Se há poucas dúvidas sobre o desfecho, muitas são as indagações sobre o
pós-julgamento
Na medida em que o Supremo avança rumo ao desfecho que parece inexorável
para o julgamento da Ação Penal 470 — a condenação a penas pesadas de todos os
réus, exceto uns poucos coadjuvantes —, vão surgindo sinais de que a
radicalização política, ao invés de arrefecer, vai se intensificar depois do
julgamento. Não pode dar em boa coisa a combinação entre o escárnio exibido
pela oposição e o rancor, por ora contido, da militância petista, afora a mágoa
de outros feridos na batalha. Despontam também preocupações com as
consequências jurídicas da flexibilização de provas e garantias que o STF vem
praticando, abrindo caminho para uma anômala judicialização da política.
Com as indicações de um desfecho severo, cresce o júbilo de alguns segmentos
com o andar da carruagem, num arco que vai dos partidos adversários (PSDB, DEM
e PPS) ao anônimo cidadão indignado com a "roubalheira dos
políticos", passando pelos meios de comunicação. Mas talvez seja o
Ministério Público a instituição mais exultante com a dinâmica do julgamento,
na expectativa de que ele trará mudanças positivas para o combate à corrupção,
pondo fim à complacência do Judiciário. O presidente da Associação Nacional dos
Procuradores da República (ANPR), Alexandre Camanho, é um legítimo tradutor
dessa satisfação institucional. Diz ele:
"Acredito que este julgamento porá fim a 20 anos de indulgência do
Judiciário para com a corrupção. A Justiça é mais lenta que a sociedade e leva
um longo tempo para acolher o sentimental social sobre determinados assuntos.
Estamos felizes porque, finalmente, o STF ouviu o Ministério Público em vez de
brincar o jogo dos sete erros, como gostam de fazer os juízes."
Ele explica a comparação com o conhecido jogo de encontrar discrepâncias
entre desenhos quase iguais. Apresentada uma denúncia, os juízes passavam a
procurar falhas e erros formais, sempre secundários, para recusá-la. E há
também, diz ele, o jogo da "catianga": na mesa de truco, um jogador
sempre ganhava no grito dizendo essa palavra e puxando todas as cartas. Um
outro o imitou, gritou um "catianga", mas foi atropelado por um
berro: "Catianga real!". Blefou de novo e recolheu as cartas. Ou
seja, sempre que o Ministério Público decifrava o jogo, os juízes mudavam a
regra, mantendo a complacência. É compreensível a satisfação de procuradores
dedicados a combater o ilícito, enfrentando uma Justiça paquidérmica e
indiferente.
Receios com a nova ordem. Já não havendo dúvidas sobre a trilha do julgamento, preocupações com suas
consequências reúnem políticos, juristas e intelectuais, embora ainda pese a
inibição para externar críticas ao Supremo. O cientista político Wanderley
Guilherme segue em voo quase solo, questionando a heterodoxia do julgamento. Em
entrevista publicada na sexta-feira pelo jornal Valor econômico, ele garante:
"Não haverá, nunca mais, outro igual, porque esse é um julgamento de exceção,
que ignora o sistema eleitoral vigente e reage à democracia que criamos".
Os ministros, de fato, vêm revelando total desconhecimento (real ou
proposital, sabe-se lá) sobre o funcionamento do sistema político, a dinâmica
do Congresso e o processo legislativo, que guardam tão estreita relação com os
delitos que estão sendo julgados. Não buscaram conhecer, ou, pelo menos, não
explicitaram conhecimento a respeito do sistema eleitoral e do modelo de
financiamento das campanhas. Parecem ignorar que o presidencialismo brasileiro
exige a formação de coalizões, ainda que reunindo partidos ideologicamente
opostos. Que, na Câmara, a maioria absoluta é de 257 votos. Tendo apenas 151,
logo, um deficit de 106 votos, por que a coalizão governista comprou o apoio de
apenas sete não petistas? A discussão dessas questões lançaria mais luz sobre a
intrincada novela do mensalão, servindo, pelo menos, para separar do joio algum
trigo.
Se há poucas dúvidas sobre o desfecho, muitas são as indagações sobre o
pós-julgamento. Há receios com o impacto da nova jurisprudência que o STF está
criando, contraditória inclusive com votos passados de seu decano, Celso de
Mello, sobre as instâncias inferiores. Ela não abrirá caminho para a
"justiça do inimigo", principalmente lá no interior, onde juízes são
frequentemente alinhados com um grupo político local? A teoria do domínio do
fato, que já se diz, permitirá a condenação de José Dirceu, não será usada para
justificar perseguições? Daqui para a frente, os bancos delinquentes (e foram
tantos os delitos do setor nos últimos 20 anos) serão julgados com a mesma
severidade que o Banco Rural? Tratará o STF de demonstrar que não fez um
julgamento de exceção, aplicando a outros processos os mesmos procedimentos
usados na Ação Penal 470? Sobram indagações, mas, agora, poucos se preocupam
com o que virá. Poucos se expressam temendo ser patrulhados como
"defensores de mensaleiros". Um sinal de que a radicalização está
mesmo no horizonte.
A marcha. A temperatura subiu na semana passada, com a ofensiva da oposição, a nota
dos partidos governistas e a nota da presidente Dilma, corrigindo o voto do
relator Joaquim Barbosa quanto a declarações suas. Vai atingir fervura com o
julgamento de Delúbio, Genoino e Dirceu na semana eleitoral, a próxima.
Dispersão. O PSDB e o PT lideram as disputas, mas devem, ambos, conquistar menor número
de prefeituras de capitais. As pesquisas sugerem aumento da dispersão do poder
municipal entre um grande número de partidos. Pior para a reforma política, sem
a qual o STF ainda julgará mais mensalões.
Disputa. Na briga por votos, a questão é: o que vale mais perante o eleitor, os
indicadores de melhora na vida das famílias, trazidos pela Pnad, ou os
intestinos do mensalão, com narração de Joaquim Barbosa?
FONTE: CORREIO BRAZILIENSE