Entrevista com Maria Alice Rezende de Carvalho
Por: Ricardo Machado | IHU On-line
É muito próprio da cultura brasileira a noção de que as forças militares – Forças Armadas e Polícias Militares – têm como prerrogativa ser o braço armado do Estado, em detrimento de um serviço de proteção aos cidadãos. A perspectiva adotada, em sua forma hegemônica, remonta ao Brasil Império e à manutenção de um elemento estruturante na participação dos militares na formação política de nosso país. “Tal princípio implicou a existência de um corpo militar como ‘braço do Estado’, capaz de garantir, internamente, a preservação de extensas faixas de terra, a identificação etnográfica de suas populações, a afirmação da presença do ‘rei’ perante súditos das mais longínquas regiões. De fato, o exército brasileiro cumpriu esse percurso – o que lhe deu uma feição histórica específica, livre das influências civis e dos interesses de classes ou grupos externos à corporação”, pontua Maria Alice Rezende de Carvalho, professora doutora e pesquisadora da PUC Rio, em entrevista por e-mail à IHU On-line. “Enfim, em nosso regime legal, a polícia é definida como instituição militar, o que a obriga a um tipo de organização semelhante à do exército. Mas será essa a sua forma adequada?”, questiona.
Permeada por uma disputa narrativa polarizada, os debates em torno do papel das instituições militares no Brasil tendem a descambar para simplificações de ambos lados, o que, via de regra, não favorece o debate sobre os efeitos da militarização na política nacional. “A cultura da guerra ao ‘inimigo interno’, tão presente durante a ditadura militar. O efeito dessa cultura sobre as corporações policiais, sobretudo militares, é inegável no nosso tempo, o que acaba por combinar, de um lado, esse repertório bélico, que valoriza a coragem física e o confronto; e, de outro, aquilo que é mais caro em sociedades democráticas: um repertório técnico, que entende a segurança como um serviço público prestado universalmente a cidadãos.”, explica a professora. “Para que assim ocorresse seria necessária uma mudança profunda na própria sociedade, levando a que a democracia não seja mais entendida apenas como o ato de votar, mas como uma cultura de direitos e liberdade”, complementa.
Apoiada no estudo de Adriana Marques e Jacintho Maia sobre o Exército chileno, Maria Alice salienta que a mudança de paradigma organizacional pode ser um caminho interessante para as corporações militares no Brasil. Os pesquisadores destacam que no Chile houve uma mudança de paradigma em relação ao Exército, especialmente, e às forças armadas no geral, o que pode ser um caminho interessante em uma nova caracterização das corporações no Brasil. A pesquisadora destaca que no Chile, o Exército tem migrado para um modelo profissional, assumindo uma “concepção ‘empresarial’ de gestão de seus recursos materiais, tecnológicos e humanos, com a diminuição de seus efetivos”. Maria Alice, entretanto, pensa que esse modelo não será o do Brasil.
Diante dos inúmeros desafios à salvaguarda dos bens naturais e das populações nativas no país, o Exército brasileiro, atuando como defensor dos interesses republicanos, podia ocupar um papel chave nesse processo. “Um discurso público que expressasse a política de gestão ambiental do Exército brasileiro e o comprometimento da Força Terrestre com a melhoria da qualidade ambiental, seria talvez, uma forma de substituir o nacionalismo dos séculos XIX e XX por um propósito nacional compatível com os atuais interesses preservacionistas do planeta. Essa era uma perspectiva plausível há três anos. Vejamos o que 2019 nos reserva, nesse âmbito”, adverte.
Maria Alice Rezende de Carvalho é licenciada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC Rio, mestre em História Social pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, onde trabalhou entre os anos de 1987 e 2007, tornando-se Professora Titular. Atualmente é Professora Associada II do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Entre outras publicações, é coautora do livro Para pensar o Exército Brasileiro no século 21, que deve ser lançado em breve.
A entrevista em tela tem como pano de fundo a pesquisa realizada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio, de autoria da professora Maria Alice Rezende de Carvalho, do professor Eduardo Raposo e da professora e Sarita Schaffel a ser publicada no livro citado acima.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o papel histórico da corporação militar no Brasil e como ela influenciou a formação das polícias no país?
Maria Alice Rezende de Carvalho – Durante o século 19, no contexto da formação brasileira, a perspectiva territorialista era dominante, isto é, havia a preocupação em manter unificado o território, sob o domínio centralizado da Coroa. Essa característica foi herdada dos nossos colonizadores. Há um historiador português do direito, Antonio Manuel Hespanha, que afirma que nos acostumamos a pensar a conformação dos Estados modernos a partir do paradigma de Thomas Hobbes, atribuindo a centralização do poder monárquico à destruição dos direitos senhoriais do mundo feudal. Mas na Península Ibérica, segundo Hespanha, o Estado moderno não se erigiu sobre os escombros do poder local. Ao contrário. O monarca absolutista português manteve a função do rei medieval de garantir o equilíbrio natural dos corpos políticos e de defender os direitos estabelecidos. Isso lhe trouxe uma dificuldade, pois ao preservar o dominium dos súditos, a monarquia precisava criar novas fontes de soberania, agregar novos espaços materiais e simbólicos que não pudessem ser questionados ou disputados pelas casas senhoriais. Qual foi a solução? A conquista colonial. Com ela, novas terras da África, da América e do Oriente eram submetidas ao domínio real e passavam a emprestar prestígio e poder ao monarca, sem que ele precisasse disputa-las com seus barões. Portanto, território e poder estão na base da aventura colonial lusa.
• A existência de um corpo militar como “braço do Estado”, capaz de garantir, internamente, a preservação de extensas faixas de terra – Maria Alice de Carvalho
Ora, podemos pensar que esse princípio estruturante da política portuguesa foi reiterado no Brasil mesmo após a independência e ainda mais sob o Império. Tal princípio implicou a existência de um corpo militar como “braço do Estado”, capaz de garantir, internamente, a preservação de extensas faixas de terra, a identificação etnográfica de suas populações, a afirmação da presença do “rei” perante súditos das mais longínquas regiões. De fato, o exército brasileiro cumpriu esse percurso – o que lhe deu uma feição histórica específica, livre das influências civis e dos interesses de classes ou grupos externos à corporação. Esse é o modelo interpretativo desenvolvido por José Murilo de Carvalho e Edmundo Campos Coelho, que pensam o fenômeno militar com ênfase na sua autonomia organizacional e institucional.
Quanto à influência da corporação militar na formação das polícias é preciso pensar que a organização do exército, nos moldes em que ela tradicionalmente se dá, visa à defesa do território e a soberania nacional – o que não é caso das polícias, cujos objetivos são (ou deveriam ser) garantir os direitos dos cidadãos, prevenindo e reprimindo violações a eles. Ora, para desempenhar o seu papel, o exército precisa se organizar de modo a mobilizar grandes contingentes humanos com rapidez e eficiência, o que requer centralização decisória e uma estrutura verticalizada. Mas será esse o caso das polícias? Atuando na rua, tendo que decidir sobre como agir, gerindo seus próprios recursos, interagindo com cidadãos no espaço público, os policiais necessitam de um treinamento específico e outro tipo de organização, distinta da que tem o Exército. Enfim, em nosso regime legal, a polícia é definida como instituição militar, o que a obriga a um tipo de organização semelhante à do exército. Mas será essa a sua forma adequada?