sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Reflexão do dia – Luiz Sergio Henriques

Certa feita, e já na velhice, o filósofo Georg Lukács se empenhou pessoalmente pela libertação de um ativista maoísta, indevidamente preso na Hungria (relativamente “liberal”) de János Kádár.
Ao filósofo, mesmo tão distante do maoísmo, não importou nenhuma consideração geopolítica que pudesse afetar o bloco do então chamado socialismo real e, com isso, servir de desculpa para o silêncio cúmplice: homens e mulheres livres protestam contra qualquer violação dos direitos humanos, em qualquer tempo e lugar. Marxistas capazes de pensar com a própria cabeça se incomodam profundamente quando o marxismo é transformado em ideologia de estado, que encobre e justifica crimes: porque assim ele, marxismo, torna-se um conceito desonrado e arrasta consigo para a infâmia a própria ideia de socialismo.

Pelas mesmas razões de Lukács, ao tomar conhecimento da morte de Orlando Zapata, prisioneiro de consciência pertencente à infeliz “primavera negra” de 2003, em Cuba, a nossa voz só pode ser a de protesto comovido em nome da universalidade dos direitos.

Os dirigentes cubanos mencionam, em sua defesa, a persistência do bloqueio americano e as torturas em Guantânamo. E estão certos nisso: o bloqueio é um anacronismo delirante, os presos no limbo de Guantânamo são uma herança maldita dos tempos de Bush, que cabe liquidar o quanto antes, com as devidas reparações. E relíquias da guerra fria devem ser tratadas como tal: fonte de esquizofrenia política, de um lado e de outro.

Quanto à morte por inanição de Zapata, só nos resta apelar retrospectivamente a Pietro Ingrao, reapresentando, intacto, o texto abaixo, escrito em abril de 2003, e subscrevendo inteiramente suas razões. Ingrao representa, tal como o velho Lukács no episódio que lembramos, as melhores tradições do comunismo histórico: uma das tradições a que não queremos renunciar


Luiz Sergio Henriques, editor do site Gramsci e o Brasil, na apresentação do artigo de Pietro Ingrao – ver mais abaixo)

Muita festa, pouca ação – Roberto Freire

DEU NO BRASIL ECONÔMICO

Fanfarronice, mentira, tapeação - o governo Lula se notabiliza por muitas coisas. Outra é a festança de inauguração do que logo encontra o esquecimento ou a falta de efetividade.

Foi assim com a Hemobrás, em Pernambuco, inaugurada com pompa e circunstância, ainda no primeiro mandato de seu governo e, para nosso infortúnio, até agora nada aconteceu - a não ser continuarmos gastando uma fortuna anualmente com hemoderivados, uma diretoria executiva e cargos de confiança da empresa que existe só no papel.

No caso particular da educação, fundamento básico de um processo sustentável de desenvolvimento econômico, somos informados pelo noticiário que, ao discursar na cerimônia que sancionou a lei de criação da Universidade Federal de IntegraçãoLatino-Americana, o ministro da Educação lembrou que o governo federal criou 13 novas instituições federais de ensino.

Todos sabemos que não é verdade: houve desmembramentos e divisões das já existentes, como, aliás, há muito se faz.

Recentemente, a imprensa noticiou um caso muito interessante. A Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, em Minas Gerais, inaugurada num evento que contou com a presença da ministra Dilma e discursos do sr. Lula da Silva apresentava a triste realidade de que, dos seus dez prédios previstos, apenas dois estavam prontos, mas sem água, refeitório, biblioteca e professores suficientes.

Ainda no campo educacional, se assim podemos dizer, na Universidade Federal do ABC, entre 2006 e 2009, em média, 42% dos estudantes abandonaram bacharelado em Ciência e Tecnologia, única forma de entrada nesta instituição até o ano passado. Com o agravante de que tais estudantes são "cotistas" que têm reservadas metade das vagas nos vestibulares.

Se fizermos um balanço de toda a estrutura da educação no país, a partir do ensino fundamental até o superior, e dos projetos voltados para a juventude que o governo tem alardeado como redentoras desse segmento - como o Programa Primeiro Emprego, por exemplo - , o que temos é a realidade de desamparo, violência e falta de perspectiva.

A juventude brasileira, de maneira geral, está cada vez mais despreparada educacional e profissionalmente, impossibilitada de garantir um futuro que a dignifique. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, divulgado em janeiro passado, mostra que entre 1987 e 2007, o desemprego entre jovens passou de 7% para 20%.

Do infindável processo de soluções mágicas que o governo Lula nos brinda, diariamente, com grandes festas e solenidades de inauguração realizada com dinheiro público e destinadas, primordialmente, a dar visibilidade à sua candidata - à revelia dos ditames da lei -, o que resta para nossa juventude é a certeza que, nesse processo, os serviços que não lhe são oferecidos tornam mais difícil a sua inserção no mundo do trabalho.

Até quando as novas gerações e o próprio país ficarão dependentes da mistificação, planejada exclusivamente em função de um projeto de poder? Será que teremos, um dia, de rezar para que aconteça o milagre da queda das escamas que velam os olhos da população?

Roberto Freire é presidente do PPS

Acordo Brasil-Irã:: Merval Pereira

DEU EM O GLOBO

O Gabinete de Segurança Institucional, subordinado diretamente à Presidência da República, começou uma série de consultas a órgãos ligados ao programa nuclear brasileiro para receber informações sobre que pontos poderiam servir de base para um eventual acordo com o Irã, a ser assinado na próxima visita do presidente Lula àquele país, em maio.

Se confirmado, esse acordo será mais um passo do governo brasileiro no sentido de blindar o governo iraniano, que vem sendo pressionado para submeter seu programa nuclear, que alegadamente existe para fins pacífico mas tem partes clandestinas, à supervisão da Agência Internacional de Energia Atômica.

O anúncio de que o país já estaria enriquecendo urânio a 20%, o que o torna potencialmente capaz de atingir os níveis necessários para a fabricação da bomba atômica, não foi suficiente para que o governo brasileiro participasse da pressão internacional, insistindo em que está conversando com o Irã para tentar uma saída negociada.

Mas o apoio ao governo de Ahmadinejad retira o Irã do isolamento internacional.

A aceitação de um fato consumado como o enriquecimento de urânio a 20% é explicado nos bastidores pelas autoridades brasileiras como sendo uma posição de autodefesa.

O Brasil já tem permissão de enriquecer urânio a até 20%. Aparentemente, o governo brasileiro não dá relevância ao fato de que o país tem autorização negociada com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) para esse nível de enriquecimento, enquanto o Irã está fazendo de maneira clandestina.

Nas instalações de Aramar, em São Paulo, se utiliza uma centrífuga especial para enriquecimento de urânio, que o governo brasileiro protege por ser uma técnica pioneira.

Desenvolvida pela Marinha, é chamada de “levitação magnética”, realizada em uma centrífuga fabricada com tecnologia nacional, que tem velocidade e produtividade maiores.

A inspeção internacional é feita através de amostragem, sem que os inspetores possam ver a centrífuga. É lá em São Paulo que será construído um reator de propulsão naval para o submarino nuclear, mas dificilmente o enriquecimento chegará ao limite de 20%.

Deverá ficar entre 7% e 10%, sendo que os estudos ainda estão em processo.

Em Resende, uma fábrica semi-industrial que deve produzir o urânio necessário para o funcionamento das três usinas nucleares de Angra, o nível de enriquecimento pode chegar a 5%, mas o prazo de licenciamento está chegando ao fim e terá que ser renegociado com a AIEA nos próximos meses.

Também em maio há a reunião internacional para a revisão do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), e a posição brasileira é de não assinar o protocolo adicional que está proposto.

Ele prevê inspeção sobre toda a área, e não apenas pontual, o que vai além das salvaguardas atuais, que são meramente contábeis: um inspetor da AIEA, em visitas sem aviso prévio, conta o urânio que entrou, e depois o que foi enriquecido, e sabe exatamente qual foi o grau de enriquecimento que houve.

O argumento brasileiro é que as salvaguardas existentes hoje são suficientes para estabelecer se o urânio está ou não sendo usado para fins pacíficos. Além do mais, temos dois regimes de salvaguardas, um com a Argentina e outro com a AIEA.

Há também uma proposta de um banco internacional de urânio enriquecido que seria usado por países com questões tão distintas quanto Brasil e Irã, o que não é aceito pelo governo brasileiro.

O fato é que o Brasil, além de ter assinado o TNP, incluiu na Constituição de 1988 a proibição de fabricação e uso de armas nucleares, e o governo, com toda razão, considera que essas evidências, e mais as inspeções contábeis, são suficientes para garantir que o programa brasileiro tem fins exclusivamente pacíficos.

Poucos países dominam a técnica de enriquecer urânio — EUA, Rússia, China, França, Alemanha, Holanda e Inglaterra —, e o Brasil está entre eles. Além do mais, temos hoje a sexta reserva de urânio do mundo com apenas 30% do solo brasileiro pesquisado. A potencialidade é de termos a segundo maior reser va de urânio em poucos anos, só atrás da Austrália.

O problema é que, depois da descoberta do programa nuclear secreto do Irã, a AIEA passou a ser mais rigorosa, exigindo que os países abram cada vez mais seus programas nucleares, especialmente instalações de enriquecimento nuclear com potencial de produzir material utilizável em artefatos nucleares.

Recentemente, já no governo Lula, houve um desentendimento sério entre as autoridades brasileiras e as da AIEA em relação à inspeção de Resende, na tentativa dos inspetores de ver as centrífugas, o que acabou sendo contornado sem que o Brasil precisasse se expor a uma espionagem industrial.

Houve também um quase incidente diplomático por causa de uma tese de doutorado de um aluno do Instituto Militar de Engenharia do Exército (IME), o físico Dalton Ellery Girão Barroso, que destrinchou com cálculos e equações informações consideradas sigilosas sobre uma ogiva nuclear americana.

A agência internacional sugeriu que esse estudo indicava que o país estaria fazendo pesquisas que levariam à bomba atômica, além de revelar segredos que poderiam ser usados por terroristas. O Ministério da Defesa teve que entrar no circuito diplomático para impedir que o livro fosse censurado, como queria a AIEA.

Todo esse cenário indica que uma aproximação cada vez maior do Brasil com o Irã pode trazer problemas para nossas pesquisas no campo nuclear, sem nenhuma vantagem em troca, a não ser uma discutível afirmação política internacional.

Os meios e as mensagens::Nelson Motta

DEU EM O GLOBO

Se é preciso democratizar as comunicações no Brasil, como quer o programa de governo do PT, é porque elas não são democráticas, concluiria o Conselheiro Acácio.

Mas aqui qualquer um pode abrir um jornal, uma rádio ou uma emissora de TV, dependendo de seus recursos para montar e manter o veículo.

E de sua capacidade de conquistar audiência.

Com a infinidade de canais que hoje o mundo digital oferece, é fácil para qualquer sindicato, ONG ou movimento social ter o seu canal de televisão.

O difícil é ter espectadores.

Na internet, ninguém precisa de nenhuma autorização, ou de muito dinheiro, para botar no ar sua rádio, jornal, revista ou televisão — basta ter competência e audiência. O que pode ser mais democrático do que isto? Não é por falta de democracia que as esquerdas não conseguem fazer um veiculo de massa de sucesso popular, mesmo com todas as verbas e a “vontade política” oficial. O último foi o “Pasquim”, menos por ser de esquerda do que por ridicularizar a ditadura que oprimia a todos.

Alguém duvida que a Globo, a Record, a Band, a Rede TV e o SBT disputam cada centavo do mercado, cobrando por cada espectador conquistado? Dezenas de canais a cabo não competem ferozmente por assinantes e anunciantes? Os jornais não estão disputando leitores nas bancas e on-line? Não há livre concorrência? Então que monopólio é esse que eles querem acabar? Por que ninguém vê a TV Brasil? Por que “A Voz Operária” é menos lida do que “O Estado de S. Paulo”? Por que a “Carta Capital” só tem uma fração dos leitores da “Veja”? Não se trata de quem é melhor ou pior, é só uma livre escolha do público.

E nas escolhas democráticas, às vezes, a maioria está errada, mas o que fazer, acabar com a democracia? Ou com a maioria? Quem sabe, com o tempo e mais governos petistas, os brasileiros ganhem educação, consciência política e bom gosto e façam da “Voz Operária”, da TV Brasil e da “Carta Capital” campeões de audiência ? Já em Cuba, na Coreia do Norte, na Venezuela e no Irã, quem falar em democratizar as comunicações vai preso.

Porque lá elas já estão democratizadas, concluiria o Conselheiro.

Nelson Motta é jornalista.

A alegria e a fraternidade não foram perdidas:: Luiz Carlos Bresser-Pereira

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Gildo Marçal Brandão, um estudioso do Brasil e da teoria política, sempre foi um homem comprometido com o Brasil e seu povo

Os amigos nos enganam. Morrem de repente, sem aviso nem necessidade. Privam-nos de uma companhia que nos foi tão agradável e enriquecedora. Uma injustiça para os seus mais próximos e para os amigos como eu, que receberam com enorme tristeza a notícia da morte de Gildo Marçal Brandão.

Um colega cientista político. Um estudioso do Brasil e da teoria política. Um professor de ciência política da USP de cuja banca de professor titular tive a honra e a alegria de participar. Um homem sempre comprometido com o Brasil e seu povo.

Conheci mais de perto Gildo quando, em 2001 e 2002, dei curso de teoria política da democracia na USP, em companhia de Cicero Araujo -um grande amigo seu.

Naquele momento eu estava voltando para minhas origens nacionalistas e desenvolvimentistas -origens que os então dominantes anos neoliberais do capitalismo haviam tentado apagar- e encontrei em Gildo, ainda que bem mais moço do que eu, um irmão. Um homem intelectual sempre pensando o desenvolvimento econômico, político e social do Brasil.

Um militante de esquerda que sobreviveu aos ataques da direita neoliberal sem para isso precisar aderir a teses irresponsáveis da esquerda radical.

Gildo sempre foi comunista -um comunista da velha cepa, socialista republicano e reformista. Enquanto desde a juventude ele adotou esse partido, eu, nessa mesma fase da vida, pertenci à Ação Católica de Alceu Amoroso Lima e Franco Montoro e, depois, me associei às ideias nacionalistas e desenvolvimentistas do Iseb.

Nessa época -nos anos 1950, mais precisamente no congresso do Partido Comunista de 1958, conforme relatou Gildo em seu livro clássico sobre o Partido Comunista Brasileiro ("A Esquerda Positiva: As Duas Almas do Partido Comunista", 1997)-, o partido decidiu abandonar a ideia de revolução e adotar a tese da revolução capitalista como requisito para uma posterior revolução socialista. Esse fato naturalmente nos aproximava.

Como também o a convicção de Gildo de que, apesar de egoístas, os homens também podem ser solidários. O projeto brasileiro não pode ser apenas democrático, precisa ser também social e nacional. A inserção do Brasil no cenário global não se faz pela submissão aos países ricos, mas pela construção entre nós de uma sociedade mais justa e pela competição bem-sucedida com os países mais desenvolvidos.

Gildo soube criticar os desvios da União Soviética e abandonou a ideia de revolução.

Esperava que o desenvolvimento econômico nacional conduzido por uma coalizão política desenvolvimentista e reformista abriria o caminho do Brasil para uma sociedade menos desigual ou mais justa. Para isso era necessário que ocorresse desenvolvimento nacional.

Estudando as interpretações do Brasil, ou "Linhagens do Pensamento Político Brasileiro" (2007), Gildo redescobriu Oliveira Vianna -o grande intérprete nacionalista do Brasil que a escola de sociologia de São Paulo, dominante nos anos 1970 e 1980, rejeitara porque o grande sociólogo havia se identificado com o governo nacionalista e desenvolvimentista de Getúlio Vargas. Ainda que fizesse parte do Departamento de Ciência Política da USP, que, em princípio, seria o herdeiro do pensamento dependentista daquela escola, Gildo soube reconhecer a importância da construção da nação na obra de grandes pensadores do Brasil, como Vianna, Gilberto Freyre e Celso Furtado.

Gildo Marçal Brandão era um grande professor. Seus alunos são testemunhas do que afirmo.

Ensinava a teoria política e as interpretações do Brasil com a abertura de pensamento e a disposição para o debate que são próprias dos espíritos elevados e realmente democráticos.

Gildo era um agitador de ideias -estava sempre convocando a todos para pensar com ele.

Era um integrador -acreditava que por meio da comunicação e do debate era possível avançar as ideias e as políticas públicas. E era um administrador de ideias e de pessoas -dirigindo com discernimento a Anpocs, desempenhando o papel de editor da "Revista Brasileira de Ciências Sociais".

E tudo isso Gildo fazia com suavidade e gentileza. Parecia não ter pressa, parecia estar sempre à disposição dos outros. Tinha sempre uma palavra amável e um bom sorriso para aqueles que dele se aproximavam. E a disposição para cooperar. Por isso tinha tantos amigos. Por isso todos nós nos sentimos traídos por ele quando nos deixou. Agora não temos alternativa senão lembrar dele com saudade -e também com alegria. Nós o perdemos, mas a alegria e a fraternidade que ele irradiava não foram perdidas.

Luiz Carlos Bresser-Pereira , 75, professor emérito da FGV-SP, é colunista do caderno Dinheiro . Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney). É autor de, entre outras obras, "Desenvolvimento e Crise no Brasil" (Editora 34).

À memória de Gildo Marçal Brandão::Amílcar Salas Oroño & Patricio Tierno

DEU NO GRAMSCI E O BRASIL

Morreu um homem. Atingido pelo destino trágico que a todos iguala, realizou o costume humano mais antigo: a morte. Morreu uma voz. Qualidade genérica da pessoa humana que a cada um distingue e faz a palavra intransferível e singular: o discurso.

Nós o conhecemos quando já era um professor e pesquisador consumado, ou, como se diz, um intelectual maduro, e pouco sabemos dele que não sejam os traços básicos da sua biografia ou bem algumas histórias soltas que alguma vez nos contou e que nos pareceram tão reveladoras como sua mesma presença e sua conversa. Cremos, no entanto, poder rememorar algumas coisas que foram e seguem sendo suas, agora de todos nós, e entrever nelas o que poderíamos denominar um legado.

Primeiramente, uma atitude perante o mundo, uma grande predisposição para a luta e uma intensa energia vital ou intelectual, que para o caso são algo único. Essa atitude se traduziu, no princípio, numa prática e, depois, numa prática teórica, ou teorizada, síntese modelar da sempre difícil articulação entre a teoria e a práxis.

Em segundo lugar, cabe lembrar uma doutrina, uma interpretação material e espiritual da vida, que foi se processando ao longo de uma trajetória e que se plasmou, finalmente, num autêntico e belíssimo programa de pesquisa. Tal programa, núcleo desse legado, é hoje não só um imperativo e um ditado, mas também um cânon de leitura e integral chave de compreensão do pensamento político e social do Brasil e, por extensão, de toda forma de pensamento associada à nossa condição latino-americana e periférica.

Aliás, em terceiro e último termo, sua obra, sua criatura intelectual e moral, torna-se por tudo isso universal e vasta, pois nesse credo habitou o que há em todo mestre e em toda inteligência prístina e polêmica, a saber, a política. Como Platão, que desconfiou das falsas verdades estabelecidas, Gildo professou o olhar crítico da realidade social múltipla e os modos não reducionistas de explicá-la e abrangê-la, a visão teórica de conjunto como pressuposto necessário para a ação política, a qual deveria no momento derradeiro conduzir à transformação almejada, a bem dizer, à revolução (ou, como ele mesmo diria, à “revolução de longo alento”) ancorada na história e na captação de sua complexidade certa.

Todo autor cria seus precursores, afirmou Borges. Nesta ocasião, a máxima resulta parcial e curta. Com Gildo, haveria que observar por igual: o autor criou seus continuadores. Deixou, para todos nós, a iniludível tarefa de prosseguir o estudo, os livros, os trabalhos e os dias que constituem uma vida. Será quase impossível fazê-lo tão bem, tão lúcida e organizadamente, o que não obsta que tentemos e queiramos desse modo.

E, a título pessoal, apesar desse seu obrar inabarcável que antes referimos, gostaríamos tão somente de pensar, como de fato aconteceu, que ele muito teve a ver com nossa sorte, nossa formação e nosso destino acadêmico, de maneira análoga à invenção das Linhagens e à comunhão dos que participamos de seus projetos, singraduras que em segredo construiu traçando um rumo institucional e programático. Vista nessa perspectiva, sua obra fica assim tão concluída como inacabada, tão aberta como perfeita em seu sólido arcabouço.

Obrigado, Gildo. Obrigado por tanta práxis, por tanta teoria, por tanto Hegel, por tanto Marx. Obrigado pelos sinais e pelos gestos sutis e humanos, indicações para nosso percurso futuro, que em essência ignoramos, mas cujo oculto plano agora intuímos ou entendemos acaso melhor. Teus trabalhos e teus dias estão feitos. Tua aposta teórico-prática, viva e perdurável. O que resta, os detalhes, as realizações menores correrão por nossa conta. E o resto é política, o resto é teoria. Descanse em paz.

Buenos Aires, fevereiro de 2010.

"Lost" :: Fernando de Barros e Silva

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Repare, leitor, nas três cenas seguintes:

1. Franklin Martins exibe um sorriso orgulhoso e abraça Fidel Castro, posando para que o próprio Lula os fotografasse juntos;

2. Irritado com a imprensa, Lula nega ter recebido apelos de grupos defensores dos direitos humanos para que intercedesse em favor do preso político Orlando Zapata: "Se essas pessoas tivessem falado comigo antes, eu teria pedido para ele parar a greve de fome e quem sabe teria evitado que morresse";

3. Comentando o caso, o assessor de Lula para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, diz: "Há problemas de direitos humanos no mundo inteiro".

Franklin sorri, Lula engambela e Garcia avacalha. A morte do pedreiro Orlando Zapata, condenado a mais de 25 anos de prisão por discordar do regime, carimba de vergonha o passaporte da comitiva brasileira. Viajando com evidente disposição de render homenagens ao ditador e usufruir os dias finais da Disneylândia socialista, o governo Lula se omitiu alegremente, para depois tripudiar sobre o cadáver quando a realidade o emparedou.

Da tolerância com os desmandos do regime à idolatria pela figura de Fidel, subsiste no governo brasileiro (e amplamente na esquerda nativa) a "mitologia do bom tirano" -expressão do filósofo Ruy Fausto.

Em 2003, a onda de repressão aos dissidentes resultou no fuzilamento de três pessoas e em outras várias condenações à prisão perpétua. É isso o que está em jogo novamente. Para quem defende de fato os direitos humanos, pouco importa que a nomenclatura no poder há 50 anos tenha origem numa revolução feita em nome de ideais igualitários. Ela não é menos criminosa por isso.

Marco Aurélio Garcia não gosta dos seriados de TV americanos -"esterco cultural", ele disse.

Mas é capaz de baratear os direitos humanos para não atrapalhar a estadia na ilha de "Lost".

No congresso do PT, ele já havia dito (e Dilma Rousseff repetiu): "Não aceitamos lições de liberdade de quem não tem compromisso com ela". Bingo, Garcia!

Do lado dos perpetradores - Editorial

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

São de um cinismo deslavado os comentários do presidente Lula sobre a morte do ativista cubano Orlando Zapata Tamayo, ocorrida horas antes de sua quarta visita à ilha desde que assumiu o governo. Tamayo, um pedreiro de 42 anos, foi um dos 75 dissidentes condenados em 2003 a até 28 anos de prisão. Inicialmente, a sua pena foi fixada em 3 anos. Depois, elevada a 25 anos e 6 meses por delitos como "desacato", "desordem pública" e "resistência". Embora não fosse um membro destacado do movimento de direitos humanos em Cuba, a Anistia Internacional o incluiu na sua lista de "prisioneiros de consciência" ? vítimas adotadas pela organização por terem sido detidas apenas por suas ideias. Em dezembro, Tamayo iniciou a greve de fome por melhores condições para os 200 presos políticos do regime, da qual morreria 85 dias depois.

Lula conseguiu superar o ditador Raúl Castro em matéria de cinismo e escárnio. Este disse que Tamayo "foi levado aos nossos melhores hospitais". Na realidade, só na semana passada, já semi-inconsciente, transferiram-no do presídio de segurança máxima de Camaguey para Havana. E só na segunda-feira foi hospitalizado. O desfecho foi tudo menos uma surpresa para os seus algozes. Dias antes, autoridades espanholas haviam manifestado a sua preocupação com a situação de Tamayo, numa reunião sobre direitos humanos com enviados de Cuba. Ele morreu porque o deixaram morrer. Poderiam, mas não quiseram, alimentá-lo por via endovenosa. "Foi um assassínio com roupagem judicial", resumiu Elizardo Sánchez, líder da ilegal, mas tolerada, Comissão Cubana de Direitos Humanos.

Já Lula como que culpou Tamayo por sua morte. Quando finalmente concordou em falar do assunto, sem disfarçar a irritação, o autointitulado condutor da "hiperdemocracia" brasileira e promulgador recente do Programa Nacional de Direitos Humanos, disse lamentar profundamente "que uma pessoa se deixe morrer por uma greve de fome", lembrando que se opunha a esse tipo de protesto a que já tinha recorrido (quando, ainda sindicalista, foi preso pelo regime militar). Nenhuma palavra, portanto, sobre o que levou o dissidente a essa atitude temerária: nada sobre o seu encarceramento por delito de opinião, nada sobre as condições a que são submetidos os opositores do regime, nada sobre o fato de ser Cuba o único país das Américas com presos políticos. Nenhum gesto de desaprovação à violência de uma tirania.

Pensando bem, por que haveria ele de turvar a sua fraternal amizade com os compañeros Fidel e Raúl, aborrecendo-os com esses detalhes? Ao seu lado, Raúl acabara de pedir aos jornalistas que "os deixassem tranquilos, desenvolvendo normalmente nossas atividades". Lula atendia ao pedido. Afinal, como observara o seu assessor internacional Marco Aurélio Garcia, "há problemas de direitos humanos no mundo inteiro". Mas Lula ainda chamou de mentirosos os 50 presos políticos que lhe escreveram no domingo para alertá-lo da gravidade do estado de saúde de Tamayo e para pedir que intercedesse pela libertação deles todos. Quem sabe imaginaram, ingenuamente ou em desespero de causa, que o brasileiro pudesse ser "a voz em defesa da proteção da vida aos cubanos", como diria o religioso Dagoberto Valdés, um dos poucos opositores da ditadura ainda em liberdade na ilha.

Lula negou ter recebido a correspondência. "As pessoas precisam parar com o hábito de fazer cartas, guardarem para si e depois dizerem que mandaram para os outros", reclamou.

E, com um toque de requinte no próprio cinismo, concluiu: "Se essas pessoas tivessem falado comigo antes, eu teria pedido para ele parar a greve e quem sabe teria evitado que ele morresse." À parte a falta de solidariedade humana elementar que as suas palavras escancararam ? ele disse que pode ser acusado de tudo, menos disso ?, a coincidência da visita de Lula com a tragédia de Tamayo o deixou exposto aos olhos do mundo ? e não exatamente da forma que tanto o envaidece.

A morte de um "prisioneiro de consciência", a afirmação de sua mãe de que ele foi torturado e o surto repressivo que se seguiu ? com a detenção de dezenas de cubanos para impedir que comparecessem ao enterro do dissidente no seu vilarejo natal ? transformam um episódio já de si sórdido em um escândalo internacional. Dele, Lula participa pela confraternização com os perpetradores de um crime continuado que já dura 51 anos.

Vai passar - Chico Buarque

Duas faces - Editorial

DEU EM O GLOBO

O presidente Lula teve, em sua quarta visita a Cuba, um teste importante para seu elogiado papel de líder emergente de um país que cresce em prestígio e importância no cenário internacional. E foi reprovado.

A trágica morte de um preso político cubano — por crime de opinião —, em greve de fome, coincidindo com a chegada de Lula a Havana, não foi capaz de desviálo, um milímetro sequer, de seu curso de apoio à ditadura castrista, nem de inibir fotos sorridentes com os irmãos Castro, num cinismo que tanto deixa mal o presidente — e sua imagem de líder preocupado com as questões sociais, mas economicamente responsável —, quanto o país que representa. Ainda mais quando se está ao lado de Raúl Castro, no momento em que este dá fantasiosa explicação para a morte de Orlando Zapata Tamayo: a culpa é dos Estados Unidos (!).

O desempenho de Lula tem tido aprovação ampla interna e externamente, mas ele derrapa com frequência na diplomacia, ao refletir (ou concordar com) as ideias de um grupo dentro do governo que vê as relações internacionais com olhos da Guerra Fria e do conflito Norte-Sul. Com isso, o Brasil deixa de usar seu peso crescente na América Latina para promover a democracia — a qual consta, aliás, dos estatutos do Mercosul. Faz o contrário: protege ditadores e caudilhos, como os irmãos Castro e Hugo Chávez. É uma política de duas faces: na crise de Honduras, a diplomacia brasileira se aferrou ao mais estrito legalismo, renunciando à flexibilidade na busca de soluções; mas, no caso cubano, não faz qualquer observação crítica ao fato de o regime da ilha ser uma ditadura stalinista que ainda mata dissidentes políticos. Enquanto, no plano interno, divulga com estardalhaço um plano de defesa dos direitos humanos, externamente se alia a quem desrespeita os mais óbvios desses direitos, como a defesa da vida e da liberdade de expressão.

O respeitado jornal espanhol “El Pais”, em editorial, afirmou ontem: “Com esta visita a Havana, Lula tem a oportunidade de demonstrar que o papel internacional crescente do Brasil não significa sacrificar o principal capital político que ele tem colhido: a opção por uma esquerda capaz de oferecer progresso e bemestar mediante o fortalecimento e a gestão das instituições e dos procedimentos democráticos.” A oportunidade foi perdida. Por conveniências ideológicas, Lula queima parte do capital que acumulou para se credenciar a líder regional capaz de mediar situações difíceis. Aliado intransigente dos Castro e de Chávez, como ficou claro, deixa de ter independência para tal. Num plano mais amplo, ocorre o mesmo ao se deixar usar pelo Irã da ditadura militar e teocrática. Melancólico.

Ilha presídio:: Miriam Leitão

DEU EM O GLOBO

Foi constrangedor ver a cena do presidente Lula e seus assessores rindo do lado dos Castros de Cuba, enquanto o governo cubano prendia os amigos de Orlando Zapata que tentavam comparecer ao enterro.

A mãe de Zapata disse que ele era torturado sistematicamente; o desespero foi tal que ele ficou 84 dias sem comer. E lá estava o nosso presidente sorrindo e brincando com os ditadores.


Tenho dito aqui que concordo com a necessidade de se apurar as torturas e mortes de opositores durante a ditadura brasileira, mas o governo fica sem moral para defender que, no Brasil, os militares que torturaram e mataram sejam punidos, se aceita se confraternizar com quem tortura e mata integrantes da oposição em Cuba.

Os detalhes da morte de Orlando Zapata Tamayo lembram os piores regimes.

A casa dele, onde o corpo foi velado, ficou cercado de seguranças.

Pessoas tentavam chegar perto do livro de condolências e não conseguiam.

Alguns amigos dele permanecem presos só por querer ir ao enterro.

A mãe, Reina Zapata, disse que o filho era “prisioneiro de consciência” e pediu que o mundo cerre fileiras em defesa dos outros prisioneiros políticos de Cuba. Ou o governo Lula acha normal a tortura e a morte de dissidentes, e aí tem que abonar o passado brasileiro, ou então tem que declarar sua defesa aos direitos humanos dos cubanos.

E que não se diga que isso é assunto interno dos cubanos, porque terá que dizer que a queda de Manuel Zelaya era um assunto dos hondurenhos.

Em Honduras, o governo brasileiro ficou desde o primeiro momento contra o golpe. Nisso estava certo, mas exagerou quando permitiu que a embaixada fosse usada como aparelho político.

Parecia um governo disposto a ir às últimas consequências para defender os princípios democráticos.

Até hoje não reconhece o governo que foi escolhido pelos hondurenhos no voto, alegando que a eleição não foi legítima, ainda que não tenha sido constatada nenhuma irregularidade.

A resposta do presidente Lula em Havana foi toda inadequada. Ele disse não ter recebido a carta do dissidente em greve de fome, mas que se recebesse tentaria demovê-lo do protesto.

Ora, um preso de consciência em regime ditatorial às vezes nada pode fazer a não ser apelar para a última forma de manifestação que lhe resta.

Raúl Castro mentiu descaradamente.

“Em meio século, aqui não assassinamos ninguém. Aqui ninguém foi torturado. Aqui não houve nenhuma execução extrajudicial.” Para acreditar nisso é preciso ser um E.T. que acaba de desembarcar no planeta.

Em 2003, quando vários dissidentes foram executados, o então embaixador brasileiro no país Tilden Santiago disse que o governo cubano tinha “o direito de se defender” e mais não falou, alegando que era constrangedor criticar alguém “da família”. Assim o governo Lula se sente em relação aos ditadores cubanos: eles podem tudo porque são “de casa”, ditadores amigos.

Como disse o ex-chanceler Luiz Felipe Lampreia, em entrevista à “Folha”, o governo brasileiro é omisso nas violações dos direitos humanos praticadas por amigos, e estridente com os outros países.

Lampreia pode dizer de cadeira, porque quando esteve em Cuba, em 1998, manteve reuniões com dissidentes, ignorando a irritação do governo de Havana.

Durante a ditadura brasileira, era comum visitantes estrangeiros ignorarem a irritação dos generais e manterem reuniões com opositores ou críticos do regime.

Foi assim que em 1978 o então presidente americano Jimmy Carter se reuniu com D. Paulo Evaristo Arns e o reverendo Wright, autores do relatório sobre tortura “Brasil Nunca Mais”. E sua mulher Rosalyn Carter foi a Recife visitar D. Helder Câmara.

Carter recebeu de D.Paulo uma carta com o nome de 27 desaparecidos políticos e foi ao presidente Geisel e perguntou onde eles estavam.

Quando o então presidente venezuelano Carlos Andrés Perez veio ao Brasil, se encontrou com opositores do regime militar, entre eles Fernando Henrique Cardoso.

O próprio Lula foi visitado por representantes de outros governos. Fidel Castro sempre que vinha ao Brasil, depois do restabelecimento de relações diplomáticas no governo Sarney, reunia-se com o PT e uma vez participou de um comício petista em Niterói.

Estar com representantes da oposição não é se envolver em assuntos internos, é ouvir todas as partes do país; porque quem é oposição hoje pode ser governo amanhã; e quem é governo não é dono do país. As relações permanentes não são com os governantes, mas com os países. Na Venezuela, o Brasil ficou excessivamente marcado como “amigo de Chávez”, a ponto de ter havido, em 2003, manifestação em frente à embaixada brasileira.

O que nos interessa de forma permanente é uma boa relação com a Venezuela.

O governo brasileiro usa o princípio da não ingerência em assuntos internos quando lhe convém e para encobrir os abusos de governos dos seus amigos como Hugo Chávez e Fidel e Raúl Castro. No caso de Honduras, o Brasil disse que estava atuando em defesa do princípio democrático.

Existe uma forma de conciliar não interferência em assuntos internos com defesa de princípios e valores democráticos. O governo Lula é que não sabe achar o ponto de equilíbrio.

As prisões de Cuba:: Pietro Ingrao

DEU EM GRAMSCI E O BRASIL

Certa feita, e já na velhice, o filósofo Georg Lukács se empenhou pessoalmente pela libertação de um ativista maoísta, indevidamente preso na Hungria (relativamente “liberal”) de János Kádár. Ao filósofo, mesmo tão distante do maoísmo, não importou nenhuma consideração geopolítica que pudesse afetar o bloco do então chamado socialismo real e, com isso, servir de desculpa para o silêncio cúmplice: homens e mulheres livres protestam contra qualquer violação dos direitos humanos, em qualquer tempo e lugar. Marxistas capazes de pensar com a própria cabeça se incomodam profundamente quando o marxismo é transformado em ideologia de estado, que encobre e justifica crimes: porque assim ele, marxismo, torna-se um conceito desonrado e arrasta consigo para a infâmia a própria ideia de socialismo.

Pelas mesmas razões de Lukács, ao tomar conhecimento da morte de Orlando Zapata, prisioneiro de consciência pertencente à infeliz “primavera negra” de 2003, em Cuba, a nossa voz só pode ser a de protesto comovido em nome da universalidade dos direitos.

Os dirigentes cubanos mencionam, em sua defesa, a persistência do bloqueio americano e as torturas em Guantânamo. E estão certos nisso: o bloqueio é um anacronismo delirante, os presos no limbo de Guantânamo são uma herança maldita dos tempos de Bush, que cabe liquidar o quanto antes, com as devidas reparações. E relíquias da guerra fria devem ser tratadas como tal: fonte de esquizofrenia política, de um lado e de outro.

Quanto à morte por inanição de Zapata, só nos resta apelar retrospectivamente a Pietro Ingrao, reapresentando, intacto, o texto abaixo, escrito em abril de 2003, e subscrevendo inteiramente suas razões. Ingrao representa, tal como o velho Lukács no episódio que lembramos, as melhores tradições do comunismo histórico: uma das tradições a que não queremos renunciar
(
Gramsci e o Brasil).

As notícias que chegam de Cuba são alarmantes e não permitem o silêncio. Em 3 de abril, ocorreram em diversos lugares da ilha processos contra 78 “dissidentes” ou — para usar palavras mais diretas — opositores do regime castrista. Somando as várias condenações infligidas a estes opositores, chega-se a centenas e centenas de anos de cárcere. São cifras espantosas. E, no caso destes processos, falar de rito sumário é um eufemismo um pouco ridículo.

Também não podemos nos enganar: é impossível que, nestes verdadeiros processos-relâmpago, tenham sido garantidos direitos de defesa elementares e tenha havido aquela prudência elementar, necessária, que, no entanto, é o tempero obrigatório quando se decide sobre a liberdade ou o encarceramento dos indivíduos e dos grupos.

Eram os acusados opositores do regime castrista e até — usemos a palavra forte — conspiravam contra o regime? E o que mais podiam fazer, visto que em Cuba faltam direitos essenciais de palavra, de organização, de luta política pública e reconhecida? E isso ainda hoje, quarenta anos depois da insurreição armada e da emergência revolucionária. E, além disso, onde está escrito que, até mesmo aos conspiradores algemados — quando não estão em condições de causar danos —, não devam ser concedidos elementares direitos e instrumentos de defesa? A justiça — esta palavra tão nobre e solene — carece, como do pão, do contraditório público e prolongado. Sem isso, o recinto do tribunal se torna uma farsa, um engano feroz.

Ainda no início de abril — numa conexão alucinante —, realizou-se em Cuba um outro processo, que levou à condenação à morte de três jovens que haviam seqüestrado uma balsa para alcançar o litoral dos Estados Unidos. Quem escreve aprendeu, em sua vida, a odiar a condenação à morte — este assombroso poder de matar aquele que já está algemado e confinado nas paredes de um cárcere. Mas aquela condenação à morte que se consuma e se realiza quase como um raio, e não permite apelação, e recusa até um momento de hesitação na hora de matar o indefeso — é verdadeiramente algo repugnante. E é enganosa: tem-se a ilusão de cancelar, com a mão do carrasco, os problemas políticos e humanos que não se sabe resolver.

Dir-se-á: tudo isso é necessário a Fidel para se proteger dos complôs americanos. Eu receio, ao contrário, que isso ajude Bush a dizer: vejam como é indispensável a superpotência americana...

Este é o quadro amargo. Eu não esqueço aquilo que, da insurreição cubana, veio como esperança e símbolo para um terceiro mundo sufocado pelo imperialismo e até para a difícil luta da esquerda anticapitalista no Ocidente avançado. Embora, pessoalmente, tenha tido dúvidas, muitas, realmente muitas — desde o início —, naquela segunda metade do século XX, quando pusemos o retrato do “Che” sobre um móvel da casa e cantamos nas manifestações a canção inesquecível. E acredito perceber, compreender o quanto ainda hoje Cuba represente uma esperança: antes de mais nada, para o continente centro-americano em busca de resgate, e também para outros lugares. Tanto mais agora, quando a superpotência americana proclamou — diante do mundo — o advento da era da “guerra preventiva”.

Mas, se a questão agora é esta — como se vê na prática —, menos ainda podemos ter a ilusão de superar tal desafio com processos sumários e fuzilamentos fulminantes. Sinto repulsa por aqueles novíssimos cárceres de Guantânamo, nos quais não mais existe sequer a proteção, o recolhimento em si mesmo que a escuridão da cela propicia. Mas como posso combater as alucinações de Guantânamo se recorro à pena capital contra fugitivos recapturados e já com os pulsos algemados?

A batalha contra Bush e contra a doutrina da “guerra preventiva” pede outros caminhos: novos e diferentes. E se nutre de pacifismo, não de cárceres e algemas até absurdas, e de carrascos manchados de sangue.

Um intelectual, grande amigo de Cuba — o Nobel Saramago —, declarou a sua discordância. É uma escolha que reclama a coragem da verdade, e só Deus sabe se é preciso coragem diante dos desafios abertos no mundo.

Pietro Ingrao, nascido em 1915, é figura histórica do comunismo italiano.

Escreveu este texto para Il Manifesto, 15 abr. 2003. Dois dos seus livros estão disponíveis em português — As massas e o poder (Trad. Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980) e Crise e terceira via (Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981) — e constituem, ainda hoje, momentos fundamentais da reflexão sobre democracia política e socialismo.

O QUE PENSA A MÍDIA

EDITORIAIS DOS PRINCIPAIS JORNAIS DO BRASIL
Clique o link abaixo

Dissidente cubano é sepultado com forte esquema de segurança

REUTERS

HAVANA - O dissidente cubano Orlando Zapata, que morreu nesta semana após uma greve de fome de 85 dias, foi sepultado nesta quinta-feira sob um céu cinzento em sua cidade natal no leste de Cuba, em meio a uma forte operação de segurança, disse sua mãe.

O falecimento de Zapata deflagrou críticas internacionais sobre a situação dos direitos humanos em Cuba, tanto de inimigos, como Estados Unidos, quanto de países amigos, como Espanha.

O presidente Raúl Castro disse que lamentava a morte dele, mas responsabilizou os Estados Unidos pelo falecimento, a quem acusa de financiar os dissidentes.

Reina Tamayo, mãe de Zapata, disse à Reuters que mais de 100 pessoas despediram-se do féretro no cemitério de Banes, povoado cerca de 850 quilômetros a leste de Havana.

"Fomos custodiados, mas lhes demonstramos que meu filho seguirá vivendo dentro de nós. Não temos medo deles", disse por telefone.

Segundo a mulher, policiais rondaram durante toda a noite sua casa em Banes, onde foi velado o corpo do filho, um encanador de 42 anos, que estava preso desde 2003.

As forças de segurança impediram que mais pessoas participassem do funeral, onde alguns gritaram "Zapata vive", disse Tamayo.

"Penso que, com o falecimento de Orlando Zapata, a oposição interna ganhe mais força, ganhe mais valor e intensifique seu trabalho pacífico frente o regime", disse a mãe.

Oposicionistas disseram que Banes, uma pacata cidade de 80 mil habitantes que fica nas proximidades de onde nasceram Fidel e Raúl Castro, estava sob "estado de sítio" e alguns dissidentes tiveram que se disfarçar para escapar dos controles policiais e chegar à casa de Tamayo.

Zapata morreu na terça-feira em um hospital de Havana, para onde foi transferido com urgência de uma prisão de segurança máxima, local onde realizava uma greve de fome num protesto por melhores condições de prisão.

Ele é o primeiro preso político a morrer durante uma greve de fome em Cuba desde 1972.

EUA, a Comissão Europeia e a Espanha, governo próximo a Cuba, pediram a libertação dos 200 presos políticos que, segundo grupos de direitos humanos, estão nos cárceres da ilha.

A Anistia Internacional pediu uma investigação sobre as circunstâncias da morte do dissidente.

Cuba considera os opositores, como Zapata, mercenários recrutados pelos EUA para destruir o sistema socialista do país.

(Reportagem de Esteban Israel e Nelson Acosta)

Cuba impede ida de opositores a enterro de dissidente, diz ONG

Segundo órgão ligado a anticastristas, Raúl reforça segurança e prende ativistas que tentaram ir a funeral

estadao.com.br

HAVANA - O corpo do dissidente cubano, Orlando Zapata, morto na última terça-feira após uma greve de fome de 85 dias, foi enterrado hoje em Banes, a cerca de 900 km de Havana, em meio a um forte esquema de segurança, segundo a oposição ao regime dos irmãos Castro.
Alguns familiares e dissidentes estiveram presentes ao funeral. Segundo a ONG Comissão de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional, a cerimônia aconteceu pela manhã e muitos opositores foram impedidos de chegar à cerimônia, ou foram presos.

A organização não precisou números sobre as supostas prisões. Vladimiro Roca, um dos dissidentes presentes no enterro, havia uma grande operação de segurança em torno da casa onde acontece o velório.

Ontem, o presidente cubano, Raúl Castro, lamentou a morte do preso político e culpou os EUA pelo episódio. Lamentamos muitíssimo (a morte). Isso é resultado dessa relação com os Estados Unidos", disse Castro, ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, irritado, também se manifestou sobre a morte do preso.

"Temos de lamentar, como ser humano, sobre alguém que morreu porque decidiu fazer greve de fome, que vocês sabem que eu sou contra porque fiz greve de fome", afirmou Lula.

Ainda na quarta-feira, os EUA e a União Europeia condenaram a morte de Zapata. O porta-voz do departamento de Estado americano PJ Crowley disse que o governo do presidente Barack Obama está profundamente entristecido com a morte do oposicionista e que o caso foi tratado por diplomatas americanos em Havana na semana passada.

"O caso do senhor Zapata evidencia a injustiça de Cuba manter 200 prisioneiros políticos que deveriam ser soltos sem demora", disse.

Em Bruxelas, o porta-voz da Comissão Europeia (órgão executivo da UE) John Clancy também pediu a libertação dos presos políticos cubanos. "A Comissão Europeia lamenta a morte de Zapata e oferece suas condolências à família", disse.

Com informações da Associated Press

Silêncio em Cuba vale críticas a Lula

DEU EM O GLOBO

A ausência de condenação ao desrespeito aos direitos humanos em Cuba gerou críticas ao presidente Lula, que visitava a ilha quando o preso político Orlando Zapata morreu após greve de fome. Analistas de relações internacionais dizem que Lula não deveria guiar a política externa por preferências ideológicas ou relações de amizade. O jornal "El País" criticou o silêncio de Lula. Mil policiais e militares cercaram o povoado onde ocorreu o enterro de Zapata e impediram o acesso de jornalistas.

MORTE DE DISSIDENTE NA ILHA

Lula é criticado por silêncio sobre Cuba

Analistas alertam que presidente brasileiro não pode se esconder atrás de velhas preferências ideológicas

Eliane Oliveira, Cristiane Jungblut e Tatiana Farah

BRASÍLIA e SÃO PAULO. Um país como o Brasil, que usa internamente a bandeira dos direitos humanos para condenar o período da ditadura, não pode ficar em cima do muro ante os últimos acontecimentos em Cuba, segundo analistas ouvidos pelo GLOBO. Para o especialista em Direito Internacional George Galindo, seria importante que a diplomacia brasileira tomasse posição mais enérgica. Sobretudo agora, que Cuba foi autorizada a voltar para a Organização dos Estados Americanos (OEA).

- O fato de Cuba entrar novamente na OEA gera ônus tanto para os cubanos como para os vizinhos. Se o Brasil, nos dois últimos governos, defende há tanto tempo os direitos humanos, deve aplicar isto também no plano externo - disse Galindo.

"É preciso pôr fim à relação nostálgica com Cuba"

Ele também criticou as frequentes abstenções do Brasil sobre o assunto em fóruns internacionais - não apenas no governo Lula, frisou, mas também no governo do tucano Fernando Henrique Cardoso. Também atacou o argumento das autoridades brasileiras de que não se pode interferir em assuntos internos, quando, ao mesmo tempo, condenou taxativamente o golpe em Honduras.

- O princípio genérico de não ingerência em assuntos internos não pode servir de pretexto para fechar os olhos publicamente a violações gravíssimas do direito internacional - disse o professor de Ciências Humanas Estevão Martins, da Universidade de Brasília (UnB).

- A voz política do país não pode se esconder atrás de alguma preferência ideológica. Um país que tem uma Secretaria de Direitos Humanos que faz um estardalhaço fora do comum com respeito a ditaduras passadas, cria uma situação de desconforto ao ficar em silêncio total em relação a uma ditadura que dura mais de 50 anos - acrescentou o acadêmico.

O professor titular de Relações Internacionais da UnB Eduardo Viola concorda com a avaliação e acredita que o Brasil já deveria ter se pronunciado:

- Não é uma questão de interferência ou ingerência. A política externa do governo Lula não corresponde a um país democrático como o Brasil. É preciso acabar com essa relação nostálgica com Cuba.

Postura de Lula em Havana domina debates na Câmara

O jurista Antonio Márcio da Cunha Guimarães, especialista da PUC-SP em Direito Internacional e Direitos Humanos, criticou a falta de posicionamento:

- O presidente não pode pautar relações internacionais por suas relações pessoais, de amizade. Acho um despropósito essas manifestações de apoio público de Lula a governantes como os de Cuba e Irã.

Em Brasília, o silêncio de Lula à morte do dissidente cubano Orlando Zapata Tamayo provocou a reação do DEM, que até obstruiu e conseguiu suspender a votação de acordos internacionais na Câmara. A viagem a Havana dominou num plenário esvaziado, provocando debates acalorados entre parlamentares.

- Quem poderia imaginar um presidente operário, o nosso presidente metalúrgico, ir a Cuba para comemorar a morte de um dissidente do regime de Fidel. Isso é inaceitável. Tirar foto dando risada, ao lado de assassinos, ao lado de bandidos, em Cuba - disse o vice-líder do DEM, deputado José Carlos Aleluia (BA).

A deputada Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), irritada, pediu que fosse retirada a expressão "assassinos" do discurso, e o presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP) disse que iria analisar a questão. O líder do governo na Câmara, deputado Cândido Vaccarezza (SP), saiu em defesa de Lula. O ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, mandou dizer que estava se preparando para viajar e não poderia falar sobre o caso.

UE pressiona região por direitos humanos

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Bloco vai condicionar novos acordos comerciais ao tema

Jamil Chade
Correspondente - Genebra

A Europa exige a libertação de todos os prisioneiros de consciência em Cuba e, em uma mensagem clara a governos latino-americanos, alerta que exigirá cláusulas de direitos humanos nos novos acordos comerciais que o bloco assinará com a região nos próximos meses.

Ontem, o primeiro-ministro espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, exigiu que Cuba tome medidas para libertar todos os presos políticos, mas insistiu que prefere o diálogo à estratégia americana de impor embargo contra a ilha.

O debate na Europa sobre como lidar com Cuba voltou ao centro da agenda após a morte do preso político Orlando Zapata, que estava havia 85 dias em greve de fome. A Espanha preside a UE até julho e, como um dos principais pontos em sua agenda, defende uma reavaliação do diálogo com os cubanos.

O que Madri quer é mudar a forma pela qual a UE dialoga com Cuba. Em 1996, ficou estabelecido que o avanço na relação bilateral dependeria de avanços na questão dos direitos humanos em Cuba. Agora, a Espanha quer uma reavaliação objetiva e com visão de futuro dessa estratégia.

Para o governo espanhol, a fórmula de diálogo estabelecida nos anos 90 "não funcionou", já que Havana não apenas não se abriu, como endureceu a repressão. "Queremos resultados", disse o chanceler espanhol, Miguel Ángel Moratinos, que também insistiu no diálogo. Mas Grã-Bretanha e Alemanha estão entre os governos europeus que não aceitam uma aproximação com Cuba enquanto não houver um sinal claro do regime de que haverá mais liberdade na ilha.

Zapatero também tentou mostrar que essa aproximação não seria incondicional e cobrou "a devolução da liberdade aos prisioneiros de consciência e o respeito aos direitos humanos". Para Zapatero, essa deve ser uma "exigência fundamental da comunidade internacional".

Catherine Ashton, a chefe da diplomacia europeia, usou exatamente os mesmos termos e exigiu "a libertação incondicional de todos os presos políticos, incluindo os (membros do grupo de 75 dissidentes) detidos e condenados em 2003".

COMÉRCIO

Ontem, os espanhóis deixaram claro que os direitos humanos farão parte da aproximação comercial entre a Europa e a América Latina e não será mais apenas uma questão de retórica. Em março, por exemplo, o Mercosul e a UE voltarão a negociar um acordo de liberalização comercial, paralisado há cinco anos por causa de diferenças de posições entre os dois blocos. Neste semestre, devem ser fimados acordos com Colômbia e Peru. A condicionante europeia, nesse caso, não cita a questão cubana diretamente. Mas é um sinal aos demais governos da região de que a democracia precisa ser mantida. Nos bastidores, uma das preocupações de Bruxelas é com o comportamento de governos como o da Venezuela, que está em processo de adesão ao Mercosul.

CRÍTICA A LULA

O jornal espanhol El País, em editorial, criticou o Brasil e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo silêncio em relação à situação dos direitos humanos em Cuba. "Nem a Europa nem a América Latina, especialmente o Brasil, pode ignorar a morte de um dissidente", assinalou o diário, que instou Lula a "não manter seu silêncio frente a uma ditadura como a castrista", a qual qualificou de "uma das mais liberticidas do mundos". COM EFE E AP

Silêncio diante de violações é diretriz do Itamaraty

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Brasil diz rejeitar "agenda seletiva" de direitos humanos; País torna-se cúmplice de violadores, dizem analistas

Roberto Simon

O silêncio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva diante da repressão cubana a dissidentes reflete uma diretriz da política externa brasileira quando o assunto é direitos humanos. Quem diz isso é o próprio governo Lula. "Não estamos aqui para colocar diploma (de direitos humanos) na parede de ninguém", disse o chanceler Celso Amorim no programa Roda Viva, da TV Cultura, em junho. "O Brasil não tem pretensão de superioridade moral."

O País é um "interlocutor privilegiado", afirma, capaz de dialogar tanto com países do sul, quanto do norte. Por isso, deve rejeitar a "agenda seletiva" imposta pelos poderosos - leia-se: EUA e Europa. "Quantas resoluções há na ONU sobre Guantánamo?", provoca o chanceler.

Mas ONGs e analistas afirmam que essa posição diplomática, na prática, faz do Brasil solidário e até mesmo cúmplice de países que cometem violações sistemáticas. Em nome da "solidariedade sul-sul", a diplomacia brasileira estaria virando a cara a atrocidades cometidas em países que vão de Cuba e Irã, a Sudão e Coreia do Norte.

A relação de votos brasileiros na Assembleia-Geral e no Conselho de Direitos Humanos (CDH) das Nações Unidas ilustra a ambiguidade.

A plenária dos 192 países da ONU realizou recentemente 3 votações com propostas contra Coreia do Norte, Mianmar e Irã. Nas três o Brasil se absteve.

AHMADINEJAD

O Itamaraty justifica que a instância adequada para o debate é o CDH. Mas, nesse conselho, o País também se absteve em uma condenação ao Sudão pelo genocídio em Darfur e calou sobre o Congo e no Sri Lanka. A China também foi poupada.

O programa nuclear e os protestos que sucederam às eleições de junho no Irã (qualificados de "choro de perdedor" por Lula), colocaram o regime persa no centro dos debates. O Brasil se absteve na Assembleia-Geral e fez um discurso brando sobre o caso no CDH. Evitaram-se palavras que, no jargão diplomático, têm um peso maior, como "exorta" e "urge".

"O Brasil também não falou sobre a repressão após as eleições", critica Lúcia Nader, coordenadora de relações internacionais da ONG Conectas. "Mas foram apresentadas boas ideias."

A crítica de Amorim à suposta "seletividade" dos acusados de violação também é questionável. Em praticamente todas as votações que tocavam Israel (cerca de um terço das propostas no CDH são sobre o tema) o Itamaraty foi contra israelenses. ONGs aplaudiram a posição brasileira, mas criticaram essa "outra seletividade".

CONSTITUIÇÃO

A política de abstenção sistemática, porém, foi praticada também durante o governo Fernando Henrique Cardoso. À época, o País não apoiou decisões contra o cerco chinês a dissidentes, a repressão russa na Chechênia e ao Irã e não criticou Cuba.

Flávia Piovesan, professora de direito da PUC-SP, lembra que a Constituição de 1988 impõe a "prevalência dos direitos humanos" nas relações exteriores brasileiras, elevando o tema a um patamar inédito. "Ela é inovadora sob esse aspecto", afirma Flávia. "O Brasil não pode se aquietar em nome da solidariedade sul-sul."

A nova Carta "animou" um processo interno de redemocratização, diz Flávia. "Mas a esfera externa não acompanhou esse movimento" e a ação brasileira no mundo está excessivamente submetida ao Executivo.

ABSTENÇÃO SISTEMÁTICA

Irã - Itamaraty se calou em votação contra abusos de Teerã contra manifestantes da oposição

Coreia do Norte - Prestes a abrir embaixada em Pyongyang, País não condenou regime

Sudão - Em votação condenando Cartum pelo genocídio em Darfur, Brasil voltou a se abster

Investigações - Não votou para renovar investigação no Congo e não apoiou inquérito no Sri Lanka

Aumento do consumo: mérito de quem? :: Luiz Carlos Mendonça de Barros

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Da convergência entre a estabilização macroeconômica e a política de ganhos reais do salário mínimo

Um dos temas mais discutidos hoje no Brasil é o do aparecimento de uma nova classe média e que representa quase metade da população. Os cientistas políticos exploram em suas reflexões o impacto desse grupo de brasileiros em ascensão sobre uma nova dinâmica política/eleitoral no país. Já os analistas econômicos estão mais preocupados com os efeitos da ampliação do mercado consumidor sobre a dinâmica de crescimento dos próximos anos. Mas a opinião geral é que essa dinâmica é suficientemente forte para influir no perfil de nossa sociedade ao longo da próxima década.

No debate eleitoral deste ano, um dos temas que têm dominado as intervenções dos principais atores políticos é o que trata da paternidade dessas mudanças. Para as pessoas ligadas ao governo e aos partidos que lhe dão apoio, não existe dúvida: foi o presidente Lula, com sua política social, o grande responsável por essas mudanças.

Já para os que gravitam em torno do PSDB e do governo FHC, nada disso teria acontecido sem a ruptura com nosso passado inflacionário por ocasião do Plano Real. Todo esse ganho de renda da nova classe média e o crescimento do crédito bancário ao consumidor -que são a base do aumento do consumo dos últimos anos- só ocorreram porque vivemos os últimos dez anos com uma moeda estável e confiável.

Não vou entrar nesse debate. Entretanto é possível quantificar os efeitos da estabilização conseguida nos anos FHC e da política social do governo Lula no crescimento do consumo nos últimos anos. Para esse exercício, escolhi entre vários indicadores o que, em minha opinião, mais se presta a essa análise: o valor em salários mínimos da prestação na compra de um automóvel de R$ 25.000.

Começo pelo fim, isto é, pelo resultado desse estudo realizado pelos economistas da Quest. No período entre junho de 2000 e dezembro de 2009, o número de salários mínimos necessários para pagar a prestação desse automóvel padrão reduziu-se a um terço do comprometimento antigo. Mas o trabalho da Quest foi mais longe e identificou as principais causas dessa queda. Elas estão ligadas à estabilidade econômica, conseguida no governo FHC e mantida pelo presidente Lula, e ao impacto do aumento real do mínimo no poder de compra do consumidor.

A estabilidade teve vários efeitos. O primeiro foi a redução do preço do automóvel em relação ao da cesta de consumo medida pelo IPCA. Em outras palavras, houve uma mudança de preços relativos na cesta de consumo do brasileiro.

Além disso, permitiu uma queda dos juros reais e um aumento dos prazos de financiamento, que chegaram para os automóveis a mais de cinco anos. Claramente foi a maior confiança do sistema bancário na estabilidade futura de preços que motivou esse comportamento.

Esses fatores ligados à estabilidade macroeconômica representaram 60% da queda do valor real das prestações do automóvel tomado aqui como referência. Já o aumento real do salário mínimo e associado à política social do governo Lula explica os restantes 40% de queda no valor da prestação do financiamento.

Esse mesmo exercício pode ser realizado para outros bens de consumo duráveis ou para certos serviços, como viagens internacionais. Neles vamos encontrar também a convergência virtuosa entre a estabilização macroeconômica de FHC e a política de ganhos reais do salário mínimo.

Luiz Carlos Mendonça De Barros , 67, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo Fernando Henrique Cardoso).

Na crise bancos lucram mais e empresas perdem

DEU EM O GLOBO

Os bancos brasileiros conseguiram aumentar seus lucros na esteira da crise global. Enquanto isso, grandes empresas - como siderúrgicas e mineradoras, que perderam mercado principalmente no exterior - viram seus resultados desabarem no ano passado. Um levantamento com 22 balanços publicados até ontem mostra que os lucros no setor produtivo encolheram 44% em 2009. A Vale, por exemplo, teve um lucro de R$ 10,249 bilhões, mas isto significou uma queda de 51,8%. O Banco do Brasil, que expandiu sua carteira de empréstimos e reduziu juros por ordem do presidente Lula, ganhou 15% mais e registrou o maior lucro, em reais, da história das instituições financeiras no país. O BB está investigando o vazamento do seu resultado para um órgão de imprensa.

Bancos ganham, empresas perdem

Com resultado recorde do BB, setor registrou lucro 15% maior em 2009. Ganho de companhias não financeiras caiu 44%

Wagner Gomes

Impulsionado pelo forte crescimento da carteira de crédito e também por receitas extraordinárias com a Previ, o Banco do Brasil anunciou ontem um lucro líquido de R$10,148 bilhões em 2009, o melhor resultado da história do setor, deixando para trás os principais concorrentes privados. Em relação a 2008, a variação chegou a 15,3%. O ganho do BB - que sofreu pressão do governo para aumentar as operações de empréstimo durante a crise financeira e reduzir os juros - também bateu com folga o balanço já divulgado por algumas empresas não financeiras. Só perde, por enquanto, para a Vale, que fechou o ano passado com ganho de R$10,249 bilhões. Em bases recorrentes, ou seja, sem considerar os efeitos extraordinários, o lucro do BB no ano passado foi de R$8,506 bilhões, ainda assim uma alta de 27,2%.

Com 22 balanços de empresas não financeiras publicados até ontem, entre eles o de Vivo e Light, além da Vale, o lucro líquido foi de R$19,928 bilhões, contra R$35,697 bilhões em 2008, o que representa queda de 44,1%. A rentabilidade sobre o PL também sofreu maior recuo que nos bancos: de 19,8% para 12%. A amostra foi afetada pelos resultados de empresas que dependem do mercado externo, caso da Vale, cujo lucro em 2009 despencou 51,8% (para R$10,249 bilhões).

Com o resultado do BB, chegou a R$37,797 bilhões o lucro acumulado por uma amostra de 20 instituições financeiras que já divulgaram seu balanço em 2009, o que representou um aumento de 15,19% sobre 2008. Considerando apenas os seis maiores bancos de varejo, essa variação foi de 14,8% (para R$36,128 bilhões).

Banco do Brasil investiga vazamento

O presidente do banco, Aldemir Bendine, disse, durante a entrevista coletiva para anunciar os resultados, que a instituição está investigando o vazamento da informação do balanço. O lucro foi publicado ontem pelo jornal "Brasil Econômico". Como o BB tem ações negociadas em Bolsa, todo o mercado deve ter acesso a informações como essa ao mesmo tempo.

- Estamos investigando a origem dessa divulgação. O banco tem tomado um cuidado especial em relação a esse vazamento de resultado. Nós alteramos recentemente a nossa publicação no site e na CVM com horário mais tardio, para que não houvesse esse tipo de situação. Infelizmente, de novo, isso se repetiu. Nós vamos procurar apurar esses fatos - disse Bendine.

O balanço do BB, que já considera os números integrais da Nossa Caixa e de parcela do Votorantim (compradas no início de 2009), foi engordado por uma receita extra de R$3 bilhões referentes à contabilização de ganhos atuariais não reconhecidos do plano de aposentadoria de seus funcionários. Ao longo dos anos, o BB e os funcionários contribuíram num volume maior do que a necessidade efetiva para financiar as obrigações futuras desse plano de aposentadoria. Esse excesso de contribuições acabou sendo investido em ativos que geraram ganhos extras para o fundo, segundo Marco Giovane Tobias, gerente de Relações com Investidores do BB.

O grosso do resultado no ano passado saiu mesmo dos empréstimos. A carteira de crédito total somou R$300,8 bilhões, 33,8% a mais do que em 2008, com destaque para o segmento de pessoa física (mais 88,1%, para R$91,79 bilhões). Nenhuma outra instituição registrou variação tão expressiva. No Itaú Unibanco foi de 2,4%, enquanto no Bradesco foi de 6,8%. Já as receitas com empréstimos aumentaram 22%, passando de R$33,221 bilhões para US$40,515 bilhões. Para 2010, o BB prevê uma expansão de 18% a 23% de sua carteira de crédito.

- O reforço na carteira de crédito foi o principal componente para o resultado recorde. Adotamos uma estratégia perfeitamente correta e fomos ousados - disse Bendine.

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, comemorou o lucro.

- Mostra o acerto da estratégia anticíclica que nós adotamos e coloca os bancos públicos em lugar de destaque. O BB foi um dos principais baluartes da nossa política.

De acordo com compilação da Austin Rating, os ganhos com crédito dos maiores do setor financeiro foi de 14%, enquanto as receitas da área de tesouraria (aplicação em títulos públicos) avançou 18,1%. Isso foi mais forte no caso dos bancos privados, que no ano passado reduziram a concessão de empréstimos. No Itaú, as receitas com tesouraria subiram 44,7%, enquanto no BB cresceram 3,7% e na Caixa, 0,4%.

Bendine disse que, apesar de a crise ter provocado aumento da inadimplência, os índices de atraso se mantiveram abaixo dos registrados no sistema. Isso ocorreu porque os empréstimos foram concentrados em operações de menor risco, como o crédito consignado. A inadimplência média chegou a 3,3% no quatro trimestre de 2009, contra 2,4% em igual período de 2008 e 3,6% no terceiro trimestre do ano passado.

Colaborou Martha Beck