, estabeleceu-se na Procuradoria-Geral da República e agora pode ser minada de dentro, com a renovação dos órgãos de espionagem.

Rasgou-se a fantasia grotesca de moralidade. Fizeram picadinho do lacerdismo tardio da Lava Jato, o morismo. Tão ao gosto dos Bolsonaros e Queiroz, agora faz-se um rolo a fim de dar um jeito no teto de gastos, teto que era a justificativa limpinha restante daquelas que o establishment e tantos de seus economistas deram para se associar a Bolsonaro.

O presidente precisa de um Bolsa Família para chamar de seu; parte de seus ministros e do centrão quer dinheiro para investimento em obras. Nada disso é possível sem que ao menos se abra um buraco no teto de gastos ou, muitíssimo improvável, se dê um talho imenso no salário dos servidores (“não passará!”).

É a isso que as elites brasileiras se prendem? Uma promessa fiscal precária vale uma sociedade com golpistas, milícia, rachadonas, razia no ambiente e na educação, inércia criminosa na saúde, disseminação da ignorância, de ódio, mentiras sórdidas e vexame diplomático?

Entrevista | Relatório sobre opositores ‘é crime muito grave’, afirma Raul Jungmann

Para ele, este tipo de monitoramento é vedado pela lei, e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) tem estrutura suficiente para produzir informações de qualidade

Vinicius Sassine | O Globo

BRASÍLIA — O ex-ministro Raul Jungmann afirma que a produção de um dossiê contra opositores do presidente Jair Bolsonaro é um “crime muito grave” e que é preciso identificar e punir a “cadeia de responsabilidade que está acima”. Para ele, este tipo de monitoramento é vedado pela lei, e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) tem estrutura suficiente para produzir informações de qualidade.

·         Por que gasta-se mais com ações de inteligência e de segurança na Presidência da República, na sua visão?

Os protocolos de segurança presidencial elevam o nível de exigência. Numa tentativa de interpretação minha, no caso do presidente Bolsonaro, o fato de ter sofrido um atentado contra a vida dele efetivamente fez com que se ampliassem os dispositivos e o pessoal na área de segurança.

·         E com inteligência?

Há dois tipos de inteligência. Uma voltada a gerar informações para decisões, para o uso pelo presidente. Isto é feito pelo GSI, com o suporte da Abin. E há a inteligência policial. Isto está na própria lei do Sistema Brasileiro de Inteligência. O controle desta última é feito pelo Ministério Público Federal. Já a inteligência como suporte à tomada de decisão não tem a característica policial, portanto não pode monitorar grupos de pessoas, a não ser com autorização judicial. E está sob controle de comissão do Congresso.

·         Os dois tipos de inteligência são passíveis de controle.

Sim. O relatório da secretaria do Ministério da Justiça (de monitoramento de grupos antifascistas) só poderia ter ocorrido com autorização e controle judicial. A lei de criação da Abin, que é o órgão central do sistema, não permite monitoramento. Não há autorização. Eles não podem grampear, monitorar, nem com autorização judicial.

·         Quão grave é a elaboração desse relatório?

Um órgão de inteligência transgrediu a lei, cometeu um delito. É preciso identificar os responsáveis, em que nível houve essa ordem política. Esta ordem claramente atenta contra direitos e garantias constitucionais e, portanto, contra a própria democracia. É um crime muito grave. É preciso identificar a cadeia de responsabilidade. É algo que tem de ser exemplarmente identificado e punido. Preocupa por ter se dado dentro do aparato de Estado.

·         O presidente fez mudanças na Abin. Havia necessidade?

Não tenho em mãos a avaliação, mas acredito que a Abin, até o momento em que estivemos no governo, tinha uma estrutura. Dispõe de quadros qualificados e gera informações eficientes. Aquela estrutura era suficiente. O que é fundamental é que essa estrutura tem de estar sob o controle do Congresso, obedecer a lei e jamais se confundir com inteligência policial.