domingo, 1 de março de 2009

Gesto e a palavra

Fernando Henrique Cardoso
DEU EM O GLOBO

As oposições devem buscar os temas da vida que interessem ao povo

Andou na moda falar de decoupling para dizer, em simples português, descolamento entre a economia brasileira e a internacional. Os efeitos da crise em nossa economia fizeram o termo sair de moda. Foi substituído por expressão mais terna, "marolinha". Com o bicho-papão corroendo o mercado financeiro lá fora (na verdade o sistema financeiro central quebrou), há certo aturdimento. Não se sabe com que palavras qualificar o que anda pelo mundo: recessão prolongada, depressão, fim do unilateralismo americano na política, multipolaridade, não polaridade etc. Por aqui o governo prefere passar em marcha batida sobre o que nos azucrina.

Em vez de desenhar quadros sombrios ou róseos para o mercado, faz o decoupling à moda brasileira: descola a economia da política, precipita o debate eleitoral e, nele, vale o discurso vazio. É verdade que não somos os únicos a encobrir as angústias apelando a gestos sem conotação, sequer alusiva, aos fatos e circunstâncias. Basta mencionar a campanha bolivariana pela reeleição perpétua, uma quase caricatura da política. O significado da democracia se esboroou na "consulta popular". Se o povo quer o bem-amado para sempre, pois que o tenha e, como disse nosso presidente Lula, se a prática ainda não é boa para o Brasil, é questão de tempo.

Quando a cidadania amadurecer encontrará a fórmula de felicidade perpétua...

Assisti na TV, por acaso, ao último comício eleitoral do presidente Chávez em Caracas e, confesso, fascinei-me. Ele chegou, simpático como sempre, um pouco mais gordo que o habitual, vestindo camisa-de-meia vermelha, abraçando a toda gente, sorrindo, e foi direto ao ponto: "Hoje não falarei muito, vamos cantar!", disse. E entoou uma canção amorosa de melodia fácil, repetindo o refrão "amor, amor, amor..." Conversou com um ou outro no palanque incitando-o a também cantar, falou familiarmente com a plateia e finalizou: amor é votar sim no domingo! Por mais que no plano pessoal possa sentir até estima pelo personagem, não pude deixar de reconhecer no estilo algo que nos é habitual: o modelo Chacrinha de animação de auditório.
Funciona, e como!

O descolamento entre a política e a realidade das pessoas (não só a economia), a repetição simbólica de gestos que guardam pouca relação com um ambiente racional, mas "ligam" o ator com a plateia e com a "sociedade", está se tornando regra nas atuais democracias de massas.

Há algo de encantatório no modo pelo qual a política do gesto sem palavras (ou nos quais as palavras contam menos do que a forma) funciona substituindo o discurso tradicional. Quando me recordo do "sangue, suor e lágrimas" dito por Churchill ao tornar-se primeiro-ministro em plena guerra contra o nazismo, do discurso em Fulton quando disse que uma "Cortina de Ferro descia sobre a Europa", ou de vários pronunciamentos de Roosevelt como o de posse em plena Depressão, célebre pela frase "nada há a temer, exceto o próprio medo" ou ainda de Getúlio Vargas no estádio do Vasco da Gama apelando aos trabalhadores, e comparo com a retórica atual, há um abismo a separá-los.

E não se diga que é fenômeno de países de "democracia pouco amadurecida". A entronização de Obama como imperador de todos os americanos, na magnífica posse no Capitólio, se assemelhava a uma grande cena romana. O cenário era tão expressivo, a fusão simbólica do recém eleito com os founding fathers e com os valores fundamentais da democracia americana eram tão fortes, que obscureceram o conteúdo do discurso inaugural. E isso no caso de alguém que, por sua cor e mesmo por sua campanha, trouxe um significado imenso de renovação. Ainda esta semana, na primeira visita presidencial ao Congresso, o que foi dito sobre a crise econômica e sobre o futuro foi menos importante do que o reafirmar o "yes, we can", em um cenário da pátria unida para perpetuar sua glória. Mesmo que o castelo financeiro esteja desabando, a América vencerá, era a mensagem. No caso, nada a ver com Chacrinha, o símile é outro: a invocação do pastor, a reafirmação da fé, e não a troca simbólica de favores, do bacalhau, da bolsa família ou da canção de amor.

Faço esses comentários despretensiosos porque me preocupa o que possa vir a ocorrer no Brasil.

A mídia e a sociedade cobram um discurso de oposição. Diz-se, e é certo, que ela deve unir-se se quiser vencer. Mas, que discurso fazer? O racional, da crítica ao desmanche das instituições, do enlameamento cotidiano da política, deveria ganhar mais vigor, dizem. O grito de Jarbas Vasconcellos estava parado no ar e sua entrevista em "VEJA" deu-lhe um sopro de vida. Mas foi o próprio senador quem mostrou os limites desse tipo de protesto: o governo e o próprio presidente banalizaram o dá-cá-toma-lá. É como nos computadores quando se envia um e-mail e surge o aviso: a caixa está cheia. A caixa da revolta dos brasileiros contra o mau uso da política parece estar cheia. Temo que qualquer discurso "político" seja logo desqualificado pelos ouvintes.

Quer isso dizer que as oposições devam silenciar sobre a perda de substância das instituições, sobre o clientelismo e a corrupção larvar, tudo com a leniência de quem manda? Não. Mas precisam inventar uma maneira de comunicar a indignação e as críticas que toque na alma das pessoas. Este é o enigma da mensagem política, de governo ou de oposição. Tanto o modelo-chacrinha como o do discurso de pregador chega à alma das pessoas. Não estou dizendo que a comunicação política se resolve pela supressão do discurso analítico. Isso seria rendermo-nos a ideia da política como mistificação (o que, aliás, não é o caso de Obama). Mas quando se dispõe de um ícone, como o Plano Real, por exemplo, ou quando o próprio candidato é um ícone, tudo fica mais fácil.

Em nosso caso, as oposições, além de articularem um discurso programático, condição necessária para quem se respeita e acredita nas instituições, deverão expressá-lo de forma a sensibilizar o eleitorado. Para tal, não basta a crítica convencional e a discussão da política, tal como ela ocorre no Congresso, nos partidos e na mídia. É preciso buscar os temas da vida que interessem ao povo. Ademais a comunicação emotiva requer "fulanizar" a disputa para atribuir ao candidato virtudes que despertem o entusiasmo e a crença. Sem eles, a "caixa de entrada" das mensagens da sociedade continuará a dar o sinal de estar cheia e os ouvidos continuarão moucos aos conteúdos, por melhores que sejam. Pior ainda se não os tivermos. Mas só eles não bastam.
Programa político só mobiliza a sociedade quando é vivido por intermédio do desempenho de personagens que tratam como próprias as questões sentidas pelo povo.

Na lei ou na marra

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A lei é clara. As campanhas eleitorais no Brasil têm três meses de duração: começam no dia 5 de julho e terminam às vésperas do primeiro domingo de outubro, data da votação.

Qualquer ação com vistas à conquista de votos para uma determinada eleição fora desse parâmetro é ilegal. Passível de punição com multas de valor variável, mas cujo destino é sempre o fundo partidário para distribuição entre todas as legendas, inclusive aquela à qual pertence o infrator.

Portanto, pagar ou não pagar é o de menos. Dinheiro, aponta um ministro do Supremo Tribunal Federal que já presidiu o Tribunal Superior Eleitoral, é o aspecto menos importante da decisão que o TSE tomará em relação à ação do PSDB e do DEM contra o presidente Luiz Inácio da Silva e a ministra Dilma Rousseff, devido à reunião de prefeitos patrocinada pelo governo federal em Brasília nos dias 10 e 11 de fevereiro.

Na alegação do governo, um encontro de natureza administrativa. Na contestação da oposição, um comício antecipado.

Fundamental mesmo nesse caso é o sinal que a Justiça dará a todos os candidatos, de governo ou de oposição.

Se resolver tapar o sol com a peneira da tecnicalidade e aceitar a tese da defesa de que o encontro de Brasília teve a finalidade exclusiva de comunicar aos prefeitos uma série de medidas a serem tomadas pelo governo federal, estará autorizando o início da campanha explícita.

Os demais pretendentes de imediato se acharão no direito de patrocinar atos semelhantes, sob as mesmas justificativas.

Ainda mais que os dois principais candidatos de oposição estão no comando de Estados política e economicamente poderosos: São Paulo e Minas Gerais.

Se decidir examinar o caso à luz da vida como ela é, a Justiça Eleitoral não conterá a movimentação política em curso, mas dará uma freada no entusiasmo eleitoral vigente. Haverá mais prudência.

Não por receio das multas, mas por orientação dos respectivos advogados que enxergarão o perigo real adiante: punições brandas agora podem significar a formação de um prontuário de infrações com repercussão muito mais grave na época da campanha propriamente dita.

Agora não há o que temer porque não existem candidaturas registradas e, portanto, não há perigo de impugnação. Mas o infrator leve de hoje pode vir a ser castigado de forma mais pesada amanhã pelo conjunto da obra.

"O acúmulo de sanções nessa fase preliminar pode influenciar o julgamento do colegiado em pedidos de cassação de registro de candidaturas na etapa da campanha oficial", alerta um magistrado para quem a "soma dos fatos" no futuro contará mais que o fato em análise agora.

O critério vale para o governo e vale também para a oposição, que, assim, se vê diante de um dilema: combater a campanha antecipada do governo só por meio de ações judiciais ou pôr seu bloco eleitoral na rua e se expor ao mesmo tipo de risco.

O teor da defesa apresentada pela Advocacia-Geral da União ao TSE mostra que o governo não está para amenidades. Alega que o governador José Serra também reuniu prefeitos no interior de São Paulo e invoca a presença de governantes de partidos de oposição no encontro estrelado pela dupla Lula-Dilma para abstrair do evento qualquer intenção eleitoral.

Traduzindo: dilui o caráter infrator do ato e avisa aos navegantes da oposição que, se quiserem continuar a reagir, serão sempre levados a dividir a cena perante a plateia nesses anos todos treinada a não separar os sacos nem a distinguir a qualidade das farinhas.

OmertàO ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, movimenta-se preventivamente contra nova investida do PMDB - o notório deputado Eduardo Cunha à frente - sobre o fundo de pensão dos funcionários da Embrapa, depois da fracassada tentativa de tomar o controle do fundo de Furnas.

No final de 2007, Stephanes, pemedebista, ministro da "cota" do partido, sofreu uma ofensiva pesada. Cunha e companhia queriam, exatamente como tentaram por três vezes em Furnas, indicar o presidente e o diretor financeiro da entidade.

O ministro resistiu e, a partir de então, dia sim outro também lia nos jornais críticas ao seu desempenho como titular da pasta, junto com versões de que o PMDB pediria ao presidente Lula sua substituição.

Stephanes não procurou guarida no Palácio do Planalto, experiente o suficiente para saber de antemão quem perde na dividida com a cúpula do partido. Resolveu pagar na mesma moeda: deu o revide nos jornais, denunciado o verdadeiro motivo da insatisfação.

A pressão cessou, mas Stephanes não é persona gratíssima nas internas pemedebistas, assim como José Gomes Temporão, Osmar Serraglio, Jarbas Vasconcelos e todos os que vierem a quebrar lei do silêncio reinante na organização.

Já a gama de citados em denúncias é merecedora de todo carinho, atenção e, sobretudo, proteção.

O ano que começa

Marcos Coimbra
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

Hoje, a agenda do presidente já é eleitoral. Imagine-se o que será em pleno ano de sucessão: não vai ser fácil encontrar Lula em Brasília

Agora que 2009 vai começar de verdade, é hora de pensar o que ele nos reserva. O carnaval foi bom, especialmente para nossas alegres autoridades, que mostraram que estão errados os que se preocupam demais com coisas secundárias, como a crise internacional e seus efeitos internos.
Não deve haver um só país no mundo em que os poderosos estiveram tão felizes nos dias de folia.

De uma coisa, podemos estar certos: não será o ano em que o governo Lula vai recuperar o tempo que perdeu na remoção dos obstáculos institucionais ao desenvolvimento. Se na bonança andamos pouco, não seria agora, quando tudo ficou mais difícil, que andaríamos depressa.

Podemos dar como garantido que, também em 2010, nada vai ser feito nesse front. Hoje, a agenda do presidente já é eleitoral. Imagine-se o que será em pleno ano de sucessão: não vai ser fácil encontrar Lula em Brasília.

Assim, se não é agora e não será ano que vem, o prognóstico é que ele deve encerrar seus oito anos com um modesto saldo nesse campo. As reformas ficarão para depois.

As tímidas mudanças no sistema tributário, na previdência, na legislação trabalhista, no emaranhado de leis que atrapalham cidadãos e governos, foram uma gota d’água. Não conseguimos nos livrar do entulho institucional que retarda o progresso.

Também fizemos pouco na preparação do país para o futuro. As reformas do sistema educacional e, em especial, do ensino superior, bem como do sistema de ciência e tecnologia, ficaram aquém do necessário.

Em todas, poderíamos ter ido mais longe, mas é na ausência de reformas políticas que a frustração é maior. Lula viveu seus piores dias passando por uma crise tipicamente política, da qual saiu com amplas condições de reformar profundamente nossas estruturas e práticas políticas. A sociedade as desejava, ele próprio se comprometeu com elas, mas quase nada aconteceu.

Se Lula não estivesse tão voltado para o projeto Dilma, ele poderia fazer ainda alguma coisa nesse sentido. Como o sentimento da opinião pública é muito favorável e é grande o apoio entre formadores de opinião, mesmo no apagar das luzes, com sua aprovação recorde, ele poderia contribuir em muito para que tivéssemos, já em 2010, eleições sob regras mais modernas, menos suspeitas.

O problema é que Lula perdeu as condições de estabelecer qualquer diálogo político institucional, ao se colocar como um agente partidário permanente, que pensa e age com objetivos exclusivamente eleitorais. Na democracia, até se espera das autoridades eleitas que sejam atores políticos. Mas não que sejam apenas isso.

Ou seja, o que mais vai marcar 2009 na política, do lado do governo, a intensa e prematura campanha para eleger a ministra Dilma Rousseff, é, também, a principal razão de ser impossível aproveitar o ano para fazer qualquer avanço na reforma política. O (pouco) que foi feito até agora é tudo que teremos.

Quanto às oposições, o que de melhor pode acontecer são as prévias do PSDB. Se forem possíveis, se não prevalecer a lógica de considerar que “não valem a pena”, pois o partido tem já um bom candidato em José Serra, elas podem oxigenar o noticiário e o debate político. Seriam boas para o partido e para o Brasil, mesmo para quem não tem a menor simpatia pelos tucanos.

Sem elas, sabemos o que teremos: Lula e Dilma país afora, dia sim, outro também, só pensando “naquilo”; Serra fazendo sua campanha, que poderá ser tudo, menos empolgante.

O risco é grande de que, na política, 2009 não seja um ano divertido de se acompanhar.

O quebra-cabeça da violência

Alberto Carlos Almeida
Professor universitário e escritor
DEU NO JORNAL DO BRASIL


A segurança pública e a violência são questões das mais importantes em qualquer grande cidade brasileira. O Rio de Janeiro é, certamente, o epicentro desta preocupação. Isso pode ser facilmente mensurado. Faça-se uma pesquisa de opinião perguntando-se qual o problema que o governo estadual deveria resolver em primeiro lugar, o resultado é eloquente. A grande maioria irá afirmar que é a violência.

Na eleição municipal de 2000 em São Paulo, Marta venceu principalmente por causa da rejeição a Maluf. Naquele ano, o maior motivo de preocupação dos paulistanos era a saúde pública. Quatro anos depois, José Serra derrotou Marta. Ele tinha sido ministro da Saúde de Fernando Henrique e o principal tema da campanha fora a saúde. Marta teve um desempenho bastante razoável, crescendo muito no final da campanha e se aproximando ameaçadoramente do candidato vencedor. Os temas de Marta na campanha foram o transporte público e os CEUs da educação. No governo, Marta varreu a saúde para debaixo do tapete e tentou pautar a opinião pública com outras questões. Não venceu, mas foi longe.

No caso da segurança pública há um fenômeno de opinião curioso, ao menos no Rio de Janeiro. O eleitorado quer muito que o governo resolva o problema. É, inquestionavelmente, o principal problema. Aquele que o resolver, da maneira que é possível, lentamente e sem mágica, adotando-se a política pública mais adequada, tal como identificado nas análises do economista Aluísio Araújo – ele demonstrou que os assassinatos caem na medida em que aumenta a população carcerária – quem fizer isso facilmente terá projeção nacional ao ponto de, eventualmente, vir a pensar seriamente em uma candidatura presidencial. É fácil ser bem falado fora do Rio, basta resolver o principal problema da cidade e do estado.

E se o governante não fizer isso, o que acontece? A princípio, nada. Pode parecer paradoxal, mas é justamente isso. O eleitorado quer muito que alguém combata com sucesso a violência, mas se não o fizer, sem problema. Afinal, quantos foram os governantes que criaram, durante a campanha eleitoral, a expectativa de que a violência seria combatida e seus índices cairiam? E quantos tiveram sucesso nessa empreitada? Como quase todos prometeram, mas ninguém resolveu, então seria injusto punir um governante que pela enésima vez não tivesse sucesso no combate à violência.

A população tem para a violência soluções individuais que não encontram equivalente no caso da saúde. Para prevenir ser vitimizado adotam-se vários comportamentos: sai-se menos de casa, quando se vai a rua os horários são limitados, cerca-se a residência com arame e vidro, blinda-se o carro e assim sucessivamente. Na saúde isso é impossível. O que fazer quando se tem uma apendicite, para ficar em um exemplo dos menos complexos. Não há ação individual que resolva ou amenize uma crise de apêndice. O que não dizer de outras doenças e ocorrências mais graves?

Em suma, há ações individuais que previnem a violência, apesar do desejo ardente por uma solução pública. Nesse contexto, a estratégia tipo Marta seria varrer a violência para debaixo do tapete. Caberia ao governante mostrar empenho em seu combate. Mas sem acreditar, de fato, que há uma solução viável na situação atual. Seriam necessários mais recursos e um esforço conjunto inviável no atual cenário. Não faz parte da Realpolitik brasileira, ao menos por ora.

Há temas menos relevantes do que a segurança pública, porém muito importantes na ótica do eleitor. A saúde pública é um deles, mas há outros. Não foram poucos os candidatos abatidos, em campanha eleitoral, pelo tema único da violência; Newton Cruz no passado distante e Denise Frossard no recente. Assim, paradoxalmente, hoje, o sucesso ou fracasso de um governante no Rio de Janeiro depende menos do sucesso no combate à violência e mais do que ele for capaz de fazer ou deixar de fazer em outras áreas de ação.

Recesso e recessão

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Reprise é filme assistido, dèjá-vu é ilusão do já visto, déjá vécu, sensação do já vivido -- brasileiros sofrem de vários distúrbios coletivos, o menos conhecido é o da paramnésia, lapso onde aparecem palavras desconexas e situações desconectadas da realidade.Tudo isso porque nesta terra da abundância fomos aquinhoados com dois inícios de ano: o virtual nos acomoda ao calendário universal e começa no primeiro dia de janeiro. O ano novo real, efetivo, começa na segunda-feira seguinte à semana do Carnaval.

Amanhã, além do educado "bom dia" e "boa semana" convém adicionar um discreto "feliz ano-novo" que aos desavisados pode parecer surto paramnésico mas, ao contrário, é prova de realismo. E de um certo cansaço. O brasileiro vive correndo não porque seja atrapalhado, impontual – às vezes é, e muito – mas porque o nosso ano é menor, comprimido. Dependendo dos acertos com a astronomia temos anos como este 2009 com menos 52 dias e outros, quando o Carnaval cai em março, em que perdemos 60 dias ou mais. Os dias estão lá inteirinhos, vividos, sofridos, gozados, ninguém os afanou. Mas o intervalo entre o réveillon e os primeiros dias da Quaresma não conta. Vai na conta de uma superestação que se chama recesso, vale-tudo onde nada vale. Zerado. No país do faz de conta, o recesso é um encontro com a verdade, mas de mentirinha.

Como nada funciona e todos estão fora mesmo quando andam por aqui, ninguém dá sequência e toma providências. O recesso é uma imensa desobrigação coletiva. Exemplo foi dado pelo animadíssimo ministro Gilmar Mendes, presidente do STF, que, ao invés de apressar decisões prementes e pendentes, põe-se a deblaterar contra o repasse de verbas oficiais para os movimentos que promovem invasões de terras. O chefe da nossa suprema corte pode ter razão – o estímulo à violência política é sempre condenável mesmo sem verbas oficiais -- mas convém a um magistrado preservar suas opiniões para manifestá-las através de sentenças e votos seguindo os trâmites do devido processo. O caso entra na pauta política artificialmente e prejudicará sua eventual discussão na esfera judiciária por conta de um julgamento paralelo debitado ao marasmo oficial. Melhor faria o ministro se tentasse agilizar, ao menos filosoficamente, a aguardada decisão sobre o repatriamento ou concessão de asilo político a Cesare Battisti. Esta procrastinação é descabida, não interessa a ninguém. Maltrata o acusado, prejudica a imagem do Brasil, ultimamente tão arranhada, e mostra a face perversa da institucionalização do recesso. Justiça tardia é sempre falha.

Com a habilidade que o caracteriza (ou descaracteriza, dá no mesmo), o senador José Sarney aproveitou o fim do recesso formal, legislativo, e o início do recesso momesco para evaporar-se.

Sua reeleição para a presidência do Legislativo provocou mais espanto na imprensa internacional do que na nacional e não poderia ser diferente: sua passagem pela presidência da República inaugurou um gênero de ilegalidade legitimada pelo abuso. A concessão de canais de radiodifusão a congressistas é um acinte, macula a mídia eletrônica, macula o Congresso e desvenda a existência de um recesso moral que se estende além do verão e das férias. Este mesmo recesso moral deveria acobertar o assalto final para a conquista da direção e abertura dos cofres do fundo de pensão dos funcionários de Furnas Centrais Elétricas. A desfaçatez, a ganância e a impunidade são tão grandes que a tropa de choque do PMDB desconsiderou as recentes acusações do senador dissidente Jarbas Vasconcelos e forneceu-lhe ostensivamente as provas da corrupção que comanda os movimentos do partido. O ano-novo começa velho, repetido, fatigado.

Desgastaram-se as oportunidades e os tremendos desafios oferecidos pela crise econômica mundial. Graças ao recesso, sobrou a recessão.

Alberto Dines é jornalista

MST desafia Supremo e invade fazenda de Dantas

Catarina Alencastro e Flávio Freire
DEU EM O GLOBO


Ocupação é uma resposta a Gilmar Mendes, afirma sem-terra; gerente diz que invasores chegaram atirando

BRASÍLIA E SÃO PAULO. Um grupo de 280 famílias ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) invadiu na madrugada de ontem a Fazenda Espírito Santo, no município de Xinguara, no Pará. O MST disse que a invasão foi um protesto às declarações do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, para quem o repasse de verbas públicas ao movimento é ilegal.

- Essa é uma ação em protesto às manifestações públicas de Gilmar Mendes "Dantas" - disse ontem o coordenador da ocupação, Charles Trocate, incluindo no fim do nome do ministro o do banqueiro Daniel Dantas, acionista da Agropecuária, à qual pertence a fazenda invadida, e que, no ano passado, durante a Operação Satiagraha, foi beneficiado por dois habeas corpus concedidos por Mendes.

Anteontem, o Fórum Nacional da Reforma Agrária, que reúne do MST às pastorais da Igreja Católica, acusara Mendes de dar declarações "carregadas de preconceito e rancor de classe".

A propriedade é a 12ª fazenda da Agropecuária Santa Bárbara a ser invadida em menos de um ano. A empresa, que tem meio milhão de hectares de terra, cria 500 mil cabeças de gado e emprega cerca de dois mil funcionários.

Gerente da fazenda diz que foi ameaçado pelo rádio

Segundo o gerente da fazenda, Oscar Boller, ele e outras 20 pessoas estavam, até o fim da tarde de ontem, na sede da propriedade impedidos de sair. Ele disse que os invasores se apossaram da casa que guarda a entrada da fazenda, expulsando cinco funcionários, e preparam um acampamento no entorno na guarita, às margens da rodovia PA-150. Pelo menos dez cabeças de gado teriam sido mortas a tiros pelos invasores, contou o gerente. Os sem-terra estariam armados e chegaram ao local por volta das 4h de sábado em dois ônibus, uma van e motos.

- Chegaram atirando, soltaram rojão e invadiram a casa que fica na entrada da fazenda. Pelo rádio, fizeram a ameaça. Falaram para eu fazer a mudança desse pessoal em dez minutos, se não eles iam atirar - disse Oscar, por telefone.

Já o MST informou que não houve violência na ocupação e que os funcionários da fazenda têm livre acesso para entrar ou sair da propriedade.

- Não quebramos, não estamos mantendo ninguém refém, não fizemos saques, coisas que sempre querem impingir aos sem-terra - disse Trocate.

Invasores ainda não tomaram sede da fazenda

Oscar informou que os invasores só não tomaram ainda a sede da propriedade porque foram intimidados por seis seguranças armados.

- Não demos nenhum tiro. Mas vai chegar uma hora que a gente vai ter que se proteger, ou vamos morrer aqui - disse ele, afirmando que os funcionários se sentem desprotegidos por parte da polícia estadual.

A primeira fazenda da Agropecuária Santa Bárbara a ser invadida foi a Maria Bonita, em Eldorado dos Carajás (PA). Segundo a assessoria da empresa, a fazenda, que foi ocupada em julho do ano passado, continua invadida até hoje.

Procurado ontem durante todo o dia, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não se manifestou.

Molecagem em Furnas

Suely Caldas
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Molecagem é a palavra certa para definir o papelão da direção de Furnas Centrais Elétricas ao publicar nos jornais, na quarta-feira, comunicado, pago com dinheiro da estatal, com informações falsas que tentam desqualificar a atual direção da Fundação Real Grandeza e, assim, justificar a demissão do presidente e do diretor de Investimentos da Fundação.

Trechos do comunicado foram desmentidos no dia seguinte pelo insuspeito autor da proposta de demissão, Victor Albano, pessoa da confiança do presidente de Furnas e por ele feito presidente do Conselho da Fundação. Segundo Albano, nem a estatal pediu informações sobre o desempenho financeiro do fundo, e não foi atendida (até porque as tem diariamente), nem o presidente autoprorrogou seu mandato, como está escrito no comunicado.

No mínimo leviana foi a atitude do ministro de Minas e Energia, o maranhense do PMDB Edison Lobão, que, na ânsia de entregar ao seu partido a gestão de um patrimônio de R$ 6,3 bilhões, do 11º maior fundo de pensão do País, repassou a falsa versão da direção de Furnas, com risco de levar na enxurrada o presidente Lula, sem ao menos questionar por que funcionários e aposentados se opõem à substituição dos dois diretores. Nem mesmo a inédita greve não motivada por reivindicações econômicas, mas em defesa do patrimônio e contra a gestão política do fundo, despertou a curiosidade do ministro.

Desta vez Lula não embarcou no fisiologismo do PMDB e mandou desfazer a substituição dos dois diretores, antes que os estragos políticos o atingissem. Ao entrar na reunião com Lula, na quarta-feira, Lobão acusou a direção do fundo de "bandidagem". Ao deixar a reunião, baixou o tom agressivo e arrogante e saiu de fininho, cabisbaixo, silencioso. "Lobão, nosso fundo não é a vovozinha para você comer" foi a forma irreverente de os aposentados conterem o avanço e a gula do ministro e do PMDB sobre seus R$ 6,3 bilhões.

Esse é um episódio que confirma e escancara a verdade contida na entrevista do senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE) à revista Veja. "Boa parte do PMDB quer mesmo é corrupção", denunciou o senador. Alguém tem dúvida? Nem você, leitor, nem os caciques do partido José Sarney, Renan Calheiros e Jader Barbalho, que se calaram, enfiaram a viola no saco e não reagiram à acusação de Jarbas, simplesmente porque sabem que não têm como contestá-la.

Chantagem - Esta é a segunda vez que o PMDB tenta (e fracassa) tirar diretores do Real Grandeza e colocar operadores do partido.

A primeira, em novembro de 2007, teve menor repercussão na imprensa, embora tenha sido antecedida por uma ação explícita de chantagem política exercida pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), ex-colaborador de Fernando Collor e Anthony Garotinho. Na época, Eduardo Cunha se aproveitou do fato de o governo Lula precisar desesperadamente votar a CPMF antes do recesso parlamentar e chantageou: relator da matéria no Congresso, avisou que só concluiria o relatório da CPMF se ganhasse o privilégio de indicar o presidente de Furnas.

A chantagem valeu-lhe o prêmio de nomear para o cargo o ex-prefeito do Rio Luiz Paulo Conde, que imediatamente tratou de substituir os mesmos dois diretores do fundo que o PMDB quer tirar agora. Fracassou porque funcionários e aposentados protestaram e denunciaram a violação de legislação de FHC que tenta proteger os fundos de estatais de indicações político-partidárias.

Eduardo Cunha queria recuperar no fundo de Furnas o que perdera no Prece (fundo da Cedae - empresa de tratamento de água do Rio de Janeiro), depois de flagrado pela CPI dos Correios no comando de inúmeras fraudes ali praticadas.

O governo Lula acompanhou tudo de perto, mas não interferiu. Só que a obsessão do PMDB pelo comando da gestão de R$ 6,3 bilhões incentivou nova investida, desta vez com Carlos Nadalutti Filho, que substituiu Conde na presidência de Furnas. Novo fracasso e agora com Lula agindo. Até quando?

Possivelmente até outubro, quando vencem os mandatos de Sérgio Wilson Fontes e Ricardo Carneiro Nogueira, presidente e diretor de Investimentos do Real Grandeza, que o PMDB quer demitir. De acordo com as regras, cabe à direção de Furnas indicar o presidente e ao Conselho do fundo aprovar. É a chance de Lobão, Eduardo Cunha & Cia. tentarem mais uma vez. Mas enfrentarão um Conselho arredio - integrado por três representantes dos funcionários e três das patrocinadoras Furnas e Eletronuclear - e que até agora só atrapalhou os planos do PMDB.

A reprise dos fatos não permite ao governo alegar desconhecimento quando chegar outubro. Mas fica a dúvida: se o governo Lula não cuidou de preservar o patrimônio de R$ 6,3 bilhões quando estava no comando da Fundação Real Grandeza, terá legitimidade para exigir retidão do PMDB?

A gestão petista - Desde a posse do governo Lula em 2003 até o episódio do mensalão, em 2005, os integrantes da diretoria da Fundação Real Grandeza eram do PT e indicados pelo petista Marcelo Sereno, que mandava e desmandava em fundos de pensão de estatais. Com o mensalão eclodiram as negociatas do Real Grandeza e a mais escandalosa delas foi a aplicação de R$ 153 milhões em papéis do Banco Santos, efetuada em 2004, quando a péssima saúde financeira do banco já era conhecida. O dedo de Sereno também foi flagrado nas aplicações suspeitas do Núcleos, outro fundo de pensão das estatais da área nuclear.

Ao tomar posse, em 2005, a atual diretoria da Fundação Real Grandeza encontrou déficit atuarial e uma coleção de operações prejudiciais ao seu patrimônio. Arrumou a casa, deu um perfil conservador às aplicações financeiras, passou a apresentar superávits e hoje a Secretaria de Previdência Complementar (SPC), órgão do governo que regula e fiscaliza os fundos de pensão, reconhece sua bem-sucedida gestão. Por isso o ministro Lobão preferiu confiar à Controladoria-Geral da União, e não à SPC, uma suposta auditoria que logo, logo será esquecida.

E o grande forno da pizzaria mais uma vez prepara o banquete: ninguém será punido nem perderá o cargo, nem a direção de Furnas será obrigada a devolver o dinheiro que gastou com a publicação do comunicado falso.

*Suely Caldas, jornalista, é professora de Comunicação da PUC-Rio

A voz dos senhores

Panorama Econômico :: Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO


O escritor romântico José de Alencar, de "O Guarani", "Iracema" e tantos outros, era também um fervoroso militante do escravagismo. Como parlamentar e jornalista, ele se entregou com paixão ao debate do século XIX para manter o que ele chamava de "instituição". Seus argumentos revisitados são reveladores do país em si. De alguma forma, há algo deles entre nós.

Em críticas ácidas ao imperador, inspirador de projetos abolicionistas, Alencar lança mão de tudo que possa chamar de argumento: D. Pedro II estaria agradando a potências estrangeiras, o fim da escravidão jogaria o país na guerra social, a "instituição" se esgotaria por si mesma; encerrada prematuramente, faria com que os negros cobrassem o que consideravam "justa reparação"; aqui, o cristianismo adoçara a escravidão tornando-a "mera servidão"; a escravidão no Brasil permitia que ex-escravos se integrassem perfeitamente à sociedade.

O livro "Cartas a favor da escravidão", organizado por Tâmis Parron, tem o mérito de trazer de volta, com o frescor do momento em que foram colhidas, as palavras de um notório intelectual brasileiro defendendo o indefensável. Muito se aprende no livro. Da liberdade de imprensa do Império, da contradição e da ambiguidade do pensamento convencional, da batalha das ideias.

Os vencedores da batalha, como Joaquim Nabuco, tiveram seus argumentos exibidos. Mas o outro lado, o que sustentou por tanto tempo a perversidade, dele pouco se fala. As Obras Completas de José de Alencar sofreram um expurgo. Os ensaios "Ao Imperador: novas cartas políticas de Erasmo", como ele as chamou, ficaram esquecidos naquele mesmo compartimento onde estão o que não gostamos de admitir de nossa história e do nosso caráter.

O leitor contemporâneo constatará que Alencar é contraditório, um pensamento ora explícito, ora envergonhado; reconhecerá sofismas de outros debates; notará a tendência de eximir o Brasil e acusar os outros países pelos nossos erros.

Das manias nacionais, o non sequitur, o pensamento sem sequência lógica, está lá. Para Alencar, a escravidão é instituição civilizadora, com a qual a Humanidade construiu o progresso; ainda indispensável no Brasil. A certa altura, no entanto, diz que a "causa moral do trabalho livre" já estava ganha no país, diz até que "para os filhos da Nigrícia já raiou a luz e raiou na terra do cativeiro". Para ele, a "escravidão caduca", mas o abolicionismo era um "fanatismo do progresso". Pergunta se a escravidão é uma instituição exausta. E responde: "Nego, senhor, nego com a consciência um homem justo que venera a liberdade", e termina afirmando: "a escravidão encerra a mais sã doutrina do Evangelho".

O estilo radical a favor dos que adotam um tom rebelado para manter o status quo está lá também. Diz que "as doutrinas que seduziram" o imperador eram uma "conspiração do mal, uma grande e terrível impiedade". E comparou o abolicionismo com as "seitas exterminadoras" que buscam o "fantasma do bem através do luto e da ruína".

Os argumentos de que no Brasil a opressão é suave pela índole do povo brasileiro, ou pela mistura, estão lá. "Em três e meio séculos, o amálgama das raças havia de operar em larga profusão fazendo preponderar a cor branca. Três ou quatro gerações bastam, às vezes, no Brasil, para uma transformação completa." Ou "resolve-se a escravidão pela absorção de uma raça pela outra". A índole brasileira "adoça o cativeiro" até transformá-lo em "uma tutela benéfica". Para ele: "um espírito de tolerância e generosidade, própria do caráter brasileiro, desde muito transforma a instituição." O país já não tinha, diz Alencar, a "verdadeira escravidão", mas o simples "usufruto da liberdade". Afirmou que os que compram a liberdade são recebidos pela sociedade com "um espírito franco e liberal que acolhe e estimula". Ao mesmo tempo, é explícito em seu racismo. Certo momento, lamenta que os índios tenham "preferido" o extermínio à escravidão, obrigando o país a ter o negro: "Não houve remédio senão vencer a repugnância do contato com raça bruta e decaída".

A ideia da escravidão suave é destruída por ele mesmo. "O liberto por lei é inimigo nato do antigo dono." Segundo Alencar, o imperador estaria expondo a nação ao risco de um "vulcão", de "uma grande calamidade!". A libertação exporia a população à "sanha de um inimigo irritado pela anterior submissão, movido por instintos bárbaros e exclusivamente preocupado desse desígnio sinistro que ele supõe seu direito e considera uma justa reparação de um agravo".

Chama de "detratores da pátria" os que davam razão às críticas estrangeiras à escravidão; refere-se, com ironia, aos abolicionistas como os "filantropos" e culpa a Europa por todos os crimes que eram praticados no Brasil, já livre àquela altura. A Europa era culpada - e aqui um raro bom argumento - porque consumia os produtos fabricados com o trabalho escravo; era culpada por ter iniciado o tráfico e era culpada porque não mandava para o Brasil levas de migrantes que "despejassem sangue vigoroso para restabelecer o temperamento da população e lhe restituir robustez".

É profético em alguns momentos. Quando diz que a escravidão acabaria em duas décadas. Ele escreveu isso 21 anos antes da abolição. Quando ameaça o imperador: "a mesma Monarquia, senhor, pode ser varrida para o canto entre o cisco das ideias estreitas e obsoletas".

Protecionismo e credibilidade

Rubens Ricupero
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Convém que o Brasil se comporte nas manifestações públicas sobre comércio com sobriedade diplomática

HÁ CERTO alarmismo em comparar com a onda protecionista dos anos 20 e 30 episódios recentes ainda relativamente pouco numerosos e expressivos. O artigo "Buy American" do estímulo de Obama é brincadeira em cotejo com a Lei Smoot-Hawley, que desencadeou em dois anos retaliações de 25 países e guerra comercial generalizada. A lei de 1930 foi estimulada e assinada pelo presidente Hoover, do partido protecionista da época, o Republicano, responsável pelo estouro das duas megacrises de 1929 e 2008.

Até agora, a maioria dos casos é expressão da tendência de todos os países a defenderem seus próprios empregos em períodos agudos de crise. Um pouco o que o coronel Tamarindo exclamou em Canudos ao alastrar-se a debandada que ia custar-lhe a vida: "É tempo de murici/ cada qual cuide de si". Não existindo nenhuma efetiva coordenação internacional para combater a crise, os países se resignam a tomar medidas essencialmente nacionais, até na Europa, onde impera moeda única. Após a fase de excessiva exaltação da globalização na era Clinton-Blair, assiste-se à volta do pêndulo ao equilíbrio mediante uma espécie de "desglobalização" moderada.

Acautelar-se para evitar a propagação do protecionismo é atitude louvável, sobretudo da parte da OMC (Organização Mundial do Comércio), que existe para isso. Denúncias e ações de governos podem ser úteis, mas a credibilidade na matéria exige coerência, aplicação não-seletiva e equilíbrio. É bom que o Brasil adote atitude de vigilância, pronto a defender interesses concretos que sejam de fato afetados, o que não aconteceu ainda em relação à emenda americana. Aliás, a prática do governo brasileiro de favorecer fornecedores locais é notória, justificando nossa rejeição do acordo da Rodada Tóquio sobre compras governamentais e tornando duvidosa nossa coerência no assunto.

A coerência tampouco é o nosso forte em relação à Argentina, cujo arsenal de licenças, preços de referência e antidumping reduziu-nos em 50% as exportações ao vizinho em janeiro. Em razão da sensibilidade das relações políticas e de integração, é possível que o Brasil não tenha alternativa a não ser contemporizar, aceitando enormidades como o Mecanismo de Adaptação Competitiva.

Deve-se deixar claro, contudo, que isso é o contrário do sistema multilateral de comércio, que temos defendido com veemência no caso dos EUA. Buscar equilíbrio na base de acordos bilaterais, às vezes até com moeda especial, lembra os acordos de compensação dos anos 30, do tipo dos que mantivemos com a Alemanha nazista do dr. Shacht. Parte significativa do comércio Brasil-Argentina no setor automobilístico e alguns outros se parece mais ao sistema de comércio administrado baseado em cotas do que ao multilateralismo.

A competitividade do carro brasileiro é frágil, com 40% das exportações dependendo do mercado argentino. Isso nos obriga a manter elevada a proteção tarifária e acordos administrados com a Argentina e latino-americanos.

Não poderão jogar-nos a primeira pedra os países, quase todos hoje, que subsidiam a indústria automotriz. Convém, no entanto, que, consciente das próprias mazelas, o Brasil se comporte nas manifestações públicas sobre comércio com a sobriedade diplomática que fica bem a um país cujo único poder é o do prestígio e do exemplo.

Rubens Ricupero , 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

Rio de Janeiro, 444 anos

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