Alberto Carlos Almeida
DEU NO VALOR ECONÔMICOCausaram espécie em pessoas que acompanham o quadro político nacional os resultados da última pesquisa CNT/Sensus. Feita no final de janeiro, a pesquisa detectou aumento da popularidade do presidente. A estranheza inicial deveu-se, tão-somente, ao fato de o resultado não corresponder às expectativas. Diante de um noticiário francamente negativo, no qual o tema principal é a crise econômica, esperava-se que Lula perdesse pontos na soma de sua avaliação "ótimo" e "bom". Ao contrário, Lula foi mais bem avaliado do que na pesquisa anterior. O que estava errado, as expectativas ou a pesquisa?
Certamente, as expectativas estavam erradas. A primeira fonte desse erro é que nós, brasileiros, ao contrário dos americanos, não temos estatísticas para tudo. Assim, muito dificilmente teremos condições de afirmar que para uma queda de X por cento no crescimento econômico tem-se uma redução de Y na avaliação positiva do governo. O nosso conhecimento vai até o conceitual, mas não avança no estatístico. Sabemos que uma crise aguda afeta negativamente a avaliação do governo. Não sabemos quanto nem quando.
O "quando" é tão fundamental quanto o "quanto". Ainda que tivéssemos condições de estimar o porcentual da redução da popularidade de Lula, que tende a ocorrer, não saberíamos dizer nada sobre o ritmo da queda. Muitos são os fenômenos políticos e econômicos que sofrem da chamada defasagem ("lag", em inglês). Para os estatísticos e econometristas, particularmente os especialistas em séries temporais ("time series"), é algo corrente incorporar em suas análises uma defasagem de um, dois ou três meses.
Assim, pergunta-se, qual é a defasagem da redução da popularidade presidencial em razão de uma parada repentina ("sudden stop") no crescimento econômico?
Além do mais, ainda que tivéssemos essas duas respostas, a da magnitude e a do ritmo da queda, provavelmente não poderíamos dizer nada sobre este caso específico, o caso de uma das mais agudas crises financeiras mundiais, algo mais que excepcional. Os modelos estatísticos funcionam entre determinados limites. Quando tais limites são ultrapassados, é preciso mudar os modelos. A crise atual, considerando-se apenas seus aspectos financeiros e econômicos, está fora de qualquer padrão de crise ocorrida no passado. Ademais, não se faz modelo com apenas um caso.
Para dificultar mais ainda nossa capacidade de previsão, a popularidade de Lula já está há algum tempo em níveis muito elevados. Há analistas que afirmam que o nível é tão alto que uma queda na atividade econômica, mesmo acentuada, muito dificilmente afetaria a avaliação do presidente. Essa afirmação é contrária à pseudoteoria da fadiga de material. Segundo ela, os governos sofrem de fadiga no segundo mandato. Por quê? Simplesmente porque estão no segundo mandato. É um argumento baseado em algo "natural" - é natural que quanto mais longo o mandato, maiores são as chances de fadiga. Isso não estaria acontecendo com Lula.
Haveria uma maneira de não cair na vala comum da chamada fadiga de material: por meio de um fenômeno e, para tais analistas, Lula é um fenômeno. Tenho insistido nesta coluna que o pré-capitalismo brasileiro, um fenômeno sistêmico que prejudica todos, leva-nos a acreditar em explicações e soluções mágicas.
A violência urbana teria uma solução mágica e ela pode ser encontrada na Colômbia. Daí as inúmeras comitivas que visitam os dois países tentando instituir no Brasil a mágica adotada por lá. A crise do transporte público brasileiro tem uma saída mágica, o que falta é vontade política para executá-la. Lula é um personagem mágico, por isso a sua força entre a população mais pobre. Ele é um fenômeno.
Nada disso, não há mágica. Não há fenômeno. O crime é reduzido, como vem mostrando sistematicamente o economista Aluisio Araújo, por meio de uma política pública consistente que investiga, julga e condena as pessoas envolvidas no crime. Aumente-se a população carcerária e o crime será reduzido no curto prazo. Não é necessário ir à Colômbia para que isso seja constatado. Basta que sejam analisados os dados existentes no Brasil. No longo prazo o crime é combatido por meio de políticas de renda e sociais que ampliem a classe média vis-à-vis ricos e pobres. Quanto maior o peso relativo da classe média, menor o crime.
O que não dizer, então, das soluções para os engarrafamentos? São lentas e custosas. Muitas também podem ser impopulares. Em qualquer uma, não há mágica.
A popularidade de Lula tem a ver com o desempenho de seu governo. Recordar é viver. Com Fernando Henrique aconteceu o mesmo. A popularidade do presidente tucano passou por picos e depressões durante os oito anos de sua gestão. Além disso, as principais razões para votar e apoiar FHC estavam todas relacionadas com o desempenho de seu governo.
Mais recentemente, quem não se lembra do mensalão? Pois bem, durante 2005 a popularidade do governo caiu de forma sistemática, em especial a partir de maio, quando veio à tona um suposto esquema de compra de votos no parlamento brasileiro. Passada a intensa cobertura da mídia, Lula voltou a ser bem aprovado. O momento da virada, se não me falha a memória, foi em janeiro de 2006. Naquele mês não havia mais CPI e José Dirceu já tinha sido cassado. A comunicação do governo reagiu com uma intensa propaganda a favor do Bolsa Família e do aumento do crédito pessoal, com ênfase na vedete chamada crédito consignado.
Uma coisa não passa despercebida nem no governo Lula nem em qualquer outro instalado em Brasília. A nossa cultura personaliza tudo. O Plano Real foi do Fernando Henrique. Collor foi quem mudou a agenda do Brasil. Lula cuidou dos pobres. E por aí vai. Na personalização não cabem raciocínios complexos. Em sua versão mais aguda, ela é típica de uma sociedade pouco desenvolvida e pouco escolarizada.
Não adianta explicar que o sucesso econômico do governo Lula se deveu a uma onda mundial de liquidez sem precedentes. Não adianta mostrar que ele deu continuidade a uma política econômica adotada no governo anterior. Não adianta mostrar que no período Fernando Henrique foram feitas muitas reformas que prepararam o terreno do crescimento. Não disso importa. Vale apenas o fato de que o crescimento ocorreu no mesmo período em que Lula ocupava o Palácio do Planalto. Então, conclui-se, foi Lula quem fez.
Esse traço cultural mais acentuado no subdesenvolvimento foi muito bem aproveitado pelo governo. A propaganda governamental sempre enfatizou o desempenho do presidente em suas funções. De fato, para o marketing do governo, foi Lula quem fez. A grande questão, agora, é saber se o feitiço vai virar contra o feiticeiro. Lula vai escapar do desgaste da crise? Ele, que tão bem buscou personalizar o sucesso do crescimento econômico, poderá, neste momento, atribuir o fracasso aos Estados Unidos?
Foram mais de quatro anos com o governo educando seus súditos a pensarem da seguinte forma: o governo é o responsável pelo aumento do bem-estar. Poderá, agora, convencer os eleitores de que uma redução em seu poder de compra não é responsabilidade do governo?
Excetuando-se os detentores do saber mágico, não há quem tenha essa resposta baseada em dados e fatos, em elementos empíricos. Há, porém, estudos que mostram que em alguns países o impacto das crises é maior do que em outros.
Por exemplo, o eleitorado italiano e o holandês são muito pouco sensíveis às crises econômicas. O inverso ocorre em países tão diferentes quanto Estados Unidos, Grã-Bretanha, Espanha e Irlanda (a Irlanda católica). Muitas vezes o eleitorado tem dificuldade de culpar o governo pela crise. Em geral isso acontece quando a aliança governamental é nebulosa. Quando é clara, quando fica claro para o eleitor quem comanda a economia, é também claro para ele quem é o responsável por eventuais crises.
Perder o emprego é uma experiência profundamente traumática. Em tempos de crise, mais ainda. Simplesmente porque as perspectivas de realocação no mercado de trabalho são sombrias. Será difícil para o presidente persuadir os desempregados de que os Estados Unidos foram os responsáveis por sua demissão. Mais ainda, será igualmente difícil mostrar para os desempregados que a volta ao trabalho depende das medidas de Barack Obama. Por isso, não será surpresa se a popularidade de Lula começar a cair em breve.
Desde criança ouço que Deus é brasileiro. Mais recentemente me disseram que, além de brasileiro, Ele é parente de Lula. Vamos ver se o Todo-Poderoso continuará zelando pelo seu parente, mas sem jamais esquecer que milagres não existem, nem mesmo para Deus.
Nota: tecnicamente um milagre ocorre quando há violação de uma lei da física. Como com o passar do tempo a ciência avança e novas coisas são descobertas, não sabemos hoje quais são todas as leis da física. Portanto, o que hoje é considerado um milagre, o é erradamente na medida em que no futuro serão descobertas novas leis da física que enquadram o suposto milagre em um acontecimento facilmente explicável.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" (Record).