sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Pedro Doria: 2018, o ano da mentira

- O Globo

A polarização não corresponde à batalha de ideias na sociedade. Não há disputa ideológica entre esquerda e direita. Ou, ao menos, não só.

Tudo fica muito difícil quando o diagnóstico está errado. E, na bagunça que foi este ano de 2018, entre algoritmos, redes sociais, polarização e notícias falsas, vivemos em essência um problema de diagnóstico errado.

Este foi o ano em que a mentira predominou. Não foi só de um lado.

O estado de confusão política no qual nos metemos começa antes das mentiras - começa numa sensação de inimizade que vem da polarização. Polarização falsa, pois não corresponde à batalha de ideias que corre na sociedade. Não há uma disputa ideológica entre esquerda e direita. Ou, ao menos, não só.

A classificação que divide o conjunto de ideias entre esquerda e direita vem de como se sentavam os parlamentares na Convenção Nacional francesa de 1792. É útil, por vezes. Hoje, atrapalha. Porque a disputa em curso se dá não entre dois, mas três grupos. E ao não classificar um destes três, tudo se confunde, tudo se mistura, e da falta de clareza nasce a mentira.

Está em ascensão uma direita conservadora de corte nacionalista. Ela toma emprestado um discurso econômico liberal, mas na verdade desconfia do liberalismo. Não acredita nos mercados livres entre nações, combate iniciativas multilaterais. Se define ‘antiglobalista’. Tampouco acredita na liberdade do indivíduo de tomar decisões a respeito de seu corpo ou vida. É, em essência, antiliberal.

Como é antiliberal a esquerda que ainda enxerga o mundo por lentes criadas nos anos 1930 para resolver problemas de outra crise. Ainda foca na indústria de coisas como se a riqueza, hoje, não fosse conhecimento na forma de software e serviços. Como se a internet não houvesse alterado a estrutura do trabalho, tornando obrigatório que se repense do zero todas as regras.

Merval Pereira: Cadê o Queiroz?

- O Globo

Tecnicamente, caso Queiroz não é questão de governo, no entanto, politicamente é que a porca torce o rabo

A pergunta, sonora e incômoda, vem atropelando a transição do governo Bolsonaro há mais de 20 dias, quando foi descoberta uma “movimentação atípica” do motorista Fabrício Queiroz, que trabalhava no gabinete do senador eleito Flavio Bolsonaro. É a maneira técnica que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) encontra para definir movimentações financeiras incompatíveis com os ganhos oficiais de um cidadão.

Por ser motorista de um dos filhos do presidente eleito Jair Bolsonaro, de quem é amigo há 40 anos, e ter depositado dinheiro na conta da futura primeira-dama, o caso ganhou dimensões políticas naturalmente escandalosas.

O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, futuro ministro-chefe da Secretaria de Governo, definiu ontem que o caso de Fabrício Queiroz “não é uma questão de governo”, protegendo assim a figura do presidente da República, delimitando o alcance do escândalo.

Tecnicamente, o General está certo. Se não é possível processar um presidente da República por fatos alheios ao seu mandato, muito menos um futuro presidente que nem mesmo assumiu o posto. Tecnicamente, no entanto, não quer dizer politicamente, e é aí que a porca torce o rabo.

Bolsonaro deu uma explicação plausível para os depósitos na conta de sua mulher. Seriam pagamentos de empréstimo particular que dera ao amigo. O filho 01 do futuro presidente, que gosta de numerá-los por ordem cronológica de antiguidade como acontece entre os militares (quem não se lembra de “pede pra sair 01”, famosa frase do Capitão Nascimento em “Tropa de Elite?”), disse desde o início do caso que a explicação deveria ser dada por Queiroz, deixando claro que não temia ser apontado como político que usava o motorista como laranja para ficar com parte do salário dos funcionários de seu gabinete, como parece ser comum na atividade parlamentar.

Míriam Leitão: O muito que falta no caso Queiroz

- O Globo

A exigência sobre a autoridade é maior no quesito usado como bandeira eleitoral. A família Bolsonaro deve requerer de Queiroz explicação mais convincente

A versão de Fabrício Queiroz é evidentemente insatisfatória. Mesmo com toda a boa vontade do mundo é difícil considerar o caso encerrado. É preciso mostrar os registros de carros vendidos e comprados, explicar os depósitos dos funcionários do gabinete, justificar a presença dos seus familiares empoleirados na equipe de Flávio Bolsonaro, e ainda ter a comprovação bancária do empréstimo do presidente eleito Jair Bolsonaro em sua conta.

Há falhas demais nessa história. O Brasil foi muito bem treinado nos últimos anos pelos procuradores e juízes da Lava-Jato a não aceitar versões com peças faltantes. Até seu semblante na entrevista concedida ao “SBT” parecia saudável demais para justificar o seu não comparecimento à convocação do Ministério Público Estadual. Ele pode mesmo ter as enfermidades que disse ter, mas não parecia estar em estágio agudo ao conceder a entrevista. No final da noite de ontem, a defesa apresentou atestados sobre a “grave enfermidade” de Queiroz e disse que ele passará por “cirurgia urgente”.

O que temos visto no país nos últimos anos é o desvio de milhões e bilhões, e alguém pode argumentar que é pequeno o movimento atípico na conta do ex-assessor do senador eleito e amigo da família Bolsonaro. O problema é que não há malfeito pequeno ou grande. Há malfeito. E foi contra eles que a família que assumirá o poder dentro de alguns dias fez a cruzada que a levou à vitória.
Uma velha lei da política é que a exigência sobre uma autoridade é maior exatamente no quesito que foi usado como bandeira para a eleição.

O ex-presidente Fernando Collor foi eleito dizendo que combateria os marajás. Ele caiu não por ter provocado uma grave recessão com seu plano desastrado, mas porque fantasmas de PC Farias movimentavam dinheiro que davam a ele um luxo de marajá, como as cascatas da Casa da Dinda. A ex-presidente Dilma negou a crise econômica e prometeu crescimento no seu segundo mandato. A recessão e o desemprego explodiram na cara dos eleitores.

O ponto mais vulnerável do futuro governo será o do combate à corrupção, até porque o presidente eleito dobrou a aposta quando convocou o ícone da Lava-Jato, Sérgio Moro, para o cargo de ministro da Justiça. A versão de Queiroz é muito fraca. As movimentações atípicas podem ser mesmo o resultado da sua habilidade em “fazer dinheiro", mas documentos, registros bancários, e testemunhos precisam acompanhar as palavras.

Bruno Boghossian: O amigo Queiroz

- Folha de S. Paulo

Sem explicar depósitos de funcionários, ex-assessor dá pistas do que quer esconder

Para um amigo da família, Fabrício Queiroz já causou problemas demais para os Bolsonaros.

A entrevista em que o PM se recusou a explicar a movimentação de sua conta bancária é pior do que o silêncio que guardou por quase três semanas. Suas evasivas dão pistas do que ele quer esconder.

O ex-assessor de Flávio pretendia afastar o antigo chefe das suspeitas levantadas pelo relatório do Coaf que registrou transações de R$ 1,2 milhão em um único ano. “Eu sou o problema, não eles”, disse ao SBT.

Queiroz não fez muito mais do que isso. O PM decidiu manter segredo sobre os depósitos que recebeu dos servidores do gabinete de Flávio nos mesmos dias em que rodava a folha de pagamento da Assembleia Legislativa do Rio. Disse que só falaria do assunto ao Ministério Público —embora tenha se esquivado de quatro intimações para depor.

Agora, o ex-assessor teria dois caminhos claros para encerrar o caso. O primeiro seria explicar os repasses que recebeu dos colegas: se eram parcelas de carros vendidos, pode listar os negócios e pedir que os funcionários confirmem a compra com os documentos dos veículos.

A outra opção é mais complicada. Caso Queiroz realmente tenha operado uma coleta de caixinha entre os assessores do deputado, a saída seria admitir a cobrança do mensalinho e responder se o parlamentar sabia ou não sabia do esquema.

Hélio Schwartsman: Ditadura não, pô!

- Folha de S. Paulo

Poder estatal precisa ater-se ao princípio da impessoalidade da administração

Depois da Venezuela e de Cuba, o futuro chanceler do Brasil, Ernesto Araújo, desconvidou a Nicarágua para a posse de Jair Bolsonaro. Fê-lo em nome da liberdade. “A posse do PR [presidente] Bolsonaro marcará o início de um governo com postura firme e clara na defesa da liberdade”, declarou Araújo.

No que configura um grande avanço em relação a manifestações pregressas, Bolsonaro parece concordar com seu chanceler. Por ocasião do desconvite a Nicolás Maduro, ele disse: “Ditadura, pô, não podemos admitir. O povo lá não tem liberdade”.

Eu não poderia concordar mais. Por também prezar a liberdade, jamais convidaria os ditadores desses países para minha festa de aniversário. Existem, contudo, diferenças entre uma pessoa e um Estado.

Enquanto eu, você e qualquer cidadão que não esteja desempenhando funções públicas podemos manifestar preferências, exercitar caprichos e praticar todo tipo de discriminação não vedada por lei, inclusive o amor, o poder estatal precisa ater-se ao princípio da impessoalidade da administração.

Isso significa que, se o Brasil quisesse excluir da posse ditadores, precisaria fazê-lo de forma sistemática, aplicando o mesmo princípio a todas as nações e não apenas àquelas com que a pessoa física de Jair Bolsonaro tem uma rusga pessoal.

Numa análise perfunctória, teriam de ser desconvidados não só Venezuela, Cuba e Nicarágua, mas também China, Rússia, Turquia, Arábia Saudita, Egito, Paquistão, Costa do Marfim, Nigéria e Togo, para citar apenas algumas das autocracias mais escancaradas.

Reinaldo Azevedo: Bolsonaro já deu errado, mas...

- Folha de S. Paulo

Seria um erro concluir que o governo vai ser necessariamente malsucedido

O governo Bolsonaro vai dar certo? Não. Mas seria um erro concluir, a partir dessa resposta, que vai ser necessariamente malsucedido. Estamos falando de esferas distintas da experiência pública.

Um liberal considera que um governo é eficiente quando consegue melhorar a vida da população, otimizando os recursos disponíveis, transferindo mais responsabilidades à sociedade, domando o Estado para que este regule as relações de troca, de modo a que esse ente estatal corrija, por meio da igualdade perante leis democráticas, o que desigualaram as circunstâncias que não foram escolhidas pelos indivíduos: em alguns casos, é preciso controlar os apetites; em outros, compensar as inapetências.

Pareceu excesso de abstração? Um liberal acredita, em suma, que o palavrório da política é o melhor instrumento para manter e aprimorar o pacto civilizatório que nos leva a uma concordância entre desiguais sobre o método de discordar.

“Um petista ou um bolsonarista não teriam dificuldade em adotar essa divisa, Reinaldo”. Pois é... Ocorre que a minha formulação repudia a vocação missionária e o horizonte disruptivo, sem o qual essas forças perdem razão de ser. Essa definição de eficiência é avessa à tentação da hegemonia.

Governos não devem se estabelecer, nas democracias, para colonizar consciências, de sorte que sua eficácia, no fim das contas, seja medida pela depauperação das forças que se opõem a seu projeto ou a suas ações.

Lula e os petistas sabem que boa parte dos crimes cometidos pelo PT se deveu à determinação de usar um sistema poroso à corrupção para comprar partidos e políticos. O objetivo era aniquilar a oposição ou reduzi-la à caricatura.

Vinicius Torres Freire: Bolsonaro vai encolher bancos?

- Folha de S. Paulo

PT estatizou crédito; mesmo com Temer, maioria dos empréstimos ainda é estatal

Jamais ficou claro para o cidadão comum que os governos petistas estatizaram a maioria do crédito no Brasil, o que aconteceu no restinho de Lula 2 e sob Dilma Rousseff.

Michel Temer começou a reprivatizar o sistema, mas 51,7% do total do dinheiro emprestado por bancos ainda é crédito de bancos públicos. Dificilmente Jair Bolsonaro conseguirá reverter toda a obra petista, até porque o desmanche não depende apenas dele.

Na prática, é como se Lula e Dilma tivessem criado um banco maior que um Itaú ou um Bradesco (em termos de carteira de crédito). Em novembro de 2008, cerca de 35% do estoque de crédito, do total de dinheiro emprestado, estava nos bancos públicos. No auge, em julho de 2016, a participação dos públicos foi a quase 57%.

Essa estatização começou na virada decisiva da política econômica lulista, depois de crise financeira mundial que explodiu de vez em meados de 2008. O crédito internacional secou, a atividade econômica entrou em colapso, inclusive no Brasil. Houve uma retração violenta no crédito dos bancos privados. O fim do mundo parecia próximo.

Fernando Gabeira: Uma pequena dose de Jânio

- O Estado de S.Paulo

Era mais confortável canalizar as atenções para o biquíni que para as finanças nacionais

O futuro ministro da Cidadania, Osmar Terra, falou em proibir o álcool em algumas circunstâncias e provocou polêmica. Creio que as pessoas entenderam que Terra queria proibir o álcool de forma geral.

A experiência no Brasil, no entanto, já mostrou que em certos momentos é possível controlar o consumo com êxito na redução da violência. Para isso é necessário um mapa preciso dos incidentes violentos, indicando hora e lugares onde acontecem.

Não concordo com a visão geral de Osmar Terra sobre política de drogas. Mas também não concordava com a visão proibicionista do velho e saudoso Elias Murad. Uniam-me a Murad, assim como a Osmar Terra, não só a amizade cotidiana, mas uma certa humildade diante desse complexo problema, para o qual ninguém pode dizer que tenha todas as únicas respostas certas.

Basta ver, no momento, a devastação humana que o consumo de opiáceos está provocando nos Estados Unidos. É um desafio para o governo Trump, mas suas raízes o antecedem.

Mas a democracia nos faz experimentar. No Brasil, com a vitória conservadora, é razoável que a política de Terra seja desenvolvida. No Canadá, por exemplo, o governo rumou noutro sentido, legalizando a maconha. Dizem os jornais que a Marlboro entrou no negócio e suas ações subiram mais que as da Bombardier, a correspondente canadense da Embraer.

Não sou ingênuo a ponto de apresentar uma única variável, o sucesso econômico, como critério para analisar uma política dessa envergadura. Apenas registro: a democracia abre o caminho para diferentes experimentos.

Esse pequeno debate em torno do anúncio de Osmar Terra me fez refletir sobre o passado, mais especificamente o período Jânio Quadros. Sem querer comparar governos, registro apenas que naquela época havia também uma combinação entre temas conservadores nos costumes e medidas amargas na economia.

César Felício: Scripta manent

- Valor Econômico

Presidente implantou lógica parlamentarista

Não há precedentes na história democrática brasileira para as vitórias que Michel Temer conseguiu no Congresso durante sua presidência. O presidente que se vai na próxima semana fez aprovar em primeiro turno na Câmara uma mudança constitucional que engessa o gasto público por 20 anos, na véspera de um feriado, em 10 de outubro de 2016, o que não é pouco. Seis meses depois, às portas de nada menos que o Dia do Trabalho, conseguiu da Câmara a chancela para a reforma que demoliu a CLT.

Mas isso não foi tudo. A hecatombe desencadeada por Joesley Batista, que explodiu na tarde de 17 de maio de 2017, apenas desviou o foco presidencial, mas manteve o padrão de eficácia do presidente no Congresso. Temer passou a trabalhar exclusivamente para a autopreservação e salvou-se duas vezes. No dia 2 de agosto, derrubou a primeira denúncia formulada pelo então procurador geral da República, Rodrigo Janot. Em 25 de outubro, foi a vez de a segunda denúncia cair.

Foram quatro vitórias emblemáticas de Temer no plenário da Câmara, algo sugestivo para um presidente nascido do Congresso e abençoado pelo Supremo, entre abril e maio de 2016. Época em que a Câmara aprovou o afastamento de Dilma Rousseff em um domingo, com direito a espocar de rojões de papel picado em plena votação, sob o pulso firme de Eduardo Cunha. O STF só entendeu que o deputado do MDB não podia presidir uma casa do Legislativo poucos dias depois de completado o serviço em relação ao impeachment.

O rio desaguou no mar porque correu no sentido certo. O vice-presidente nomeou um ministério integralmente formado por parlamentares. Implantou uma lógica parlamentarista no país. Não houve mulher ou negro na primeira equipe ministerial formada porque a lógica do governo Temer não era a de pactuação com o eleitorado, mas sim com o Congresso. Sarney, Fernando Henrique e Lula lotearam a administração. Temer a feudalizou.

Sua administração tinha em Henrique Meirelles, ministro da Fazenda, uma âncora, que reverteu as expectativas negativas do mercado em relação ao déficit público galopante, mas seus motores foram múltiplos na área política. Na linha de frente, havia quatro pontas de lança: Geddel Vieira Lima, Moreira Franco, Eliseu Padilha e Romero Jucá.

Em uma semana Jucá estava fora, com a divulgação do célebre diálogo com Sérgio Machado sobre a necessidade de um grande acordo nacional.

Era um produto derivado da à época chamada "megadelação" da Odebrecht, que vitimaria também Geddel e o então ministro do Turismo, Henrique Eduardo Alves. A segunda onda de denúncias, movida por Joesley, trouxe o bombardeio para o Palácio do Jaburu.

Dora Kramer: O Brasil fora da curva

- Revista Veja

FH, Bolsonaro e ex-presidente preso num país assaz original

Até meados dos anos 1970 os concursos de fantasia promovidos por grandes clubes e hotéis, principalmente no Rio de Janeiro, eram um acontecimento de sucesso absoluto no Carnaval. Havia duas categorias: luxo e originalidade. Na primeira, valia o esplendor; na segunda, a capacidade de surpreender. Se houvesse hoje um campeonato mundial entre países no quesito originalidade, o Brasil seria hors-concours, tal a fertilidade do país em ineditismos.

De Fernando Henrique Cardoso costumava-se dizer que era um presidente fora da curva, dado seu preparo intelectual e sua “vivência de mundo”. Isso depois de o Brasil já ter se inscrito no campo das primazias com um impeachment presidencial na estrita regra democrática, sem quebra institucional, a despeito da proximidade do finado período autoritário e da ainda incipiente cultura democrática nas esferas pública e privada.

De lá para cá vem sendo produzida uma série de originalidades, a mais recente delas de novo atinente a um presidente. Jair Bolsonaro poderia também ser considerado um ponto fora da curva (pelas razões opostas às que assim enquadravam FHC) se nos últimos anos o país não tivesse se notabilizado pela transformação da exceção em regra. Era um governador baiano, Otávio Mangabeira, quem dizia: “Pense num absurdo, na Bahia tem precedente”.

A constatação, ampliada em âmbito nacional, não poderia ser mais atual quando se pensa na eleição para presidente de um deputado de atuação inexpressiva no Parlamento, com posições extremadas, muitas vezes caricatas, e que até outro dia não influía nem contribuía com coisa alguma para a cena política do país.

Ricardo Noblat: Bolsonaro em dívida com Temer

- Blog do Noblat | Veja

Para não começar do zero

Por tê-la usado como principal bandeira de sua campanha à presidência da República, seria de imaginar que o presidente eleito Jair Bolsonaro dispusesse de ideias bem concebidas para enfrentar a violência que matou quase 63 mil brasileiros em 2016, quando o país pela primeira vez na história superou o patamar de 30 homicídios por cada 100 mil habitantes. Ou Bolsonaro ou pelo menos quem ele escalasse para cuidar da segurança pública no seu governo.

Não parece ter sido o caso. Não foi o caso. A princípio, Bolsonaro e o ex-juiz Sérgio Moro, futuro ministro da Justiça e da Segurança Pública, se limitarão a adotar o pacote de segurança pública lançado, ontem, pelo presidente Michel Temer. Foi o que admitiu o general Guilherme Teóphilo de Oliveira, braço direito de Moro: “É. Não podemos pegar agora e querer começar tudo do zero, não. A gente tem que aproveitar isso aí”. Do zero? E nada havia sido pensado?

“Agora é tentar dar continuidade e fazer os aperfeiçoamentos que nós achemos necessários”, explicou o general. O “Plano Nacional de Segurança Pública”, legado por Temer a Bolsonaro e Moro, é o quinto a ser lançado desde 2000 quando Fernando Henrique Cardoso ainda presidia o país. O desafio de Bolsonaro é tirar do papel mais do que o pouco que dele saiu até aqui. O combate à violência e a retomada do crescimento econômico definirão a sorte do próximo governo.

Lição a pais de garotos

Sem privilégios

A caminho do Brasil para assistir à posse do presidente eleito Jair Bolsonaro, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, traz com ele a mulher, Sara, e também Yair, seu filho de 23 anos, estudante da Universidade Habraica de Jerusalém.

Antes de embarcar, Benjamin divulgou uma nota onde afirma que todas as despesas do filho durante a viagem, inclusive a passagem, serão pagas pela família. As despesas de Sara correrão por conta do tesouro de Israel como manda a lei.

Filho de chefe de Estado, por lá, mas não só em Israel, não pode dar-se ao luxo de viajar a custa do contribuinte. De resto, o clã Netanyahu já enfrenta uma série de problemas para ter que arranjar mais um.

Sara responde a processo por uso indevido de fundos do Estado para pagar por refeições. Benjamim, por ter embolsado cerca de 1,018 milhão de reais em presentes de luxo que recebeu, mas não declarou.

Brasil, novo laboratório da extrema direita

O modelo neoliberal colocado em prática no Chile após o golpe militar de 1973 nos dá um panorama do que pode ocorrer no Brasil em um futuro governo de Jair Bolsonaro. E isso não é casual

Por Joana Salém e Rejane Hoelever / Le Monde Diplomatique:

Ainda impactados pelos resultados eleitorais no Brasil, muitos se perguntam como a avalanche de votos na candidatura de Jair Bolsonaro e do general Hamilton Mourão (PSL) ocorreu e o que exatamente pode acontecer em um governo de extrema direita no país. Ainda estamos longe de ter as respostas, mas as conexões entre seu principal guru econômico, o empresário Paulo Guedes, e a ditadura de Augusto Pinochet no Chile (1973-1990) nos trazem pistas valiosas sobre o modelo subjacente à sua plataforma.

Paulo Roberto Nunes Guedes, de 69 anos, era até há pouco quase desconhecido do público. Embora fosse colunista da revista Época e do Globoe fundador do Instituto Millenium, sua trajetória perfilada pela repórter Malu Gaspar mostrou que Guedes se manteve por décadas isolado do mainstream: rechaçou todos os planos econômicos e ministros da Fazenda que ocuparam a Esplanada nos últimos 35 anos, de José Sarney a Dilma Rousseff.1 Lendo alguns de seus artigos, fica claro o porquê. O economista demonstra aversão ao pacto social expresso na Constituição de 1988, que se interpõe como um obstáculo ao seu projeto político. Para ele, o Brasil sofre de uma “maldição dirigista”, que obstrui o “irreversível processo evolucionário […] rumo à Grande Sociedade Aberta” [sic].2

No Dia dos Trabalhadores de 2017, Guedes escreveu: “a direita hegemônica governou por duas décadas, e a esquerda hegemônica por três, ambas com um modelo econômico dirigista, desastroso”.3 Em sua mente, os trinta anos de democracia brasileira, com Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma, fazem parte da mesma “hegemonia de esquerda”. Diante de tal tábula rasa, não é difícil depreender suas preferências políticas. Se o sistema de direitos sociais garantidos na Constituição de 1988 chegou até o presente, pelo menos no papel, Guedes faz parte do grupo que pretende exterminá-lo, surfando na onda autoritária de Bolsonaro. Isso significa radicalizar a destruição do pacto democrático. Mas como?

De Chicago para o Chile
Guedes doutorou-se em Economia na Universidade de Chicago em 1978, um centro da corrente austro-americana do neoliberalismo, onde figuras como Milton Friedman já eram proeminentes.4 Como lembra o próprio Friedman no livro Liberdade de escolha, eram tempos em que seus “apóstolos” estavam “pregando no deserto”. Forjada em Chicago, a visão econômica extremista de Guedes não encontrou representatividade suficiente no Brasil até agora. Mas o contrário ocorreu no Chile. Primeiro laboratório da “doutrina do choque”, como Naomi Klein5 designou o processo resultante da aliança Friedman-Pinochet, lá os correligionários de Guedes encontraram pares perfeitos para seu plano econômico após 11 de setembro de 1973: o militarismo e o fascismo chilenos prometiam ao mesmo tempo repressão e “inovação”.

Vem da ditadura de Pinochet a inspiração das recentes propostas de Guedes para previdência e educação, alicerçadas na ideia de um “Estado subsidiário”. Antitética em muitos aspectos à Constituição brasileira de 1988, a Constituição chilena de 1980 foi imposta pela ditadura e preservada até hoje. Ao contrário do Estado garantidor de direitos, o Estado subsidiário chileno é desresponsabilizado de promover bem-estar e convertido em fiador da expansão dos mercados, o que ocorre por meio de transferências volumosas de recursos públicos ao setor privado e de um perverso endividamento popular.

Sob governo de centro-esquerda, economia uruguaia cresce há 15 anos

País é oásis estável em meio a crises nos vizinhos, mas aliança governista tem desafio de renovação

Sylvia Colombo | Folha de S. Paulo

MONTEVIDÉU - Foi-se o tempo em que, se a Argentina ou o Brasil espirravam, o Uruguai ficava gripado. Neste 2018 completam-se 15 anos de crescimento ininterrupto do pequeno país, que corresponde, no imaginário internacional, a um pequeno paraíso à beira do rio da Prata, e que, na economia, encontrou uma trilha de crescimento que não se afeta mais com as tempestades que possam ocorrer em seus gigantes vizinhos.

Neste 2018, o Uruguai terá crescido 3,4%, quando em 2017 o índice foi de 3,1% e a previsão do FMI para 2019, ano eleitoral, é de 3,1%. A inflação não passa de 7,5%, e a taxa de desemprego, de 6,8%.

O grito de independência ocorreu pós-2002, quando a grande crise políticoeconômica argentina de 2001 chegou do outro lado do rio da Prata, fazendo com que argentinos retirassem suas poupanças dos bancos uruguaios e, com isso, praticamente quebrassem o sistema bancário local. O país conheceu a pobreza e a recessão, mas também colocou seus burocratas e economistas para trabalhar.

Os partidos tradicionais —o Nacional e o Colorado— caíram em desgraça, dando lugar à experiência inédita da Frente Ampla, que reunia grupos de centro-esquerda, os socialistas e o braço político da guerrilha urbana tupamaros. Não foi um cenário róseo o que encontrou o então presidente Tabaré Vázquez, eleito por essa coalizão, quando iniciou seu governo em 2005 —Vázquez foi eleito para um segundo mandato em 2014, sucedendo José “Pepe” Mujica.

A situação ainda era tão incerta que um de seus slogans de campanha era nada menos que a seguinte frase: “O Uruguai é um país possível”.

Isso logo se mostrou verdade. E hoje parece até mais possível, em linhas gerais, do que o Brasil, que sofreu a mais dura recessão de sua história nos últimos anos, e que a Argentina, agora em recessão, tomando uma dívida milionária do FMI e entrando num incerto 2019.

Divisões políticas na Europa

Liberais enfrentarão conservadores nacionalistas nos 27 países

Por Tony Barber* | Valor Econômico

Na Europa, 2019 será um ano de conflitos entre as forças pró-União Europeia (UE), do internacionalismo progressista, e as de reação nativista e eurocéticas. O principal campo de batalha será as eleições para o Parlamento Europeu, a serem realizadas em 27 de maio em 27 países. Esses prognósticos, frequentemente ventilados em Bruxelas e nos círculos liberais da Europa Ocidental, não estão necessariamente muito errados.

Pois é verdade que Emmanuel Macron, o presidente liberal francês que defende a integração europeia, é talhado de um tecido político diferente do de Viktor Orbán, o premiê nacionalista e conservador da Hungria. Se Orbán e aqueles de convicções políticas similares se saírem bem nas eleições da UE, eles poderão exercer influência suficiente para sabotar, de dentro do parlamento, a Comissão Europeia e outros organismos, a visão de Macron para a Europa.

É uma intensa disputa ideológica, identitária e sobre o futuro da UE. Mesmo assim, alguns desses europeus ocidentais apresentam o conflito em termos geográficos simplificados demais: um duelo entre os liberais virtuosos e de mente aberta em sua metade do continente, e os reacionários ignorantes e antidemocráticos no leste.

A realidade é mais complicada e menos agradável para os europeus ocidentais. Em primeiro lugar, porque o conceito de uma Europa dividida em duas metades é uma distorção intelectual da era da Guerra Fria. Crianças educadas entre o fim da década de 1940 e 1989 aprenderam um mapa mental da Europa em que grades de prisões e torres de vigilância dividiam o Ocidente livre e próspero do Leste comunista e pobre. Uma metade da Europa era iluminada, a outra era escura.

Esse mapa não tinha espaço para os fatos geográficos e políticos que desacreditavam suas generalidades cruas. Praga, que fica a oeste de Viena, era de fato uma cidade "oriental"? De que maneira Atenas, que fica ao sul de Tirana, era "ocidental"? Grécia, Portugal e Espanha ficavam no campo ocidental liderado pelos Estados Unidos, mas foram ditaduras de direita durante uma parte dessa era. Enquanto isso, os dissidentes pró-democracia da Checoslováquia, Hungria e Polônia exibiam um entendimento mais profundo dos direitos humanos e da liberdade política do que muitos ativistas anti-establishment ocidentais.

O 'Oeste' e o 'Leste' da Europa não são opostos polares. Todas sociedades europeias sofrem com segmentações parecidas, em especial a grande diferença política e cultural entre as áreas metropolitanas liberais e as mais conservadoras comunidades rurais e cidades menores

Quase 30 anos após o fim do comunismo, o mito de uma Europa binária teimosamente se recusa a morrer. Alguns europeus ocidentais o mantém vivo para justificar propostas para uma União Europeia dualista ou de múltiplas camadas. Sua região formaria um grupo superior e mais integrado, enquanto que o "leste", ou a maior parte dele, ficaria numa classificação inferior. O desvio recente da Hungria, Polônia e Romênia das normas democráticas e do Estado de direito, juntamente com as rixas sobre as políticas de migração e para os refugiados, servem de desculpa perfeita para esses planos. No entanto, em relação aos valores liberais e a concretização das políticas da UE, não há uma linha divisória clara entre o "Oeste" e o "Leste" da Europa.

Ainda exorbitantes: Editorial | Folha de S. Paulo

Mercado de crédito mostra expansão no ano, mas juros bancários continuam uma anomalia do país

Em consonância com a maior parte dos indicadores, os números do mercado de crédito sugerem que o crescimento da economia tende a ganhar maior ímpeto em 2019.

O estoque dos financiamentos subiu 4,4% ao longo dos 12 meses encerrados em novembro, a maior alta desde fevereiro de 2016. Mais importante, as novas concessões, que proporcionam uma leitura mais precisa da procura, cresceram 11,3% no mesmo período.

Tal aceleração ocorreu especialmente nos últimos meses, e talvez o aumento recente da confiança de famílias e empresas já se reflita em maior demanda.

Os bancos, por seu turno, também parecem menos arredios. Depois de quase quatro anos de retração, as maiores instituições privadas enfim mostram disposição de ampliar suas carteiras.

A redução da inadimplência e a percepção —correta ou não— de que o novo governo abraçará a agenda de ajuste das finanças públicas impulsionam o otimismo.

Quando todos ganham: Editorial | O Estado de S. Paulo

Entre as iniciativas do Estado de São Paulo para desenvolver sua economia, uma das mais importantes – mas que é pouco conhecida do grande público – foi a criação do Fundo de Inovação Paulista, que investe capital de risco em empresas recém-criadas com o objetivo de criar produtos e modelos de negócios. Conhecidas como startups, elas operam em condições de incerteza com base num produto, serviço, processo ou plataforma vinculada a uma tecnologia ainda em fase de desenvolvimento e de pesquisas de mercado.

Lançado em 2013 e com data para encerrar suas atividades, prevista para 2021, o Fundo é iniciativa conjunta do poder público e da iniciativa privada. Seu capital provém de entidades de apoio à inovação científica e tecnológica, como a Desenvolve SP; a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp); a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação; o Banco de Desenvolvimento da América Latina; o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae); e uma gestora de fundos privados, a Jive Investments.

Em seus primeiros anos de funcionamento, o Fundo recebeu e analisou cerca de 1,6 mil propostas e selecionou 20 para investir. Em média, ele controla 35% do capital desses empreendimentos. A ideia é que sejam estimulados a crescer para que, mais tarde, o Fundo possa vender sua participação com lucro. O objetivo é que, em 2021, os R$ 105 milhões investidos entre 2017 e 2018 propiciem um retorno de R$ 420 milhões.

Queiroz precisa contar tudo ao Ministério Público: Editorial | O Globo:

Ex-assessor de Flávio Bolsonaro nada esclarece sobre dinheiro e ainda cria mais dúvidas

Desde a revelação pelo jornal “O Estado de S.Paulo”, há 20 dias, de que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf ) detectara uma movimentação financeira na conta do policial militar Fabrício de Queiroz incompatível com sua condição de assessor parlamentar do deputado estadual Flávio Bolsonaro (PSL), o assunto continua envolto em névoas.

Por se relacionar, de alguma maneira, a um dos filhos do presidente eleito, Jair Bolsonaro, o caso ganhou inevitável importância. Depois, soube-se, pela “Folha de S.Paulo”, que a informação constava de um relatório amplo produzido pelo Coaf sobre saques e depósitos feitos entre 75 funcionários de gabinetes de 20 deputados, e se destinara a ajudar nas investigações sobre corrupção na Alerj deflagradas pelo Ministério Público, pela Operação Furna da Onça.

O que não seria atenuante para Queiroz, próximo à família Bolsonaro, nem para Flávio. Pois o que ficara evidente nos levantamentos do Coaf é que toda ou grande parte da circulação de dinheiro entre assessores de parlamentares explica-se pela reprovável cobrança que é feita em gabinetes, e também no Congresso, de uma espécie de pedágio a esses assessores, geralmente remunerados com salários bem acima dos pagos na iniciativa privada — uma característica deste tipo de serviço público.

Reforma da previdência será o batismo de fogo de Bolsonaro: Editorial | Valor Econômico

Nada mais sugestivo dos problemas que o presidente eleito Jair Bolsonaro enfrentará a partir de 1º de janeiro que a decisão que lhe foi repassada pelo atual presidente, Michel Temer: sancionar ou vetar a prorrogação dos incentivos para a Sudam (Norte) e Sudene (Nordeste), e sua extensão para a Sudeco (Centro-Oeste). Com a voto solitário contrário do deputado Delegado Waldir (PSL-GO), o projeto do presidente do Senado, Eunício de Oliveira (PMDB-CE) foi aprovado no apagar das luzes da legislatura, sob a ameaça de Eunício de não votar o Orçamento da União caso ele fosse vetado. Foi apenas uma das pautas-bombas aprovadas pelo Congresso que se vai e dá ideia dos hábitos e da irresponsabilidade com que deputados e senadores tratam o dinheiro público.

Como o Estado está falido e a principal desafio que Bolsonaro irá enfrentar é o de colocar ordem nas finanças públicas, o novo governo terá de aprovar seu programa de reformas sem ter de saída maioria a seu lado - e com a tradição perdulária do Congresso contra. Apesar do grande prestígio com que saiu das urnas, e as esperanças de dois terços dos entrevistados, segundo pesquisa Datafolha, de que irá fazer um bom governo, Jair Bolsonaro terá de escolher criteriosamente os projetos que são vitais e deixar os secundários para depois.

Miucha: O que será (Chico Buarque)

Bertolt Brecht (1898-1956): Aos que virão depois de nós

Tradução de Manuel Bandeira

Realmente, vivemos tempos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: “Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!”

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.

Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.