O anúncio da redução nas tarifas de transporte público em nada mudou o ânimo dos manifestantes. 0 dia deve ser das multidões.
Enquanto a inimaginável dupla Geraldo Alckmin e Fernando Haddad comunicava a São Paulo a diminuição no preço das passagens, os protestos se estendiam pelo país. Desde a histórica segunda-feira, 82 cidades do interior já saíram às ruas. Grandes atos foram marcados para hoje.
São Paulo e Rio reduzem tarifas
O Palácio do Planalto entrou no circuito para tentar destampar a panela de pressão que fez as ruas de todo o país ferverem nos últimos dias e negociou com os governantes de São Paulo e do Rio de Janeiro a redução das tarifas no transporte coletivo. Os prefeitos do Rio, Eduardo Paes (PMDB), e de São Paulo, Fernando Haddad (PT), além do governador paulista, Geraldo Alckmin (PSDB), anunciaram ontem a revogação no aumento das passagens de ônibus, metrô e trens definido no início do mês. Os governantes prometeram que vão rever os orçamentos, e os cortes para cobrir a perda de receita serão feitos nos investimentos. Em São Paulo, as tarifas foram reduzidas de R$ 3,20 para R$ 3. No Rio, de R$ 2,95 para R$ 2,75.
A intervenção do Planalto também serve para pôr um fim nas contradições nos dados e no discurso de Haddad e da ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann. Na terça, Gleisi disse que as medidas de desoneração do governo federal permitiriam uma redução de R$ 0,23 nas tarifas. Haddad rebateu os cálculos, pois a redução nos tributos já havia surtido efeito ao impedir que as passagens subissem para R$ 3,47 em vez dos R$ 3,20 anunciados anteriormente. Na matemática do prefeito, a redução na tarifa de ônibus representará uma perda de arrecadação de R$ 600 milhões por ano.
O prejuízo financeiro não é o único na conta de Haddad, que se viu obrigado a engolir as próprias declarações. Pela manhã, o prefeito tinha dito que reduzir as passagens seria uma medida "populista". "A coisa mais fácil do mundo é agradar a curto prazo e tomar uma decisão de caráter populista." Mais tarde, ele se viu forçado a mudar de ideia. "Foi um gesto de aproximação, de abertura e manutenção do espírito de democracia e convívio pacífico", justificou. "Estaremos em diálogo permanente com a população de São Paulo, nas subprefeituras, para que o orçamento da cidade seja repensado à luz dessa nova realidade", completou, adiantando que terá de reabrir as planilhas de gastos em investimentos e discutir com a sociedade quais serão as prioridades daqui em diante.
Empresas
O governador Geraldo Alckmin admitiu que a administração estadual precisará apertar o cinto. "Nós teremos que cortar investimentos, porque as empresas que suportam (essa diferença de valor) não têm como arcar. O tesouro paulista — orçamento do Estado — vai arcar com esses custos, fazendo um ajuste na área dos investimentos", disse o tucano. Ainda assim, Alckmin entende que a redução é importante para priorizar um transporte coletivo de alta capacidade. Após o anúncio, integrantes do Movimento Passe Livre se reuniram em um bar em São Paulo para comemorar, mas prometeram manter as manifestações marcadas para hoje.
No Rio, o prefeito, Eduardo Paes, fez malabarismo para lembrar que o reajuste no preço do diesel utilizado no transporte público decorreu do aumento no custo de vida nos últimos anos. Mesmo assim, a exemplo dos governantes de São Paulo, retomou os valores cobrados anteriormente. Os administradores das duas cidades já tinham adiado os reajustes de janeiro para junho, a pedido do Palácio do Planalto, para evitar um acréscimo inflacionário.
O governante peemedebista estimou em R$ 200 milhões por ano o impacto da revogação do reajuste das tarifas de ônibus do Rio. Segundo Paes, se a situação se prolongar por mais tempo, esse valor poderá aumentar para R$ 500 milhões.
Efeito cascata
Além de Rio de Janeiro e São Paulo, 11 cidades já concederam redução ou cancelaram o aumento das tarifas do transporte público. A mudança no valor das passagens ocorreu em: Natal, Cuiabá, Recife, João Pessoa, Porto Alegre, Vitória, Montes Claros (MG), Foz do Iguaçu (PR), Blumenau (SC), Pelotas (RS) e Campinas (SP).
Fortaleza
O cartaz era um desafio à Fifa, que proíbe manifestações. Mas a ousadia contra o protocolo não parou aí. A torcida cantou toda a primeira parte do Hino Nacional mesmo sem música nos alto-falantes. Fora do Castelão, 25 mil pessoas criticaram os gastos com a Copa e houve confronto com a PM.
Fortaleza assustada
Manifestantes aproveitaram a visibilidade internacional do jogo entre Brasil e México pela Copa das Confederações, realizado ontem à tarde, no Estádio do Castelão, em Fortaleza, para promover um protesto contra os elevados gastos na construção das arenas do Mundial de 2014 no país. Hoje, grandes atos estão programados para as principais cidades brasileiras. Na capital cearense, a Polícia Militar utilizou bombas de efeito moral, spray de pimenta e balas de borracha. Oito policiais, dois repórteres e dezenas de integrantes do movimento ficaram feridos. Um carro da Autarquia Municipal de Trânsito, Serviços Públicos e de Cidadania (AMC) foi incendiado. O confronto durou mais de quatro horas.
A Polícia Rodoviária Federal informou que 25 mil pessoas participaram da manifestação. Organizadores do movimento calcularam 50 mil. Alguns torcedores, com ingresso nas mãos, desistiram de entrar no estádio. A estratégia de transformar os jogos da competição em palco de protesto já havia sido utilizada em jogos no Maracanã, no Rio de Janeiro; Mineirão, em Minas Gerais; e Mané Garrincha, em Brasília.
O ato teve início ao meio-dia, quando uma barreira policial foi montada para evitar que os integrantes do movimento se aproximassem da Arena Castelão. Muitos torcedores, incluindo idosos e crianças, que estavam entrando no local para assistir à partida, sofreram com os efeitos do spray de pimenta utilizado pelos policiais. Uma torcedora chegou a desmaiar ao inalar o gás jogado pela polícia. Ela foi encaminhada a um hospital público e liberada em seguida. Várias crianças correram assustadas e se perderam dos pais.
Parte do grupo que protestava do lado de fora gritava "Não à violência", além de vários xingamentos contra o governador do Ceará, Cid Gomes (PSB), e a presidente da República, Dilma Rousseff (PT). As duas principais vias que dão acesso ao Castelão foram interditadas. Um grande congestionamento se formou em vários bairros de Fortaleza. Apenas duas avenidas davam acesso ao estádio.
Às 15h30, os ânimos se arrefeceram. Após o início da partida, às 16h, um pequeno grupo de manifestantes ainda resistia. Pedras e objetos foram atirados contra os policiais após o Batalhão de Choque arremessar bombas de efeito moral. Quando o grupo estava bastante reduzido, a PM avançou com a cavalaria e conseguiu acabar com o protesto. Às 17h, ocorreu um novo confronto, em menores proporções. Novamente, balas de borracha foram utilizadas. O cenário visto após o fim do protesto era de guerra. Várias barricadas em chamas e muita munição espalha pelo chão. Durante o confronto, manifestantes utilizaram materiais de construção, que estavam espalhados nas proximidades do Castelão. Caminhões do Corpo de Bombeiros estiveram no local para apagar os focos de incêndio.
O jornalista Pedro Rocha, que fazia cobertura para o Comitê Popular da Copa, levou uma bala de borracha no olho. Um repórter do Portal UOL também acabou agredido. "Havia uma barreira policial, para conter o protesto. De longe, mostrei minha credencial. Um dos guardas acenou em sinal de "pode vir". Bem rente ao muro, passei. Fui surpreendido com uma "borrachada" nas nádegas. "O que eu fiz, amigo?, questionei ao policial que me agrediu. "Passou, levou", respondeu ele. Com dor, saí andando", relatou o jornalista Luiz Paulo Montes.
O governador do Ceará, Cid Gomes (PSB), lamentou o episódio. "Eu lamento profundamente o que aconteceu. A polícia, desde o começo, em nenhum momento tentou impedir a manifestação. Mas havia pessoas com ingressos comprados que tinham o direito de ir ao jogo. A PM tinha o dever de deixar que isso acontecesse. São pessoas agredidas também. Tomaram pedradas. Mas, de novo, lamento o que aconteceu", ressaltou.
De acordo com informações da Polícia Civil do Ceará, três pessoas foram presas sob justificativa de ter incitado agressão a policiais. Em razão do protesto, a Polícia Militar teve que aumentar a área de isolamento em um quilômetro. A Fifa determina um setor com raio de dois quilômetros.
Arquibancada
Dentro do Castelão, vários torcedores driblaram as regras impostas pela Fifa, que não permite manifestação política dentro dos estádios. Diversos cartazes de protestos podiam ser vistos na arquibancada. "Queremos escolas e hospitais no padrão Fifa", lia-se em um deles. Alguns torcedores levaram mensagens em inglês. A polícia recolheu alguns cartazes. No momento da execução do Hino Nacional, um pequeno grupo de pessoas virou de costas. A grande maioria do estádio continuou cantando mesmo após o sistema de som da arena ter sido desligado. Os jogadores se emocionaram. Novas manifestações estão sendo marcadas em Fortaleza para hoje e amanhã.
Brasília
Liderados pelo Movimento Passe Livre, cerca de 2 mil brasilienses marcharam da Rodoviária para a Asa Sul. Na estação 102 Sul do metrô, um grupo pulou as catracas, no único incidente. Mais de 50 mil pessoas confirmaram, pelas redes sociais, presença na manifestação convocada para hoje na Esplanada.
Da internet para a Esplanada, de novo
Os manifestantes devem se reunir no início da tarde no Complexo Cultural da República e sair antes das 17h pelo Eixo Monumental até chegar à Praça dos Três Poderes. Renato e Catarina não esperavam que a ideia deles — materializada em evento na noite da última segunda-feira, quando houve a ocupação do teto do Congresso Nacional — ganhasse tanta projeção. "Não queríamos que esse momento de mobilização se perdesse. Achávamos que a nossa manifestação teria mil pessoas. Não imaginava nunca que daria tanta repercussão", conta Catarina.
Depois da fama instantânea, eles foram procurados por pessoas ligadas a partidos políticos, mas aceitaram só a colaboração do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade de Brasília (UnB). "Não assumimos qualquer liderança, mesmo porque não é o objetivo. Colaboramos com apoio logístico e também ajudamos a conversar com o governo para garantir uma manifestação pacífica", acrescentou Nicolas Powidayko, coordenador-geral do DCE. Ontem, eles tiveram uma reunião com a Secretaria de Segurança Pública para definir detalhes de policiamento.
Além do DCE, o Acorda, Brasília! recebeu o apoio de representantes e participantes da Marcha do Vinagre, responsável por levar 10 mil às ruas na segunda-feira. Os grupos têm reivindicações e origem semelhantes, como no caso da aprovação da PEC 37. "Amanhã (hoje), vamos apoiar o Acorda. No sábado, quando faremos outra marcha, será a vez de eles nos apoiarem. Queremos levar 50, 100 mil às ruas para os governantes verem que estamos unidos", complementa Wellington Fontenelle, integrante da Marcha do Vinagre.
A ideia é que não apenas estudantes, mas gente com perfis sociais e econômicos mais variados se junte ao grupo. Inclusive quem nunca participou de movimentos sociais. Alunos do Centro de Ensino Médio 6 de Ceilândia Sul, Jonathan Lopes Oliveira e Davi Francisco Andrade, de 18 e 17 anos, irão à Esplanada. Eles contam que o colégio estará em peso na manifestação. "Principalmente nas periferias, as pessoas não se envolviam muito na luta por um país melhor. Agora, nós acordamos. Quero brigar por direitos, ter ensino de qualidade para poder competir no vestibular de igual para igual com o aluno da escola particular", disse Davi. "Comparam o nosso movimento com os caras-pintadas, mas é diferente. Nós lutamos de cara limpa", afirmou Jonathan.
A estudante de direito Samantha de Araújo Medeiros, 20 anos, escolheu sair de casa com um vestido com a estampa da Bandeira do Brasil. Era uma forma de torcer pela Seleção e uma maneira de demonstrar apoio à onda de protestos em várias cidades do país. "Moro no Gama, e o transporte público é péssimo. Ninguém nunca se interessou em resolver esse problema. É hora de colocar tudo o que estava engasgado para fora. As pessoas têm de ir para as ruas, mas sem quebrar nada para não perder a razão."
Os irmãos Leonardo e Rafael Santos, de 14 e 15 anos, moradores da Granja do Torto, apesar de nunca terem escolhido um representante político nas urnas, entendem a importância do ato de hoje. Ontem, às 16h, na hora do jogo do Brasil, eles andavam de skate pelo Conic. Mesmo fãs de futebol de Neymar, eles preferiram não assistir à partida. Era uma forma de protesto. "Os políticos dizem se importar com a educação, mas a escola liberou a gente mais cedo por causa de um jogo de futebol. Ou seja, a Seleção é mais importante do que um dia de aula", queixou-se Leonardo.
Por que eu vou à manifestação
"Eu vou por um país melhor. Quero protestar contra os péssimos serviços prestados. No meu caso, o que me afeta mais é o transporte. Para chegar ao trabalho, tenho que pegar dois ônibus e, dependendo do horário, até três. É inadmissível gastar R$ 12 por dia só para conseguir chegar ao serviço. A juventude tem que aproveitar este momento do despertar da cidadania para exigir mudanças reais."
Paulo Sanchez, 22 anos, funcionário terceirizado do Ministério da Saúde e morador do Park Way
"É a primeira vez que me envolvo em um movimento social e me sinto orgulhosa por participar de um momento histórico do Brasil. Com certeza, será um marco e trará frutos para o nosso povo. A minha principal bandeira será contra a votação da PEC 37. Não podemos admitir que um projeto tão absurdo passe como se fosse algo normal."
Cristiane Diniz, 30 anos, estatística e moradora da Asa Sul
"Eu já precisei de atendimento em hospital público e não consegui ser atendida. Não posso aplaudir um evento esportivo, no qual bilhões foram gastos enquanto milhares de pessoas morrem todos os anos por falta de atendimento. Participo de manifestações em Brasília desde os 16 anos, mas sou completamente apartidária."
Fonte: Correio Braziliense