• Consumo nas grandes cidades encolhe R$ 187 bi em cinco anos, e renda migra para o interior
Bruno Rosa - O Globo
A crise econômica afetou em cheio o consumo nas maiores cidades do Brasil. Com a inflação perto de 10% ao ano, o crédito mais caro e o desemprego em alta, as capitais e as regiões metropolitanas do país devem fechar 2015 somando apenas 45,96% de tudo que é gasto pelas famílias, revela estudo feito pela consultoria IPC Marketing. O índice é menor que os 47,77% de 2014 e o mais baixo desde os 51,06% registrados em 2010, auge do crescimento da economia do país, quando o PIB (Produto Interno Bruto, soma dos bens e serviços produzidos no país) avançou 7,6%. Em valores reais, a perda chega a R$ 187 bilhões nos últimos cinco anos, dinheiro que acabou migrando para o interior dos estados, onde os reflexos da crise ainda não são tão intensos, dizem economistas.
Nas ruas dos grandes centros, os reflexos são os mesmos: lojas fechadas e vendas em queda. E, na tentativa de driblar os negócios mais fracos nas grandes cidades, empresas dos mais variados setores vêm concentrando hoje a maior parte de seus esforços para atingir o potencial de consumo no interior, onde o crédito ainda não está tão difundido quanto nas grandes metrópoles. De acordo com especialistas, o varejo segue, hoje, o caminho que a indústria já trilha há alguns anos, deslocando parte de seus investimentos para cidades afastadas dos grandes centros urbanos, onde os salários e o custos de produção são menores.
Salada só com alface e tomate
Marcos Pazzini, responsável pelo estudo IPC Maps, ressalta que, com a crise de confiança no consumo e o encolhimento do mercado de trabalho, está cada vez mais difícil vender nas grandes cidades, onde a competição já é elevada. Ele cita ainda as margens de lucro em queda, com os maiores gastos envolvendo, por exemplo, a energia elétrica, um dos vilões da inflação este ano, que acumula alta de 47,74% de janeiro a setembro. Para 2016, de acordo com economistas, a tendência é de mais queda no consumo, sobretudo com o recuo do crédito e com a crise na construção civil, um dos principais empregadores das metrópoles.
— Hoje, o maior bolo do consumo não circula mais nas capitais e nas regiões metropolitanas do país, que sentem mais o impacto da crise, devido ao aumento da inflação e do desemprego mais elevado nos grandes centros. A migração de indústrias para as cidades do interior nos últimos anos ajudou nesse sentido, pois criou um mercado consumidor e passou a gerar renda. Agora, vemos o investimento de empresas de varejo para cidades menores ganhando força em ano de crise. Há um potencial de consumo no interior — destaca Pazzini.
E foi nas capitais dos estados das regiões Sudeste, Sul e Nordeste onde o consumo foi mais afetado.
Assim, nos últimos cinco anos, destaca o estudo, as famílias desses grandes centros passaram a ter uma vida “mais pacata”: cortaram as viagens e as despesas com recreação e cultura, além de serviços em geral como salão de beleza. Também estão estudando menos, com a redução dos cursos de educação em geral. Segundo Nelson de Souza, professor do Ibmec-Rio, a retração ocorre porque o modelo de expansão estava baseado no crédito.
— Agora, com o crédito mais seletivo por parte dos bancos, essa fatura começa a chegar. Ao mesmo tempo há outros fatores, como o fato de a população não aumentar. E há a crise em setores importantes como o de construção civil, cujas obras são concentradas nas maiores cidades, que chega a empregar 10% da população em alguns locais — explica Souza.
Assim, com renda menor, as famílias vão cortando produtos e serviços considerados supérfluos e não essenciais, segundo Ricardo Ladvocat, professor de Vendas e Varejo da ESPM Rio:
— Os itens considerados supérfluos são cortados, o que reduz o consumo geral. E isso não é verificado nas cidades menores porque lá os gastos são concentrados nos itens básicos. Então, para cortar é mais difícil. E isso ajuda a explicar porque a situação ainda é melhor que nas grandes capitais.
Foi o que aconteceu com a família da assistente social Mariângela Almeida, de 48 anos. Casada e com dois filhos na faculdade, ela lembra que teve de cortar mais de metade de seus gastos após o marido perder o emprego, em fevereiro.
— Para você ter uma ideia de até onde tive que cortar: antes a minha salada tinha rúcula, damasco, aspargos e mostarda escura. Hoje, só tem alface e tomate, que só compro no fim do dia, quando estão mais baratos. É difícil até manter a minha dieta. No café da manhã, por exemplo, abandonei a ricota light com ervas finas e a tapioca. Estou no pão de forma marca própria, que também só aumenta — lista Mariângela, que percorre os mercados atrás de promoções com encartes da concorrência.
Crédito deve fechar o ano com queda de 8,5%
E no maior mercado consumidor do país, o Estado de São Paulo, a percepção também é de cortes de gastos. Rodrigo Mariano, gerente do Departamento de Economia e Pesquisa da Associação Paulista de Supermercado (Apas), lembra que a previsão é que as vendas na capital fechem o ano com queda de 1%, um recuo maior que o esperado para as cidades do interior do estado, de 0,5%.
—É o interior que vai segurar as vendas. Em geral, as capitais sofrem mais porque há maior concentração do desemprego e inflação mais alta em relação ao interior. Na capital, por exemplo, há venda maior de itens duráveis, que não estão indo tão bem com o menor acesso ao crédito — afirma Mariano, lembrando que o setor automotivo deve ter queda de 20% no faturamento, assim como o de calçados e o de vestuário, com recuos esperados de 8%e6%, respectivamente.
Avaliação semelhante tem o economista João Ribas Morais, da consultoria Tendências. Segundo ele, a previsão é que a concessão de crédito tenha retração de 8,5% este ano e de 1,8% em 2016. Na última semana, o Banco Central (BC) manteve os juros básicos da economia, a Taxa Selic, em 14,25% ao ano. Para ele, tanto as cidades maiores quanto as regiões mais desenvolvidas do país são hoje mais dependentes do crédito. Além disso, Morais lembra que o desemprego nas principais regiões metropolitanas do país — que ficou em 7,6% em setembro — tende a ganhar força e subir para 9% no fim de 2016.
— E, num momento como o atual, essas regiões são mais afetadas. O interior, assim como as regiões menos desenvolvidas, tem uma resiliência um pouco maior, já que as grandes cidades ficam mais expostas à crise. Com as projeções de venda do varejo para 2016, esperamos um resultado pior para o Sudeste, com queda de 5,5% em todo o estado, acima da média nacional, de 5%,e o pior patamar entre todas as regiões do país — lembra ele. Enquanto as grandes cidades vêm sofrendo com a queda nas vendas, o interior vem ganhando... agito. De academias a Milk
shakes, empresas de varejo e de serviços aumentaram investimentos e estão revendo suas estratégias, de olho no potencial de consumo em locais com até 200 mil habitantes.
Segundo economistas, a atração de fábricas nos últimos anos, o crescimento do agronegócio e os programas sociais, como o Bolsa Família, ajudam a explicar o porquê de o interior ainda ostentar números melhores em relação às metrópoles.
— A crise só acelera a tentativa de expansão das empresas para mercados que ainda não estão sendo tão afetados por desemprego e inflação. No interior, ainda há potencial, porque o consumo é mais básico, e o crédito não está tão difundido — diz Ulysses Reis, coordenador de Varejo da Fundação Getulio Vargas (FGV).
O consultor Antônio Cesar Carvalho, da Acomp Consultoria, destaca ainda a força do agronegócio, que cresce impulsionado pela alta do dólar, o que ajuda nas exportações:
— No Nordeste, há programas sociais e polos que foram criados nos últimos anos, o que ajuda esses estados a terem uma maior independência econômica. Mas, hoje, ninguém está imune à crise.
Academia cria aplicativo
Na busca por novos negócios, a rede de academias Fórmula, do grupo Bodytech, acelerou a expansão em cidades de até 200 mil habitantes. Hoje, parte das 44 unidades da rede está em locais como Arapiraca, em Alagoas, Feira de Santana (Bahia), Governador Valadares (Minas Gerais) e Campos (Rio). E, até março de 2016, a previsão é abrir mais dez unidades. A empresa ainda está lançando um aplicativo pela internet para alcançar novos alunos em todo o Brasil, o BT Fit, que consumiu investimentos de R$ 20 milhões. A plataforma permite que o aluno tenha acesso a aulas de ginástica de diferentes estilos e orientação profissional por R$ 14,99 mensais, a partir do segundo mês.
— Mais de 60% das academias do país estão no interior. Como é impossível chegar a todos os locais, o grupo decidiu investir em um aplicativo e levar isso para as pessoas. Nossa meta era abrir 60 unidades, mas, com o aumento do dólar, e como os nossos equipamentos são importados, tivemos de pensar em novas estratégias para crescer — disse Alexandre Accioly, sócio da rede de academias. — O objetivo é levar a qualidade dos grandes centros para todo o país.
No setor de alimentos, a disputa promete ficar cada vez mais acirrada. O Bob’s também está investindo no interior após constatar, de 2010 até setembro deste ano, alta de 285% no faturamento das lojas em cidades de até cem mil habitantes. Já nos locais com mais de 400 mil habitantes, o avanço chega a 73,1% nos últimos seis anos.
— O interior também vem consumindo mais fora do lar com o avanço da renda. Mas o perfil de consumo é diferente, já que os itens mais consumidos são os mais baratos. Nossa estratégia para as cidades menores é levar primeiro os quiosques e ajudar a criar a imagem da marca. E o curioso é que essas lojas acabam virando uma referência na cidade — afirmou Marcello Farrel Silva, gerente-geral da marca Bob’s, destacando que está presente em cidades como Santo Antônio de Pádua (no Rio), Santo Antônio de Jesus (Bahia) e Itabaiana (Sergipe).
Na Pizza Hut, o interior representa 15% do faturamento. Agustin Larrea, diretor de Expansão da marca, lembra que serão abertas três unidades fora das capitais este ano. Na rede Mundo Verde, as cidades menores do país vão ganhar dez lojas, metade de toda a expansão prevista para 2015.
— Há potencial de consumo em várias cidades do interior, o que explica nosso investimento. Em 2015, estreamos e expandimos em muitas cidades do interior, com destaque para o Estado de São Paulo — disse Carlos Wizard Martins, presidente da Mundo Verde, destacando que o interior soma 30% do faturamento nacional.